Ó Europa, hoje és nevoeiro

Imagem: Johannes Plenio
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FLÁVIO AGUIAR*

Na Europa os conservadores tradicionais se veem diante do impasse: se forem mais para a direita, poderão ser engolidos pela extrema direita; se permanecerem onde estão, pode lhes suceder o mesmo

1.

O resultado da eleição legislativa de 10 de março passado em Portugal provocou uma onda de comentários assinalando o progresso da extrema direita no país. O partido Chega, liderado pelo jurista André Ventura, obteve 18,06% dos votos, conseguindo o terceiro lugar e catapultando seu número de deputados na Assembleia da República para 49 entre 230. Alguns comentaristas chegaram a afirmar que, ainda que não venha a fazer parte do futuro governo, o Chega e André Ventura foram os grandes vencedores do pleito, e provavelmente serão o fiel da balança no parlamento.

Ao mesmo tempo, o resultado eleitoral expôs o dilema da Aliança Democrática, de centro-direita, liderada pelo Partido Social-Democrata que, apesar do seu nome, pertence ao campo conservador tradicional. A AD ficou com 29,49% dos votos e 79 deputados, apenas dois a mais do que o Partido Socialista, de centro-esquerda, que ficou com 77 deputados e 28,66% dos votos, numa diferença mínima de 0,83% em relação ao vencedor.

A Aliança Democrática vê-se agora diante do dilema: ou negocia com o Chega para governar ou com seus tradicionais adversários, os socialistas. Ou ainda assume governar em minoria, tendo de negociar caso a caso com estes dois contendores, além dos pequenos partidos que, seja à direita, seja à esquerda, não têm condições para oferecer uma maioria estável de votos.

De momento, o líder da Aliança Democrática, Luís Montenegro, do Partido Social-Democrata, anunciou que não pretende formar uma aliança com o Chega. Sua posição é frágil, pois, por exemplo, se não conseguir aprovar o Orçamento, o presidente do país, Marcelo Rebelo de Sousa, será forçado a chamar novas eleições.

2.

A situação complicada de Luís Montenegro em Portugal é a mesma de outros líderes conservadores tradicionais na Europa. A extrema direita é parte integrante do governo conservador na Finlândia e dá apoio decisivo para o governo igualmente conservador na Suécia. A ultradireitista Giorgia Meloni, com seu partido Fratelli d’Italia, atropelou os demais conservadores e lidera hoje o governo em Roma, saindo de 1,9% dos votos e nenhum deputado eleito em 2013 para 26% em 2022, com 26 deputados. 

Na Espanha o tradicional Partido Popular aceita negociar regionalmente com o Vox, que se declara herdeiro do falangismo do ex-ditador Francisco Franco.

Na Holanda, o radical Gert Wilders desistiu de formar um governo por falta de alianças, mas a situação dos demais partidos está longe de ser confortável.

Na França Marine Le Pen, do Rassemblement National (Reunião Nacional) vem crescendo de eleição para eleição presidencial, e é uma séria candidata na próxima, prevista para 2027.

Na Alemanha, o Alternative für Deutschland, que tem membros acusados de serem neonazistas, é a segunda força eleitoral nas atuais pesquisas de intenção de voto para 2025. Na União Democrata Cristã, da direita tradicional, a posição ainda dominante é a de não negociar com o AfD, mas há correntes dentro do partido que admitem essa possibilidade.

Na Áustria o Partido da Liberdade, radical de direita, é o líder em intenções de voto nas eleições previstas para o segundo semestre deste ano e, se confirmar esta posição, deverá propor uma aliança com o tradicional direitista Partido do Povo.

Por trás deste crescimento da extrema direita tirando votos de todos os partidos mas, sobretudo, da direita tradicional, jaz uma condição que raramente é comentada nas mídias mainstream da Europa e também de outros continentes.

3.

A Europa tem um carro-chefe, que é a União Europeia. Esta começou a ser construída após o fim da Segunda Guerra, num momento em que na Europa Ocidental o pensamento hegemônico, mesmo entre os conservadores, era de raiz social-democrata, com suas consistentes políticas sociais, como uma alternativa ao comunismo dominante na “outra Europa”, a Oriental, sob a batuta da hoje extinta União Soviética. 

Entretanto, ela foi criada formalmente pelo Tratado de Maastricht, assinado em 7 de fevereiro de 1992 e em vigor a partir de novembro do ano seguinte. Nesta altura, a União Soviética já não existia, o mundo comunista se esboroava e a hegemonia do pensamento social-democrata na Europa entrava em declínio. Em seu lugar crescia a hegemonia do pensamento neoliberal, com seus planos de austeridade e o retraimento das políticas sociais, criando passo a passo uma sensação de insegurança e desamparo. A atual guerra na Ucrânia acentuou esta sensação, promovendo saltos inflacionários em toda a parte e empurrando o continente para um beco recessivo.

Ou seja, a política economicamente conservadora que se impôs na União e na Europa do século XXI minou as bases dos políticos conservadores tradicionais, levando de roldão os social-democratas, verdes e socialistas que também foram enfraquecendo suas plataformas sociais. As esquerdas, divididas, não têm conseguido se afirmar como opção. As extremas direitas começaram a faturar votos, com suas bandeiras fáceis e simplistas de xenofobia, nacionalismos excludentes e dúvidas quanto à própria União Europeia.

Seguindo uma triste tradição, diante de crises econômicas profundas a Europa volta a adernar para a direita radical e busca um culpado “diferente”. Antes foram os judeus; hoje são os muçulmanos, os imigrantes ou refugiados do “Sul do Mundo”. E os conservadores tradicionais se veem diante do impasse: se forem mais para a direita, poderão ser engolidos pela extrema direita; se permanecerem onde estão, pode lhes suceder o mesmo… Poderão dar um salto mágico, mudando suas políticas e sua forma de pensar, contribuindo para a sobrevivência de uma Europa democrática? Só podemos glosar o poeta português Fernando Pessoa: “Tudo é incerto e derradeiro/Tudo é disperso, nada é inteiro/Ó Europa, hoje és nevoeiro”.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Cinismo e falência da crítica
Por VLADIMIR SAFATLE: Prefácio do autor à segunda edição, recém-publicada
A estratégia norte-americana de “destruição inovadora”
Por JOSÉ LUÍS FIORI: Do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre EUA, Rússia e China
O pagador de promessas
Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO: Considerações sobre a peça teatral de Dias Gomes e o filme de Anselmo Duarte
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
Na escola ecomarxista
Por MICHAEL LÖWY: Considerações sobre três livros de Kohei Saito
O sonho da “boa vida”
Por GERSON ALMEIDA: A transição ecológica precisa de novos sujeitos sociais e mais imaginação democrática
Entre naturalismo e religião
Por JÜRGEN HABERMAS: Introdução ao livro recém-editado
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES