Por EMILIO CAFASSI*
A hospitalidade ao capital é complementada com a mais crua hostilidade com os despossuídos, como reflexo das sutis manobras de poder contemporâneas
O alvoroço oficial argentino pela aprovação legislativa da “Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”, versão reduzida, mas não menos perigosa que a original de fevereiro, ressoou na canção preferida de seus defensores: “a casta está com medo”. Sucessor de outra favorita dos militantes do partido de Javier Milei, “A liberdade avança”, exumado de forma contundente do maior movimento insurrecional da história argentina, que foi a rebelião popular de 19 e 20 de dezembro de 2001.
Naquela época se entoava “que se vayan todos, que no quede ni uno solo”. Penso que é útil refletir sobre o significado destes refrões revivalistas como sintomas de um duplo movimento manipulador das expectativas populares face à prolongada crise recessiva de mais de uma década da economia argentina de Javier Milei. Por um lado, com maestria maquiavélica, apresenta-se como um crítico implacável da realidade e virtualmente subversivo, ao mesmo tempo que propõe e aplica as mesmas receitas que levaram a essa crise e multiplicaram a atual.
Por outro lado, ele atribui a responsabilidade pelas dificuldades às mesmas pessoas da época, líderes profissionais e partidos, apresentando-se como um outsider. Uma jogada habilidosa que lhe permite se travestir como um renovador da política, ao mesmo tempo em que afunda suas raízes em sua pior lama.
É indiscutível a exclusão original do grupo político vencedor, incluindo a vice-presidente Villarruel e boa parte da comitiva política que os apoia. Em apenas dois anos como deputados, com pouca participação, mas com uma ressonância midiática de Javier Milei quando ele sorteia seu salário mês a mês, eles cumpriram a tarefa antes de se estabelecerem no ápice da pirâmide do poder executivo.
Javier Milei ficou conhecido pelos seus desabafos como colunista televisivo, sobretudo em programas escandalosos, enquanto ela, de perfil mais discreto, soube conquistar o reconhecimento dos genocidas ainda vivos e da instituição militar, glorificando as antigas coortes de torturadores e assassinos. Nesse contexto uma relevante debatedora parlamentar, ex-maquiadora e cabeleireira do presidente — dividia seu tempo livre com a produção de vídeos de terraplanismo textual e modelagem de cosplayer, fantasiando-se de super-heróina.[1]
A vertiginosa ascensão da dupla ao topo do poder, de tal irrelevância representativa e exibição farsesca — para além do talento impostor — exigiria que um novo Freud reescrevesse uma “psicologia de massa e análise de si”, para articular as causas de tão insólito fenômeno de adesão popular. Paradoxos burlescos de uma dança em que o grotesco e o trágico se misturam, esculpindo no imaginário coletivo os vestígios de uma decomposição ética e política de alcance ainda inimaginável.
Enquanto a extrema direita do Primeiro Mundo se exclui da violência, atribuindo os fracassos a uma alteridade estrangeira, os argentinos — e os rioplatenses em geral — adotam uma posição diferente. Longe de serem necessariamente refratários à imigração, e menos ainda ao estabelecimento do capital, qualquer que seja a sua origem e categoria de investimento, imitam o papel de “La Malinche” com Hernán Cortés, oferecendo hospitalidade e gentil mediação ao empreendedorismo conquistador. Neste cenário, subjugam os desprotegidos tanto material como simbolicamente.
A discriminação que praticam não se baseia tanto em parâmetros étnicos como em critérios de classe, embora estes últimos sejam habilmente dissimulados pela acusação da classe política depreciativamente rotulada como “casta”. Esta mudança retórica permite que a extrema direita argentina se apresente como alguém que renova e protege o interesse popular, ao mesmo tempo em que perpetua e agrava as desigualdades estruturais. Neste jogo paradoxal, a hospitalidade ao capital é complementada pela mais crua hostilidade para com os despossuídos, como reflexo das mais complexas e sutis manobras de poder contemporâneas.
O reconhecimento dos privilégios detidos por quem exerce funções políticas não é novo, mas, pelo contrário, fundaram um dos ramos cardeais da filosofia política, ainda antes de nascer a sociologia e questionar a estratificação social. Porém, na antiguidade, este reconhecimento carecia do tom pejorativo que o rodeia hoje. Aristóteles já concebia uma distinção entre governantes e governados, onde a polis constituía o mais alto nível de organização, permitindo uma vida virtuosa e autossuficiente, ao contrário da sociedade civil que, apoiando-a, incluía famílias e aldeias.
No berço da modernidade, para citar alguns exemplos, a sociedade política, entendida como Estado, tinha a função de evitar o estado de natureza de “todos contra todos” da sociedade civil e, como no Leviatã de Hobbes, de impor a ordem. Em Locke, o Estado foi concebido como um protetor dos direitos naturais ou em Hegel como a personificação da vontade ética universal e da liberdade objetiva em oposição à esfera das relações econômicas e da vida privada. Filósofos que, cada um com sua ênfase, entendiam a função do Estado e da sociedade política como essenciais para a construção da sociedade, sem demonizações.
