Por AFRÂNIO CATANI*
Comentário sobre o livro de Jean-Philippe Toussaint
1.
Jean-Philippe Toussaint (1957) nasceu em Bruxelas, recebeu vários prêmios literários e foi indicado a muitos outros. Também cineasta e fotógrafo, tem seus mais de 20 livros traduzidos em mais de uma vintena de idiomas. Seu livro O banheiro (1985), e alguns outros escritos ao longo de quarenta anos, foram considerados revolucionários e inovadores, desde o nouveau roman.
Na página 31 de L’instant précis où Monet entre dans l’atelier (O instante preciso em que Monet entra em seu ateliê), Jean-Philippe Toussaint agradece ao amigo Ange Leccia (1952), pintor, fotógrafo e cineasta francês que lhe instigou a escrever sobre Oscar-Claude Monet (1840-1926). Ange Leccia é o autor da exposição Aprés Monet, apresentada no Museu de l’Orangerie (2 de março a 7 de setembro de 2022).
O trabalho de Ange Leccia consistiu em uma instalação que explorava a relação entre a obra de Monet e a arte contemporânea, valendo-se de vídeos para criar uma experiência imersiva dialogando com o universo cromático e emocional do expressionista, estabelecendo pontes com a cultura japonesa e a abstração (informação extraída do material de imprensa da época).
Matheus Rocha, por sua vez, escreveu sobre a exposição que reúne 32 obras de Claude Monet no MASP, onde se “registrou a exuberância do meio ambiente em resposta ao espaço estéril e áspero das cidades”. A água, nos lembra, fascinava o pintor de tal maneira que ele “transformou uma embarcação em ateliê flutuante para retratar os detalhes do rio Sena”.[1]
Em seu artigo Matheus Rocha cita Ana Magalhães, professora no Museu de Arte Contemporânea da USP, que entende que Claude Monet via a natureza como “uma forma de se distanciar da paisagem industrial, entendida como um lugar contaminado e degenerado”, pois queria pintar paisagens na iminência de desaparecer, afetadas pela produção industrial e pelo crescimento das cidades.
Não foi por outra razão que o artista decidiu, segundo Ana Magalhães, construir “um paraíso artificial”: comprou um terreno no vilarejo de Giverny, no nordeste da França, e “projetou um jardim luxuriante, onde plantou ninfeias e mandou desviar um afluente do rio Sena para criar um lago com uma ponte japonesa. Essa paisagem idílica inspirou algumas de suas obras mais famosas”.
2.
O livro de Jean-Philippe Toussaint tem apenas 32 páginas e 448 linhas, com cerca de 34 caracteres em cada uma delas, ou seja, pouco mais de 15 mil caracteres com espaço. A epígrafe que utiliza é uma frase do próprio Monet: “Estou tão absorto em meu maldito trabalho que, assim que me levanto, corro para o meu grande ateliê”.
Claude Monet morreu em 1926, com 86 anos, em consequência de um câncer de pulmão. Nunca deixou de pintar, e seu corpo foi sepultado no cemitério da igreja de Giverny, Departamento de Eure, na Alta Normandia, norte da França.
Os nove parágrafos do romance iniciam-se praticamente da mesma forma, com um narrador/observador que nos conta acerca do cotidiano do pintor e o que ele deseja para o artista: “Eu gostaria de eternizar Monet no instante preciso em que ele entra no ateliê, em que ele empurra a porta de seu ateliê no dia nascente, ainda cinza” (p. 9).
É o momento do dia que o narrador mais aprecia, em que a alvorada é fresca e o ar vivo picota as bochechas, logo depois das seis e meia da manhã, uma manhã como as de outros dias na Normandia. Estamos no verão de 1916. Monet encontra-se no seu grande ateliê, construído no alto de seu jardim, “para poder trabalhar nos vastos painéis das Nymphéas” (p. 10).
No parágrafo seguinte, o narrador acrescenta que ao entrar em seu ateliê o pintor “cruza a fronteira entre a vida, que abandona atrás de si, e a arte, que ele irá encontrar” (p. 10). Atrás dele, de seu corpo volumoso que penetra no ateliê das Nymphéas, a vida deixa o seu rastro, a vida de miséria, da Primeira Guerra Mundial, que ribomba às portas de Giverny. Mas quando o artista cria, os acontecimentos do mundo não importam mais para ele (p. 10-11).
Logo pela manhã, o edifício que abriga seu atelier ainda está na penumbra, reina um odor de massa, cola molhada, tabaco e óleo de linhaça; o silêncio é completo. Há um sofá sob o qual se encontram um robe de chambre, um chapéu e uma grande capa negra disforme, além de pincéis, telas etc. (p. 12).
Claude Monet trabalha na incerteza, não sabia que aquilo que está pintando receberia mais tarde o nome de Nymphéas (p. 14). Em um dia qualquer de 1916 ou 1917, os painéis em que trabalha há meses e que ainda se encontram inacabados, estão na penumbra, dispostos nas paredes de seu atelier, com vários tons de azul (p. 15).
