Jaula de aço

Imagem: João Nitsche
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ADEMAR BOGO*

Enquanto as atenções estiverem voltadas para o conserto do sistema, não haverá emancipação

A união entre burgueses, proletários, camponeses e massas populares, formou, em 1789, o “Terceiro Estado” que tornou vitoriosa a Revolução Francesa. Na sequência, essas classes instalaram a Assembleia Nacional Constituinte e procederam a elaboração das novas leis, garantidoras da implantação dos princípios da igualdade, liberdade e fraternidade; interesse comum da esquerda e da direita, forças defensoras do capitalismo e da organização do Estado, estruturado e representado pelos três poderes: executivo, legislativo e judiciário.

Com as leis aprovadas e colocadas acima de todos, passou a vigorar no modo de produção capitalista, o “Estado Democrático de Direito” como ordem oficial. Garantiu-se assim, aos exploradores e também aos explorados, os direitos e as expectativas de pleitearem o progresso econômico, o desenvolvimento social e a realização dos anseios individuais. No entanto, essa vitória revolucionária burguesa e proletária, se por um lado passou a representar um vínculo de dependência econômica e política entre as duas classes, por outro lado, implementou a instituição de uma “jaula de aço” como bem conceituou o alemão Max Weber, em sua obra A ética protestante e o espírito do capitalismo.

Ser a favor do totalitarismo econômico capitalista e, democratas ao mesmo tempo, está na origem da formação das classes burguesa e proletária, como também no senso comum das massas populares. Essa premissa positivista, liberal e religiosa, rege as relações sociais e de produção, ordenando-as pelas normas morais e as barras do Direito Positivo, expressão jurídica da coerção no interior da jaula de aço, responsável por enquadrar qualquer cidadão tido como desordeiro. Fora dela, temos a sensação de estarmos em perigo, por isso corremos para incluir-nos e nos tornamos os principais defensores do progresso, da geração de empregos e do bom funcionamento do Estado.

Inseridos no sistema de exploração e na ordem coercitiva, nos comportamos como os animais na jaula: comemos em um dos lados, dormimos em outro e defecamos em algum canto. Durante o dia vagamos ligando esses pontos geográficos e nos enraivamos se alguém ameaça fazer alguma interferência nesta ordem estabelecida, seja com um golpe ou alguma intervenção desastrosa, pois, já não sabemos viver sem ela e nem mesmo imaginarmos outras formas de convivência. Tal qual aos animais que não sabem distinguir o tratador do responsável por enjaular-los, tememos as forças de segurança, mas nos desesperamos se não as vemos nas esquinas; rejeitamos os patrões, mas corremos para agradá-los quando nos ameaçam com demissões; criticamos os governantes e as leis injustas, mas continuamos afirmando a democracia representativa, dando à imensa minoria as condições para negar os direitos e os benefícios da maioria.

Queremos a emancipação humana, mas a retardamos, porque, para uma parte dos trabalhadores, a venda da força de trabalho, está tão ruim que mal dá para fazer exigências e, para a outra parte mais pauperizada, já não se apresenta oferta alguma. E, mesmo cabisbaixos, nos animamos com as promessas eleitoreiras daqueles que se propõem a lubrificar as dobradiças da porta dessa jaula imunda e decadente, para que ela ranja menos toda vez que se fechar. Dirigem-nos para a santidade do capital, para que nos prostremos diante dele, com as mãos postas segurando a oferenda do voto. Queremos que os vencedores da democracia representativa nos atendam com uma graça, de um auxílio, uma bolsa, ou mesmo um osso descarnado, pois, entendemos, a carne deve ser enviada ao deus supremo do mercado exterior.

Sabemos que a origem da submissão está na aliança genuína que formou o “Terceiro Estado”, efetivada na França para o triunfo da Revolução de 1789. No entanto, aquela união comandada pelos capitalistas, produtores, industriais e comerciantes, tendo como força auxiliar o proletariado, com a expansão do capital especulativo e destrutivo, já ruiu. Esse capital volátil associado ao banditismo político, habitante dos lugares mais remotos como as Ilhas Virgens Britânicas, infiltrou-se no Estado e age para “liquidificar” as riquezas das nações. Essas forças parasitárias, ao invés da ordem democrática, espalham o terror, a insegurança e o medo; e põem a reboque, com exceção do agronegócio destrutivo, os setores burgueses da produção que buscam desesperadamente voltar ao lugar perdido no controle da política.

