Por DANIEL BRAZIL*
Toda canção é política, contribui para a organização concreta do viver
Há vários conceitos na História que apresentam alterações de significado com o passar do tempo. No campo das artes, é um exercício interessante comparar os ditames do naturalismo literário do século XIX com boa parte da literatura que se pratica no século XXI. O que diferencia um jovem escritor contemporâneo que descreve um mendigo procurando comida no lixo nas calçadas de uma metrópole, e uma cena de Aluísio Azevedo, por exemplo? Filtrando a linguagem da época, a diferença é mínima.
A história do século XX, que é a que ainda mais nos influencia (escrevo esse devaneio em janeiro de 2021), com duas guerras mundiais, ascensão e queda do sonho comunista, emergência de novas potências construídas sobre os alicerces do comunismo (China) e, principalmente, o afloramento político das lutas identitárias que demarcam um novo patamar de percepção política. E, por que não?, estética.
A construção e afirmação do feminismo, do movimento negro (no Ocidente), dos grupos ambientalistas, dos povos indígenas (nas Américas), dos LGBT+, provocou uma boa quantidade de rachaduras no status quo. E gerou uma série de ondas criativas, que vem influenciando gerações.
Quando o rap se tornou um gênero dominante nas rádios e ondas virtuais no início do século XXI, desbancando o rock’n roll que imperava há 50 anos, não pareceu causar grande impacto no mundo acadêmico, jornalístico, literário, teatral, etc. O motivo é simples: os detentores do discurso dominante cresceram ouvindo rock (ou samba, bossa-nova e MPB, no caso brasileiro) e aquilo era “coisa de adolescentes”.
Como sempre ocorre desde a pré-história, os adolescentes cresceram e estão aí, querendo tomar as rédeas do poder. Vivem em um novo mundo, onde o virtual é tão ou mais importante que o real, e que a conexão audiovisual entre grupos antes isolados pode se configurar em um movimento, uma onda, um rolê ou uma rebelião.
Em um pequeno livro escrito em 1976,* o filósofo português José Barata-Moura, de formação marxista, que além de ter sido reitor da Universidade de Lisboa é também compositor e cantor, afirma que “toda canção é política”. Para ele, qualquer produção artística dita alienada ou escapista, seja boa ou ruim (qualidade é outro tema discutível, aliás), “contribui para a organização concreta do viver”, transmitindo ou perpetuando valores que interessam ao sistema. Para ele, o imperialismo exporta música (e cinema, acrescento) que “desempenha um poderoso papel político nos ideais que difunde, nas formas de convívio que patrocina e divulga.” Esse raciocínio aplicado hoje à avalanche de música gospel que invadiu os meios de comunicação, por exemplo, corrobora o papel político destas canções e das igrejas que as promovem.
O rap, ainda que não seja música strictu sensu**, pode ser classificado em grande parte como arte engajada. Critica poderosos, confronta a violência policial, denuncia desigualdades, convoca a união entre pares. No Brasil, muitas vezes aponta para o reconhecimento da raça, da cor negra, as origens afro, embora não se limite a isso.
Hoje é possível ouvir nas redes sociais rap feito por jovens indígenas, cantado em língua nativa. De jovens nascidas na periferia, reivindicando o direito ao corpo. Ou canções pop de artistas defendendo a causa LGBTIQ+. Ou libelos musicais em defesa da natureza, punks atacando o capitalismo predatório, folk singers alertando para os efeitos do aquecimento global ou bandas de garagem lançando invectivas a governos autoritários.
Esse cadinho efervescente de elementos sociais se decanta em novas formas de canção de protesto, de arte engajada, de slogans de guerra. Podem ser denúncia social, propaganda política, hino identitário ou gritos de alerta, sintomas de um mundo em desequilíbrio. Podem embalar passeatas, agregar manos e manas, cutucar valores estabelecidos, defender minorias ou atacar os detentores do poder.
Perante este cenário, só quem não enxerga o próprio tempo pode classificar a música engajada como um fenômeno datado, reminiscência do século XX, que no Brasil costuma ser identificada com a era dos festivais e nomes como Vandré, Taiguara, Chico Buarque, Sérgio Ricardo, Gilberto Gil, Violeta Parra, Victor Jara, Inti-Illimani, Pete Seeger, Bob Dylan, Joan Baez, John Lennon, Lluís Llach, Zeca Afonso e outros tantos.
O grande diferencial é que a música engajada e, por extensão, a arte engajada, sempre houve e sempre haverá enquanto formos humanos. Censurar isso é que vai contra a correnteza da História. Viva Chico César!
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.
Notas
* Estética da canção política – alguns problemas. Livros Horizonte, 1977.
**Rap, do inglês Rhythm and Poetry, ritmo e poesia. Música, além destes dois elementos, incorpora a melodia como elemento essencial. É interessante como astros do rap brasileiro, como Criolo ou Emicida, buscam aproximações e mesclas com a música popular, especialmente o samba, expandindo as limitações do gênero.