Por MANUEL DOMINGOS NETO*
Antônio Barra Torres, o novo herói dos democratas, integrou o consórcio que jogou o país na lama
Bela tacada, a do Almirante! Num lance, virou celebridade e herói da esquerda. Que importa haver ajudado a eleição do fascista? Nem vale lembrar que tenha subido sem máscaras em seu palanque no auge da epidemia! Ou ainda que esteja envolvido em trapalhadas que atrasaram a vacinação!
Ninguém ligou para o fato de o médico-marinheiro, sem credenciais, ter disputado e ganho seu lugar na agência que cuida vigilância sanitária. Na sabatina no Senado que aprovou seu nome, o candidato nada teve a dizer. Aliás, disse que adorava automobilismo e viagens às terras distantes.
Há um século a esquerda busca dissidentes militares. Na única tentativa de assalto ao poder, em 1935, confiou apenas na farda. Imaginou que bastaria a legenda heroica do Cavaleiro da Esperança. Na luta pelo petróleo, agarrava-se aos confrontos no Clube Militar. Generais direitistas foram mitificados por defenderem a autonomia energética, como se isso não fosse o básico do básico da defesa nacional.
Lott, reacionário de quatro costados, entrou para a história em letras grandes por, ironicamente, quebrar a legalidade para preservar a Constituição. (Volta e meia me perguntam se não pode surgir outro Lott). Durante a ditadura instaurada em 1964, a esquerda auscultava ansiosa as dissidências da caserna. Vibrou com os rompantes de Hugo Abreu. No sufoco, qualquer reacionário fardado serviria. João Goulart apostou exclusivamente em generais aclamados como sendo “do povo”.
Em 1978, Euler Bentes Monteiro quebrou o galho da oposição consentida. O homem fora protegido pelo violento Albuquerque Lima e pelo assassino Ernesto Geisel, que lhe deu a quarta estrela. Ao lado de Paulo Brossard, se apresentaria ao colégio eleitoral para ser derrotado por João Figueiredo. Com o golpe de 2016 em curso, congressistas de esquerda foram à tribuna para cumprimentar o general Villas Boas por seu aniversário.
Eis que surge, no ambiente de terra arrasada, na desesperante tristeza coletiva, um marinheiro-médico desafiando o presidente da República. Sua cartinha de impacto seguiu o molde consagrado por Benjamin Constant, o “fundador da República”: arguiu sua ascendência pobre, o selo de moralidade familiar, sua ascensão pelo mérito e defendeu seus subordinados institucionais. Falou grosso, demandando a retratação do fascista.
A consagração foi instantânea. A esquerda foi ao delírio. Outra tacada de efeito e o Almirante entrará na lista de candidatos à vice de Lula.
Com seus parceiros, o marinheiro-médico integrou o consórcio que jogou o país na lama. Agora, num beco sem saída, soma-se, glorificado às hostes democráticas. Reza a cartilha do golpismo de última geração: criemos o problema para que possamos apresentar a solução. Ponha-se o bode na sala para sacá-lo gloriosamente, quando e se for o caso.
Sabendo que Bolsonaro está destinado à lata de lixo, os golpistas buscam por todos os meios desvencilhar suas imagens do estropício. O marinheiro-médico deu sua contribuição neste sentido. Ninguém sequer perguntou se estava agindo em acordo com seus superiores hierárquicos. O Almirante atacou de policial bonzinho. É óbvio que ajuda a desmontar o mito fascista, além de contribuir com a melhoria da imagem da farda. É obvio também que ajuda a construir uma saída pela direita.
Precisamos de uma ampla frente para tirar o país do fosso, não de um arranjo pouco conspícuo para continuar negando-lhe um futuro promissor. Os democratas deste país precisam conter sua avidez por salvadores fardados.
*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC/UFF, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.