Portanto, se no passado esses setores burgueses produtivos, foram capazes de unificar as diversas forças no “Terceiro Estado”, na atualidade estão em desvantagem, não apenas pelos erros políticos cometidos, mas também, pela perda de poder para as formas especulativas e parasitárias do capital. Assim se explica o porquê das frequentes instabilidades da ordem e o desejo imediato de reconstruírem a velha aliança, propondo uma “terceira via”. Se aceitarmos essa manobra, reconheceremos no grau mais baixo que os propósitos da histórica burguesia continuam válidos e, por mais que nos esforcemos apenas reviveremos a tragédia mil vezes repetida quando diante do perigo, o escravo morre para salvar o seu senhor. As burguesias sobreviventes da exploração da força de trabalho, em grau maior ou menor, de acordo com o lugar no mundo em que se encontram, vêm perdendo o controle da política e do controle sobre o Estado. Por mais estranho que pareça, na conjuntura transitória, “somos os seus coveiros” e não os seus salvadores.

Não restam dúvidas de que guardamos no fundo da consciência proletária uma contradição conflituosa, entre darmos vazão às energias revolucionárias e acatarmos os desejos da submissão. Freud no âmbito corporal e sexual denominou esse movimento de “pulsão de vida” e “pulsão de morte”. Nesse sentido, não é exagero nenhum reconhecer que o capital especulativo e parasitário, jungido ao banditismo político, improdutivos, violentos e destrutivos, tornaram-se os transtornos físicos, psíquicos, econômicos, políticos, morais, ambientais etc., da civilização. Por mais que se pense governar e controlar a ordem na jaula envelhecida, dentro dela circula essa energia incontrolável e instintual da volatilização do capital. Para controlá-la é preciso antes de tudo aprisionar e dominar os seus agentes destruindo todas as suas mediações que pulsam para a morte.

Nesse sentido, por mais que tentemos retardar o enfrentamento com as forças destrutivas da civilização ele será inevitável. Como sujeitos de um processo libertário, trabalhadores e massas populares em geral, devemos, ao invés de liderarmos a conciliação deveríamos nos propor a jogar para os ares a jaula e sua ordem, ou pelo menos, como primeiro passo, empurrar para fora dela os especuladores, rentistas, devotos dos paraísos fiscais; os incendiários das florestas e os assaltantes das riquezas públicas. Para isso precisamos fugir da tentação de fazer acreditar que a “jaula de aço” um pouco mais limpa e arejada, mesmo com uma parte da população com as pernas fora das grades é tudo o que se pode propor. Se assim pensamos, eternizamos a palavras de Karl Marx quando nos alertou que os defensores do parlamento e acrescentamos, da democracia representativa, fazem tudo para “Iludir os outros e iludir-se ao iludi-los”.

Enquanto as atenções estiverem voltadas para o conserto do sistema, não haverá emancipação. As soluções para impulsionar as transformações sociais, embora partam de dentro, estão fora dessa ordem carcomida. Olhar para fora é arriscar perder todas as crenças, no capital, no Estado e na política profissionalizada e, como ateus, instituir as bases das novas crenças, com princípios inversos ao que até aqui fizeram a jaula de aço funcionar.

Marx e Engels nos deram a indicação, como velhos conselheiros deveríamos ouvi-los. Sentenciaram na época de 1848, em meio às turbulências das revoluções liberais na Europa, que “os comunistas não dissimulam as suas opiniões e seus objetivos”, o que nos parece suficiente para sermos sinceros uns com os outros, isto porque, segundo eles, é preciso fazer com que a classe dominante se sinta ameaçada pela “destruição violenta de toda a ordem social”, e não contemplada pela nossa plataforma política. Principalmente porque, “a classe operária nada perderá com ela, a não ser a sua prisão.” Que essa prisão seja reservada aos genocidas e aos devotos da especulação.