A associação mecânica e até sinonímica entre “casta” e “sociedade política” adquire em Javier Milei o estatuto de muleta prioritária de propaganda. Certamente este conceito, tão reiterado e simplificado, tem sido abordado de diversas formas na sociologia, onde tradicionalmente tem sido abordado como uma forma de estratificação social rígida e hierárquica. Apesar das diferenças nas abordagens, existe uma preocupação comum sobre como as estruturas sociais determinam o estatuto e as oportunidades dos indivíduos.
Nos clássicos da sociologia, a referência original inevitável é o sistema de organização social da Índia, analogia a que já aludimos num artigo anterior. Max Weber, apoiando-se na sociologia da religião, descreve as castas como grupos sociais fechados que determinam o status e as oportunidades econômicas dos indivíduos. Para ele, as castas são a forma extrema de estratificação social, onde a mobilidade social é praticamente inexistente, consolidando assim uma hierarquia implacável.
Por sua vez, Émile Durkheim, também interessado no estudo da religião e da sociedade indiana, desloca a análise para a solidariedade social e a divisão do trabalho. Analisa em particular como as castas contribuem para a coesão social e a estabilidade da ordem social. Na sua opinião, estas estruturas rígidas, embora restritivas, desempenham um papel crucial na manutenção da diferenciação e especialização de papéis numa espécie de equilíbrio da sociedade.
Mais próximo no tempo, embora eu pessoalmente já o considere um clássico da sociologia, Pierre Bourdieu, ao introduzir o conceito de campo, nos fornece uma ferramenta afiada para analisar com mais precisão o uso do termo casta no discurso de Javier Milei. Pierre Bourdieu define um campo como um espaço social estruturado de posições e relações, onde os agentes e suas instituições competem pelos diferentes tipos de capital (econômico, cultural, social, simbólico) que são específicos desse campo. Neste sentido, o campo político é uma área onde vários atores lutam pelo poder e pela influência, e onde as regras do jogo e as formas de capital são particulares e específicas.
Desta forma, a oposição entre casta e outsider que o discurso traz, representa os primeiros que já ocupam posições de poder no campo político, utilizando os seus recursos e capital para manter o seu status. Javier Milei, ao contrário, pretende ser alguém que desafia as normas estabelecidas no campo e que, portanto, não é contaminado pela corrupção e ineficiência atribuída à “casta”. O termo “casta” é consequentemente usado como ferramenta daquilo que, para Pierre Bourdieu, é capital simbólico. Ao desacreditar a classe política estabelecida, como inimiga omnipresente, Javier Milei procura acumular capital simbólico apresentando-se como portador da verdadeira e legítima vontade popular.
Desta forma, o seu discurso promete uma redistribuição de poder dentro do campo político, o que na verdade implica um deslocamento para integrar-se no mesmo campo, reconfigurando-o. O habitus da “casta política”, isto é, as disposições e práticas internalizadas que orientam o seu comportamento, é retratado negativamente para propor um novo habitus, baseado na negação e afastamento das funções legislativas e deliberativas, do exercício da retórica incendiária e cruel, estabelecendo uma ligação direta com o povo, sem mediação, através das redes. Procura romper com as formas tradicionais de fazer política, apresentando-se como uma alternativa nova, autêntica e fundamentalmente mais eficaz, consciente de que a ausência de eficácia foi um fator cardeal na erosão da legitimidade de todos os seus antecessores.
Enquanto os seguidores entoam cada vez mais os slogans da rebelião do início do século, o governo, paradoxalmente, forja mais pactos com os insultados membros da casta e assume compromissos com a realpolitik. Como argumentei no último artigo, a colaboração da “casta” foi inestimável, assim como os favores por ela recebidos. Contudo, longe de mitigar a ruína do impacto social, agrava a situação, como evidencia a curva descendente de todos os indicadores socioeconômicos. Alarga-se o fosso entre o discurso incendiário e a realidade econômico-social, permitindo-me inferir a emergência de uma explosão, embora hoje seja concebida como impossível. Obviamente, a questão de quando isso possa ocorrer permanece em aberto.
Uma possível resposta poderia ser quando a entonação de “que se vayan todos” retornar às gargantas sociais originais. Nesse caso, a questão não será mais quando, mas sim que alcance terá este novo “todos”.
*Emilio Cafassi é professor de sociologia na Universidade de Buenos Aires.
Tradução: Artur Scavone.
Nota do tradutor
[1] O autor se refere à Lilia Lemoine, uma política argentina associada à coalizão de partidos de centro-direita, conhecida como “La Libertad Avanza”.
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