Por ANSELM JAPPE*
Para compreender o mundo atual, a chave é colocar as categorias centrais da crítica da economia política em funcionamento
Marx publicou O capital há pouco mais de 150 anos. Para os pensadores burgueses, os acadêmicos e a mídia mainstream, Marx está completamente ultrapassado. Onde estão os proletários esfarrapados? Hoje vivemos no mundo das democracias e do livre mercado. A esquerda tradicional poderia objetar, afirmando que o capitalismo está de volta, que há novamente um fosso entre os ricos e os pobres, e que existem outros tipos de subalternos e oprimidos. Eu argumentaria que é possível averiguar atualidade da teoria de Marx de outra maneira: nesse período a superfície do capitalismo passou por grandes modificações, mas seu núcleo continua o mesmo.
Esse núcleo é composto por aquilo que Marx analisou, principalmente, no primeiro capítulo de O capital: mercadoria e valor, dinheiro e trabalho abstrato. Para evitar confusões e mal-entendidos entre trabalho abstrato e trabalho imaterial, é melhor falar da dimensão abstrata do trabalho, de sua natureza dupla. O próprio Marx considerava sua análise da “natureza dupla do trabalho” – abstrato e concreto – uma de suas descobertas mais importantes.[i] O que isso significa? Cada instância do trabalho, sob condições capitalistas (e apenas no capitalismo, não há nada de natural aqui), é, ao mesmo tempo, abstrata e concreta.
Enquanto trabalho concreto, cada atividade produz bens ou serviços, mas a mesma atividade também é um simples dispêndio de energia humana, medido em tempo; uma simples quantidade de tempo, independentemente do que nele foi feito. A dimensão concreta do trabalho corresponde ao valor de uso, e a dimensão abstrata, ao valor (representado pelo dinheiro) da mesma mercadoria. No capitalismo, a dimensão abstrata do trabalho, e de seus produtos, prevalece sobre a dimensão concreta. Nisso consiste a raiz mais profunda do absurdo que constitui o modo de produção capitalista.
Essas são as estruturas subjacentes e fundamentais de toda forma de capitalismo (incluindo suas versões estatais, chamadas de “socialistas” ou “comunistas”). Mas tais estruturas não são neutras nem naturais: elas são historicamente específicas ao capitalismo, e são ao mesmo tempo destrutivas e autodestrutivas. Isso também significa que não se trata de usá-las de uma maneira melhor (socialista, comunista, etc), mas de superá-las e aboli-las. E isso, a princípio, é possível, pois a humanidade viveu por muito tempo sem elas. Alguém poderia dizer que já existia dinheiro, trabalho etc. em outras sociedades, nas sociedades pré-capitalistas; então, seria preciso lembrar que sua função social era diferente e pouco semelhante ao que hoje chamamos de dinheiro, trabalho etc., como confirmam até mesmo certos historiadores não-marxistas (como Jacques LeGoff para a Idade Média, ou Moses Finley para a Antiguidade).[ii]
O reino da mercadoria e do valor, do dinheiro e do trabalho abstrato, tem sua manifestação mais típica e misteriosa no que Marx denominou fetichismo da mercadoria. Essa noção não implica apenas uma apreciação exagerada das mercadorias, como acontece na sociedade de consumo, e também vai além de uma mistificação da natureza real da exploração e da dominação burguesa, um véu que realmente encobre a origem do mais-valor, como defendem os marxistas tradicionais. O fetichismo da mercadoria significa algo mais geral: essencialmente, um sistema onde o que Marx chamou de “sujeito autônomo” reina supremo,[iii] onde os humanos são os servos da economia que eles mesmos criaram e que aparece diante deles como uma força independente.
O fetichismo da mercadoria é a principal forma de mediação social capitalista: atividades concretas e objetos – trabalhos concretos e valores de uso,[iv] digamos – servem apenas para encarnar a “essência real” subjacente da sociedade mercantil: e essa “essência real” é o valor criado pela dimensão abstrata do trabalho, sem qualquer consideração pelo seu conteúdo. Os próprios capitalistas são apenas os executores desta lógica sistêmica anônima – eles não a controlam. Uma subordinação do concreto ao abstrato, uma inversão da relação entre eles e seu caráter dinâmico e destrutivo são as características mais distintas da sociedade capitalista, quando comparada historicamente com outras formas de sociedade.
Quando insistimos na importância do pensamento de Marx para compreender o mundo atual, não afirmamos que se deve necessariamente adotá-lo literalmente, tampouco que é preciso defender suas obras como se fossem textos sagrados. O importante é colocar as categorias centrais de sua crítica da economia política em funcionamento – como tem sido feito nas últimas décadas.[v]
Adotar os conceitos mais revolucionários de Marx significa ir contra quase tudo que o marxismo tradicional defendeu nos últimos 150 anos e, certas vezes, inclusive questionar algumas das teorias do próprio Marx. Isso é especialmente verdadeiro quando se trata do conceito de luta de classes, e também para substitutos como raça e questões de gênero: essas lutas existem e podem ser muito importantes, mas elas não são automaticamente emancipatórias nem anticapitalistas. Nesse período elas ajudaram a integrar, primeiramente, os trabalhadores, e depois as outras classes subalternas, no sistema: não havia mais quase nenhuma contestação do fato de que a vida social está voltada para a multiplicação de valor abstrato por meio do trabalho. O que se demandava era apenas uma distribuição mais igualitária.
Hoje, o capitalismo enfrenta menos os seus adversários declarados, alguns tipos de revolucionários ou algo do gênero, do que os limites criados pelo seu próprio desenvolvimento. Esses limites o acompanham desde o princípio, mas ultrapassaram certo limiar e tornaram-se visíveis nos anos 1970. O primeiro deles é um limite interno: apenas o trabalho vivo cria valor, mas a competição força o capital a valer-se de tecnologias que substituem o trabalho sempre que for possível. No entanto, se menos trabalho é utilizado na produção de uma mercadoria, menos valor ela terá, uma vez que o trabalho é a única fonte de valor. As tecnologias não produzem valor. Menos valor significa uma menor realização de mais-valia e, enfim, menos lucro.
Apenas um aumento contínuo da produção é capaz de conter esta tendência de diminuição da massa de valor. Quanto menos cada mercadoria contém valor – os custos de um carro, por exemplo, diminuíram continuamente no decorrer das décadas – maior terá de ser a sua produção, o número de mercadorias terá que aumentar para que a massa de mais-valor não diminua. Pode-se chamar isso de processo de compensação. Nos últimos quarenta anos, porém, os processos de racionalização e a substituição de trabalho humano por tecnologias avançaram mais rapidamente do que os processos de compensação. O uso de trabalho vivo, produtor de capital, está encolhendo, assim como a massa absoluta de valor e, no fim das contas, a massa de lucro. A lucratividade real é amplamente substituída pela simulação, especialmente pelas finanças. O avanço do setor financeiro global – do que Marx chamou de “capital fictício”[vi] – foi uma resposta à crescente falta de lucratividade real. Uma das consequências disso é a diminuição crescente da oferta de emprego na sociedade do trabalho. E, com isso, toda a ordem social gradualmente colapsa.
O outro grande limite, o externo, é ecológico: o esgotamento dos recursos naturais. A acumulação de valor e de capital é uma acumulação de riqueza abstrata que não possui limites, posto que não busca algo concreto, apenas quantidades abstratas. Mas o valor abstrato precisa se realizar – se materializar – em alguma coisa concreta e, ao menos parcialmente, em objetos materiais (uma vez que a produção não pode limitar-se aos serviços e à comunicação, conforme aqueles que hoje falam em uma “sociedade de serviços” ou em “capitalismo cognitivo” querem nos fazer acreditar). É por essa razão que a lógica do valor leva inevitavelmente à devastação dos recursos naturais.
O desastre ecológico é bastante evidente e altamente discutido, mas enquanto ele não for associado à lógica da produção de valor, analisada por Marx em O capital, não será possível realmente compreender as suas causas e eventuais soluções. Podemos inclusive afirmar que as teorias marxianas do dinheiro e do valor, da mercadoria e do caráter duplo do trabalho, do fetichismo e do sujeito autônomo, hoje são mais relevantes do que nunca, pois seus efeitos ficaram ainda mais evidentes em uma sociedade puramente capitalista do que na sociedade semifeudal a que Marx pertencia. Além disso, nossa compreensão das estruturas psíquicas, em particular do narcisismo, da depressão e dos atos de destrutividade cega continuará fragmentária e superficial enquanto não se considerar o lado subjetivo da lógica fetichista do valor – ela vai muito além do aspecto econômico da vida.
Um século e dois meses depois da primeira edição de O capital, Guy Debord publicou A sociedade do espetáculo. O livro começa com a seguinte afirmação: “toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos”.[vii] A frase é quase idêntica àquela que abre O capital, com a única diferença sendo que Debord escreve “acumulação de espetáculos” onde Marx escreveu “acumulação de mercadorias”.[viii] Com esse détournement (conforme os Situacionistas chamavam o re-uso, e aprimoramento, de materiais culturais existentes), o tom é dado: Debord pretendia, sem declará-lo abertamente, redigir uma espécie de novo O capital, modernizar e adaptar a análise de Marx ao presente, dispor aquilo que Marx poderia ter escrito um século depois.