*Ademar Bogo é doutor em filosofia pela UFBA e professor universitário.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Dennis Oliveira Rodrigo de Faria Luiz Eduardo Soares Airton Paschoa Denilson Cordeiro Paulo Fernandes Silveira Paulo Nogueira Batista Jr Claudio Katz Otaviano Helene Ronald Rocha Luiz Marques João Paulo Ayub Fonseca Tarso Genro Matheus Silveira de Souza Vanderlei Tenório Celso Favaretto Benicio Viero Schmidt Alexandre Aragão de Albuquerque Marilena Chauí Gerson Almeida Vinício Carrilho Martinez Luiz Renato Martins João Sette Whitaker Ferreira Luís Fernando Vitagliano Leonardo Boff Eliziário Andrade Renato Dagnino Ricardo Fabbrini Liszt Vieira Leonardo Avritzer Chico Alencar Daniel Costa Vladimir Safatle Luiz Werneck Vianna Carlos Tautz Daniel Brazil Fernão Pessoa Ramos José Costa Júnior Antonio Martins Milton Pinheiro Walnice Nogueira Galvão Leonardo Sacramento José Geraldo Couto Celso Frederico Francisco Fernandes Ladeira Rubens Pinto Lyra Marcus Ianoni Gilberto Lopes Igor Felippe Santos Alexandre de Lima Castro Tranjan José Luís Fiori João Adolfo Hansen Marilia Pacheco Fiorillo José Raimundo Trindade Eugênio Bucci Ronaldo Tadeu de Souza Daniel Afonso da Silva Lucas Fiaschetti Estevez José Micaelson Lacerda Morais André Márcio Neves Soares Gilberto Maringoni Flávio R. Kothe Ricardo Antunes Michael Löwy Andrés del Río Eduardo Borges Elias Jabbour Luis Felipe Miguel Bruno Machado Ricardo Abramovay João Carlos Loebens Paulo Martins Kátia Gerab Baggio Maria Rita Kehl Eleonora Albano Jean Pierre Chauvin Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luiz Bernardo Pericás Henry Burnett Everaldo de Oliveira Andrade Jorge Luiz Souto Maior Jean Marc Von Der Weid Manchetômetro Osvaldo Coggiola Armando Boito Samuel Kilsztajn Annateresa Fabris Mariarosaria Fabris Priscila Figueiredo Leda Maria Paulani Marcelo Guimarães Lima Eugênio Trivinho Gabriel Cohn Flávio Aguiar Chico Whitaker Remy José Fontana Érico Andrade Carla Teixeira Manuel Domingos Neto Marcos Aurélio da Silva Thomas Piketty Antônio Sales Rios Neto Eleutério F. S. Prado Andrew Korybko Bento Prado Jr. João Lanari Bo Jorge Branco Michel Goulart da Silva Heraldo Campos Afrânio Catani Boaventura de Sousa Santos Tadeu Valadares Anselm Jappe José Dirceu Antonino Infranca Alexandre de Freitas Barbosa Marjorie C. Marona Sandra Bitencourt Henri Acselrad Lincoln Secco Lorenzo Vitral Luiz Roberto Alves Rafael R. Ioris Slavoj Žižek Paulo Sérgio Pinheiro Fábio Konder Comparato Fernando Nogueira da Costa Bernardo Ricupero Yuri Martins-Fontes Bruno Fabricio Alcebino da Silva Mário Maestri Salem Nasser Dênis de Moraes Ari Marcelo Solon André Singer Valerio Arcary Francisco Pereira de Farias João Feres Júnior Ladislau Dowbor Atilio A. Boron Valerio Arcary José Machado Moita Neto Julian Rodrigues Ricardo Musse Sergio Amadeu da Silveira Marcelo Módolo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Berenice Bento Marcos Silva Ronald León Núñez João Carlos Salles Caio Bugiato Juarez Guimarães Tales Ab'Sáber Luiz Carlos Bresser-Pereira Luciano Nascimento Michael Roberts Paulo Capel Narvai Francisco de Oliveira Barros Júnior Alysson Leandro Mascaro

NOVAS PUBLICAÇÕES