Somos informados que o artista, depois de meses, não deixa mais “seu reino”, não abandona o ateliê, não recebe visitas em Giverny. “Ele não frequenta mais os colecionadores e os marchands, além de não realizar qualquer transação comercial com as pessoas que se encontram próximas”. A solidão, para ele, não é uma aposentadoria, é uma condição de sua arte (p. 16).
Claude Monet e Marcel Proust: o que o escritor fez com as palavras, “transformando suas sensações e sua observação do mundo em um conjunto material de caracteres tipográficos”, o pintor fará com as cores e os pincéis. Sua obra é uma operação de transubstanciação que vai ocupar seus últimos anos de vida: “é a conversão da substância efêmera e palpitante da vida em uma matéria puramente pictorial” (p. 17-18). O que se vê em seu ateliê, ao longo das paredes, “não é nada além de paisagens de água e luz, fragmentos de ramos inclinados de salgueiros chorões, nuances azuladas, céus transparentes” (p. 18).
Claude Monet durante muito tempo não tinha a menor ideia de que iria fazer seus painéis decorativos. A guerra terminou e em 12 de novembro de 1918, o dia seguinte ao armistício, ele escreveu a Georges Clemenceau (1842-1929), estadista francês e primeiro ministro (1917-1920), e seu amigo, dizendo que estava terminando dois grandes painéis decorativos e que gostaria de oferecê-los ao estado. Georges Clemenceau o convenceu a doar o conjunto de seu trabalho e as Nymphéas, “ainda no limbo, inacabadas, já são consagradas como uma obra de paz” (p. 19). Durante mais de oito anos, até o fim de sua vida, as Nymphéas “será o último embate entre Claude Monet e a pintura” (p. 19).
Jean-Philippe Toussaint entende que a partir de 1918 Claude Monet coloca toda a sua energia não para terminar as Nymphéas, mas “para continuar o seu inacabamento, a poli-la, a aperfeiçoá-la (…) Ela será a eterna tela de Penélope, que ele tecerá e se deterá até o seu último sopro de vida, pois terminar as Nymphéas é aceitar a morte” (p. 20).
Claude Monet é um velho senhor de barba branca, sendo que a ideia da morte não o abandona e modifica sua percepção do mundo. Entretanto, se ele aceita a morte como o fim natural de toda a existência humana, o drama que o revolta, que o desespera e que o indigna, é a deterioração de sua vista. “O nevoeiro começa a invadir seu campo de visão. A percepção dos azuis se altera, os vermelhos tornam-se lamacentos. As formas empalidecem, as cores falham” (p. 27).
Meses mais tarde acredita que ficará cego, “vendo o mundo desaparecer em uma bruma escura”, fica despedaçado e deve deixar de pintar. A ideia da morte ressurge em seu espírito, “acompanhando cada hora de inação forçada” (p. 28). Seus exames oftalmológicos revelam que tem visão quase nula à direita e 1/10 à esquerda, o que o leva a uma intervenção cirúrgica no início de 1923. Ele passa mal, fica ansioso, se desespera, não suporta a compressa que lhe cobre os olhos e a arranca depois de alguns dias (p. 29).
Retorna ao ateliê, que ficou abandonado durante meses, ainda convalescente, fragilizado, devido à operação da catarata. Tem pressa e pretende entregar as Nymphéas ao Estado na data combinada (p. 29). Ele pega seus pincéis, toca na tela delicadamente, modula, vai pintando devagar (p. 29-30). Não está satisfeito, insiste, recomeça, mas a pintura lhe resiste, lhe refusa.
Mas ele não desiste, é obstinado, avança, retoca, recomeça. “Não há mais vestígio de seu corpo terrestre no ateliê, seu espírito se dissolve na pintura. Monet torna-se pintura. Tornou-se passagem de água, fluidez, ondas, respiração. As horas passam, imóveis, no ateliê, elas passam no tempo jamais suspenso das Nymphéas” (p. 30).
O narrador sabe que não haverá mais aquele instante preciso em que Claude Monet entrará em seu ateliê, de manhãzinha. “Monet pode fechar os olhos e relaxar – pintar as Nymphéas foi para ele a extrema-unção mais apaziguadora” (p. 30).
*Afrânio Catani é professor titular sênior da Faculdade de Educação da USP. Autor, entre outros livros, de Origem e destino: pensando a sociologia reflexiva de Bourdieu (Mercado de Letras).
Referências

Jean-Philippe Toussaint. L’instant précis où Monet entre dans l’atelier. Paris, Les Éditions de Minuit, 2022, 32 págs. [https://amzn.to/450csYi]
Nota
[1] Matheus Rocha. “Pinturas de Monet no Masp veem a natureza prestes a ser engolida pelo avanço industrial”. “Ilustrada”. Folha de S. Paulo, p. B10-B11, 16.05.2025.
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