Ele usa Marx, e especialmente a sua teoria da mercadoria (lida principalmente através da lente de História e consciência de classe, de Lukács) como a base de sua própria teoria, colocando, porém, “espetáculo” no lugar de “mercadoria”. Podemos, portanto, perceber imediatamente que o conceito de espetáculo de Debord significa muito mais do que simplesmente uma crítica da mídia – ao que ele tem sido frequentemente reduzido. Espetáculo é, para Debord, o desenvolvimento contemporâneo da forma mercadoria, e obedece à mesma lógica. A principal obra de Debord claramente pertence ao campo da teoria marxista – um fato que é frequentemente ignorado ou desprezado para colocá-lo apenas nos campos artístico e literário ou para reduzi-lo a um teórico da mídia.
Debord transformou as categorias de Marx, que haviam se transformado em um objeto para debates eruditos, em categorias vivas ao combiná-las com observações acerca da nova sociedade de consumo. Ele contribuiu amplamente para nossa consciência da necessidade de um rompimento radical com as categorias básicas do capitalismo, e não apenas com algumas de suas formas específicas. Ele também ajudou a mudar o foco da análise e da práxis crítica: o que importava não era apenas a esfera econômica e o trabalho, mas também a vida cotidiana e questões como urbanismo e moradia.
Foram as mudanças na própria realidade que trouxeram à superfície o núcleo oculto da teoria de Marx: a crítica do valor e da mercadoria, o trabalho abstrato e o dinheiro. Quando o capitalismo entrou em sua fase de declínio, uma melhor distribuição de sua riqueza não era mais possível, e surgiu a questão de sua superação. O abandono do “compromisso de classe” keynesiano depois dos anos 1970 não se explica apenas por circunstâncias políticas ou por uma “luta de classes a partir de cima”, ele era essencial para a dinâmica de acumulação capitalista e seu desenvolvimento histórico: a substituição do trabalho humano por tecnologias – que não criam valor econômico – provocou uma crise na produção de valor e estimulou a simulação da acumulação por meio do crédito e das finanças.
Não é possível revogar essa evolução e voltar para um capitalismo “razoável”. Em sua fase de declínio, o capitalismo não é mais capaz de oferecer gratificações suplementares à maioria da população, como ele podia em seu apogeu. A questão hoje não é “tomar o poder”, conquistar mais “justiça econômica”, “combinar razões ecológicas e crescimento econômico” ou algo do tipo, mas inventar formas de vida para além da lógica da mercadoria e do trabalho.
O que acontece hoje, porém, é praticamente o oposto. A crise do capitalismo não é nem um pouco idêntica ao avanço de soluções e forças emancipatórias, como sempre acreditaram os revolucionários. O capitalismo teve 250 anos para colonizar todos os aspectos e setores da vida, e frequentemente deixou apenas terra arrasada para trás, em todos os níveis, literalmente e metaforicamente, externamente e internamente. O capitalismo não preparou, de maneira alguma, o terreno para o socialismo; o desenvolvimento das forças produtivas não criou as pressuposições materiais para uma forma superior de vida, conforme se acreditou por tanto tempo; ele nunca teve uma missão civilizatória, como até mesmo Marx defendia.
O capitalismo não é apenas horroroso e injusto, ele também não funciona mais. Um de seus aspectos mais impressionantes é a transformação de massas crescentes de pessoas, grupos sociais inteiros, regiões, países e continentes em contingentes supérfluos diante do ciclo de acumulação e, portanto, para o consumo. Sua força de trabalho não é mais necessária e, por isso, eles não tem mais uma razão – um direito – de existir, aos olhos da lógica do valor. As formas de sofrimento oriundas do clássico problema da exploração estão sendo parcialmente substituídas pelas formas de sofrimento relacionadas à superfluidade e à inutilidade, uma vez que não compensa sequer explorar as pessoas – e todos hoje estão potencialmente ameaçados por isso. Trata-se de uma situação difícil de se explicar através da clássica abordagem centrada na luta de classes, mas que se torna muito mais compreensível se voltarmos à análise que Marx faz da mercadoria e se consideramos a força destrutiva da lógica do trabalho abstrato.
As respostas à barbarização do capitalismo podem ser igualmente bárbaras. É o que temos visto nos últimos anos. O problema não é tanto um retorno do fascismo. Existem diversos movimentos neofascistas (e eles estão mais poderosos do que nunca), além de outros fenômenos que lembram o fascismo. Mas o capitalismo não consiste sempre no retorno no mesmo; e igualar os fenômenos contemporâneos àqueles do passado pode ser um obstáculo para a compreensão dos reais perigos que enfrentamos hoje. Um deles é o que eu chamaria de populismo transversal, que se baseia em um “falso anticapitalismo”. Eu falo em “transversal” pois ele frequentemente mistura argumentos de esquerda e de direita direcionados contra a superfície da sociedade capitalista – e, acima de tudo, contra um de seus aspectos: o financeiro, a especulação, o crédito, os bancos.
