Por LISZT VIEIRA*
Os crimes de Bolsonaro não se limitaram à área da saúde
“Um fraco rei faz fraca a forte gente” (Camões, Os Lusíadas, Canto III).
Uma cópia do Relatório final da CPI da COVID será enviada ao TPI (Tribunal Penal Internacional), em Haia, na Holanda. O presidente Jair Bolsonaro é acusado de condutas que configuram crime contra a humanidade, um tipo penal aceito para julgamento pela Justiça internacional. O senador Randolfe Rodrigues, vice-presidente da CPI, afirmou que o Relatório será votado em 20/10 e levado à Procuradoria Geral da República no dia seguinte. Depois, o Relatório será levado ao Tribunal Penal Internacional: “Não pode tanto trabalho ser simplesmente desperdiçado, não ter consequências. A memória de 600 mil brasileiros exige e cobra de nós essas providências e nós a cumpriremos” (O Globo, 12/10/2021).
A insistência em tratamentos sem eficácia, como a cloroquina, por exemplo (o que contribuiu para as mais de 600 mil vítimas da pandemia), a sabotagem e o atraso na vacinação, os danos causados aos povos indígenas, são algumas das acusações. A estratégia de acionar o TPI irá certamente ampliar o desgaste à imagem de Bolsonaro no mundo, ainda que os resultados jurídicos sejam incertos.
Em 2019, Bolsonaro foi denunciado à Corte Internacional pela Comissão Arns por “crimes contra a humanidade” e “incitação ao genocídio de povos indígenas” do Brasil. Especialistas em direito internacional se dividem quanto à possibilidade de resultados concretos.
“Não vejo com facilidade”, afirma Alexandria Alexim, professora de direito internacional da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro.
“Até porque não existe jurisprudência. Eu procurei no TPI e não vi julgados semelhantes. A Covid, a pandemia, são questões muito novas para o Tribunal internacional” (UOL, 11/10/2021).
Por outro lado, a única juíza brasileira que já atuou na Corte (2003-2016), Sylvia Steiner, acredita que há “prova abundante” para uma condenação internacional futura de Bolsonaro. Segundo ela, no que se refere aos crimes de responsabilidade, as provas são robustas. O crime de causar epidemia e o desrespeito às medidas sanitárias estão muito bem demonstrados. Se tivessem sido tomadas as medidas adequadas no momento certo, nós não teríamos chegado neste número espantoso de 600 mil mortes.
Na opinião da juíza Sylvia Steiner, houve realmente um projeto, uma política propositada de gerar a chamada imunidade de rebanho. Sendo uma política, é um elemento de contexto de crime contra a humanidade. Não era simplesmente ignorância, incompetência e falta de conhecimento. Foi a implementação de uma política de que uma suposta infecção da população geraria um resultado positivo. Não se usa uma população como cobaia de um teste; isso, em tese, é um crime contra a humanidade (UOL, Estadão Conteúdo, 26/9/2021).
Como resultado temos mais de 600 mil mortos, desemprego, fome e miséria se alastrando e extermínio dos povos indígenas e da Floresta Amazônica. O Brasil endossou o tratado que criou o TPI e se submeteu à jurisdição do Tribunal. Podem ser apresentadas ao TPI denúncias relacionadas a três tipos penais previstos no direito internacional: genocídio, crime contra humanidade e crimes de guerra. No caso de Bolsonaro, a acusação de genocídio só seria válida no que se refere aos povos indígenas que receberam a poção de cloroquina, inútil para combater a Covid, e que muitas vezes foram exterminados por garimpeiros, mineradores e fazendeiros, com apoio direto de Bolsonaro. Já no que diz respeito a crimes contra a humanidade, a base jurídica é mais ampla, pois abrange as mortes pela Covid, estimuladas pelo negacionismo, propaganda de ineficazes tratamentos precoces e sabotagem da vacina pelo presidente.
Diversas organizações ambientalistas, cientistas e ex-juízes, tendo à frente a entidade austríaca All Rise, levaram em 12/10/2021 uma denúncia contra o presidente brasileiro no TPI por crimes contra a humanidade. A denúncia leva o título “O planeta contra Bolsonaro”. Essa é a sexta denúncia contra Bolsonaro que se conhece no TPI. Mas a primeira a tratar especificamente de sua política ambiental. Segundo a denúncia, “as ações de Bolsonaro e seu governo são um ataque amplo e sistemático à Amazônia, suas dependências e seus defensores, e que resultam não só na perseguição, assassinato e sofrimento desumano de milhões de pessoas na região, mas também no mundo inteiro”. O caso é apresentado às vésperas da cúpula mundial do Clima, em Glasgow, a ser realizada em novembro deste ano.
A destruição do bioma amazônico afeta a todos, em todo o mundo, afirma a denúncia. “As evidências mostram como as ações de Bolsonaro estão diretamente ligadas aos impactos negativos da mudança climática em todo o mundo”, explicou o fundador da All Rise, Johannes Wesemann. A denúncia afirma ainda que, segundo as estimativas, “as emissões atribuíveis ao governo Bolsonaro causarão mais de 180.000 mortes por excesso de calor em todo o planeta nos próximos 80 anos com base nos comprometimentos climáticos atuais”. Com a mudança do clima, as ondas de calor em todo mundo aumentam em número, intensidade e duração. 37% das mortes por calor nas últimas três décadas são atribuídas à mudança climática global, o que equivale a milhares de mortes anualmente (UOL, 12/10/2021).
Os crimes de Bolsonaro não se limitaram à área da saúde. Ele assumiu a estratégia de Olavo de Carvalho/Steve Bannon, segundo a qual é preciso primeiro destruir tudo o que é público para somente depois reconstruir, pela iniciativa privada. Ele deixou claro ao assumir a presidência: “Vim para destruir, não para construir”. Tem sido eficiente nessa tarefa. Além das mortes pela negação da Covid, sabotagem da vacina e apoio oficial ao uso e distribuição aos hospitais de todo o Brasil de remédios inúteis para a Covid, como a cloroquina, vem destruindo os programas de educação, cultura, pesquisa científica, meio ambiente, direitos humanos e degradando a política externa, tornando o Brasil um pária na comunidade internacional.
Quando o velho está morrendo e o novo não pode nascer, surgem os monstros, dizia Gramsci em seus Cadernos do cárcere. Mas o nosso monstro parece não ter vida longa. Sua base de apoio, principalmente os empresários e os militares, diante do fracasso da terceira via está amadurecendo a ideia de transformar a terceira em segunda via, sem Bolsonaro. Neste caso, não se sabe o que ele faria, se tentaria um golpe ou se aceitaria se candidatar a deputado ou senador para obter imunidade parlamentar e escapar da Justiça. É uma possibilidade, entre outras.
Resta ao movimento popular assumir novas formas de luta para ampliar o apoio às manifestações de rua Fora Bolsonaro e elaborar um Programa Mínimo de desenvolvimento sustentável com proteção social, com o objetivo de se fortalecer e pressionar pela esquerda a candidatura Lula, que vem se afirmando como uma candidatura de centro com grandes possibilidades de vitória.
*Liszt Vieira é professor aposentado da PUC-RJ. Autor, entre outros livros, de Identidade e globalização (Record).
Publicado originalmente no portal Carta Maior.