Essas perspectivas não explicam as mazelas do capitalismo referindo-se aos processos produtivos, à existência do trabalho e do dinheiro, nem sequer referem-se às classes, como faziam os marxistas tradicionais. Em vez disso, eles se referem aos ditos parasitas localizados na esfera financeira e aos políticos corruptos. Alguns destes movimentos pretendem ser esquerdistas, como o Occupy Wall Street e o Podemos; muitos são abertamente de direita e alguns, como o italiano Cinque Stelle (Movimento Cinco Estrelas), são provavelmente o futuro do populismo, pois que adotam elementos de ambos os campos. A retórica anticapitalista destes movimentos não deve nos enganar, e não constitui algo como uma meia-verdade: o nazismo e outros movimentos fascistas históricos também se proclamavam contrários às “plutocracias” e opunham o “bom” e “criativo” capital, aliado ao trabalho, ao “malvado” e “ganancioso” capital financeiro, associado aos judeus.
Todos conhecem as consequências disso. Essa crítica unilateral do interesse monetário e da distribuição, que evita qualquer crítica do modo de produção capitalista, e especificamente do trabalho, tem uma longa tradição que remonta, ao menos, a Jean-Pierre Proudhon no século XIX, e também é bastante persistente dentro do próprio marxismo tradicional. Ela valoriza o dito concreto (que, na verdade, é pseudo-concreto), como a raça, as pessoas ou o Estado, em oposição à força ameaçadora da abstração (valor) cujos efeitos são percebidos (por exemplo, ao perder-se o emprego devido à globalização econômica), mas não são completamente compreendidos.
Os movimentos populistas, em todas as suas iterações, ajudam o sistema a sobreviver ao mobilizar a raiva de suas vítimas em uma direção completamente errada. No entanto, o problema não é apenas a sedução e a manipulação da mídia: se limitássemos o uso do conceito de espetáculo à esfera midiática, continuaríamos assumindo, ao usar noções como manipulação, a existência uma relação unilateral entre poder político e econômico e as “massas”. Mas, se lembrarmos que o espetáculo de Debord significa a transformação de todos os desejos e necessidades em mercadorias e uma separação estrutural entre atores e espectadores, reduzindo a vida a uma contemplação passiva, então descobriremos que o espetáculo remodelou profundamente os próprios sujeitos e sua estrutura psíquica. Conforme afirma Debord, o espetáculo foi capaz de produzir uma geração que nunca conheceu algo para além dele.[ix] E Debord escreveu tudo isso anos antes da disseminação da cultura digital e virtual, que parece ter gravado ainda mais o capitalismo industrial e a sua lógica em nossas cabeças…
*Anselm Jappe é professor na Academia de Belas Artes de Sassari, na Itália, e autor, entre outros livros, de Crédito à morte: A decomposição do capitalismo e suas críticas (Hedra).
Tradução: Daniel Pavan.
Texto estabelecido a partir de palestra no Congresso Spectacle of Fascism, ocorrido em Vancouver em abril de 2017.
Publicado originalmente na revista Contours, em 2019.
Notas
[i] Karl Marx, Letter from Marx to Engels, 24 August 1867, em MECW (London: Lawrence & Wishart, 1987), 42:407
[ii] Jacques Le Goff, Le Moyen Âge et l’argent: Essai d’anthropologie historique (Paris: Perrin, 2010); Moses Finley, The Ancient Economy (Oakland, CA: University of California Press 1973)
[iii] Karl Marx, O capital, trad. Ben Fowkes (Londres: Penguin, 1990), 1:255
[iv] Reconhecendo que tais termos podem causar alguns problemas
[v] Cf. Moishe Postone, especialmente seu livro Time, Labour and Social Domination (Cambridge: Cambridge University Press, 1993); ver também a Wertkritik alemã (Krisis, Exit!, Robert Kurz), que tem por precursores autores como Lukács, Isaac Runim, Freddy Perlman, a Escola de Frankfurt (especialmente Adorno e Marcuse), e os Situacionistas (especialmente Guy Debord)
[vi] Karl Marx, O capital, trad. David Fernback (Londres: Penguin, 1991), 3:596
[vii] Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo (Rio de Janeiro: Contraponto, 1997)
[viii] Marx, O capital, 1:125. Nesta tradução inglesa, lê-se “imense collection of commodities”
[ix] Guy Debord. Comments on Society of the Spectacle, trad. Malcolm Imrie (Londres: Verso Books, 1990)