Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*
No Brasil não tem bastado às classes dominantes superexplorar, elas também precisam experimentar o gozo de humilhar a classe trabalhadora
“E assim, chegar e partir / São só dois lados / Da mesma viagem / O trem que chega / É o mesmo trem da partida”
(Encontros e Despedidas – Milton Nascimento)
Como explícito no filme de Sérgio Bianchi, Cronicamente inviável, no Brasil não tem bastado às classes dominantes superexplorar, elas também precisam experimentar o gozo de humilhar a classe trabalhadora.
É somente dessa forma que se pode entender a atitude do Sr. Paulo Guedes, Ministro da Economia, que, mesmo diante do enorme sofrimento dos trabalhadores e trabalhadoras, aumentado ainda mais no período da pandemia, veio a público para anunciar a intenção do governo de criar a “Nova Carteira Verde e Amarelo”, que traria a previsão de uma contratação por hora, sem qualquer encargo trabalhista, inclusive Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e contribuição previdenciária.
Mas nem lhe bastou o prazer de anunciar mais uma redução de direitos sociais em meio ao sofrimento alheio, ainda lhe sobrou sentimento para espezinhar trabalhadores e trabalhadoras, dizendo que a tal “Nova Carteira Verde e Amarelo” traria aos trabalhadores o benefício de poderem prestar serviços a vários “empregadores” ao mesmo tempo e que essa forma de trabalho seria uma “ponte” de transição para entre “a assistência social do governo e os contratos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)”, ou, dito de outro modo, uma “espécie de ‘rampa’ para o trabalhador informal subir e entrar no mercado formal de trabalho” [1].
Sendo mais do que evidente que a “rampa” serviria, isto sim, para a descida em direção da informalidade generalizada, promovendo a decadência total da nação, nem vale comentar o desacerto lógico do argumento do Sr. Guedes, até porque o ponto ao qual se chega com essa fala vai muito além do limite da racionalidade humana, ao menos se considerados os aprendizados historicamente acumulados.
E não foi diferente a atitude do presidente do Banco Santander no Brasil, Sr. Sergio Rial, manifestada em 26 de junho, quando, tratando do “trabalho remoto” e partindo do pressuposto de que esse tipo de trabalho gera “uma vida mais fácil” para os trabalhadores e trabalhadoras, sugeriu que essa condição bem que poderia ser convertida em “redução voluntária dos salários”. Em suas palavras: “A gente tá discutindo, se em tudo isso de poupar tempo, você deixa de gastar combustível, tua vida fica mais fácil, por que não talvez dividir uma coisa dessa com a empresa? Por que que não pode ser um voluntário com alguma abdicação de algum benefício, de algum salário, desde que seja voluntário… e isso, nós vamos construir de uma maneira com diálogo, mas acho que esse é o caminho que pelo menos nós, como Santander, vamos.”[2]
A essa gente não bastou destruir o projeto social constante da Constituição Federal, que previa um sistema de Seguridade Social baseado na dignidade humana, na valorização social do trabalho e da livre iniciativa, na função social da propriedade, no desenvolvimento da economia sob os ditames da justiça social e na efetivação dos direitos trabalhistas como forma de elevar a condição social e econômica dos trabalhadores.
Não lhes bastou, no percurso da caminhada de destruição do pacto constitucional, “conquistar” (no campo dos arranjos políticos burocráticos), banco de horas, contrato parcial, contrato provisório, terceirização de atividade-meio, “direito potestativo de resilição contratual”, restrição e opressão ao direito de greve, utilização ilimitada de horas extras, regime de 12×36, contenção de direitos das trabalhadoras doméstica, lei de recuperação judicial etc.
Ainda lhes restou disposição e satisfação para expressar o discurso de que essas retrações de direitos eram necessárias porque estavam sendo maltratados pela CLT dá década de 40 (que já não existia há muito tempo) e ainda culpando os trabalhadores e trabalhadoras, em razão de seus “direitos excessivos”, pelas suas dificuldades econômicas (mesmo que experimentassem lucros anuais exorbitantes, advindos, também, das políticas de renúncia fiscal promovidas por sucessivos governos sob ameaças das grandes empresas de deixarem o país caso não lhes fosse concedida redução de custos, ou do desrespeito reiterado da legislação, seja não efetuando recolhimento das contribuições sociais – rebaixando ainda mais o projeto de Estado Social[3] –, seja não pagando os já reduzidos direitos trabalhistas, ou da “simples” prática de atos fraudulentos[4]).
Com nova onda de expressão e difusão midiática intensa do discurso de sofrimento das empresas, reiterando o ataque às “normas antiquadas” da CLT (fala expressa igualmente pelo agronegócio, mesmo que a legislação trabalhista, no Brasil, só tenha chegado ao campo de forma incipiente em 1963 e de modo formal mais integralmente em 1988 – para ser alvo de fiscalização, rudimentar, apenas a partir de 1995) e a culpabilização dos direitos trabalhistas pela “crise econômica” (mesmo concretamente inexistente para os principais personagens da expressão do argumento), chegou-se, em 2017, à “reforma” trabalhista, que lhes concedeu: ampliação da terceirização para atividade-fim; trabalho intermitente; retração da ação sindical; redução generalizada de direitos por via negocial coletiva; transformação em lei dos entendimentos jurisprudenciais em favor dos interesses empresariais, limitação do acesso à Justiça do Trabalho etc.
No período da pandemia, novamente com os mesmíssimos argumentos (esquecendo-se de que as normas da “reforma” trabalhista lhes permitiria, enfim, ampliar empregos e alavancar a economia) pleitearam e já receberam em tempo recorde graciosamente do governo, com aval do Congresso Nacional e do Poder Judiciário, sempre com o apoio expresso ou silencioso da grande mídia: suspensão do contrato de trabalho; redução salarial; negociação individual sobrepondo a lei e as negociações coletivas; liberdade total para desempregar etc. (enquanto isso o benefício emergencial pífio de R$600,00 ainda não chegou às mãos de boa parte dos reais titulares desse direito[5] e apenas 17% do crédito liberado a micro e pequenas empresas foi liberado porque os Bancos privados se recusam a realizar os empréstimos sem garantias)[6].
Com as falas supra é possível perceber que para essas pessoas o fim não é o limite.A todas as demais cabe compreender que a supressão dos direitos sociais constitucionalmente assegurados tem servido, no Brasil, desde a década de 90, como estratégia de sustentação dos governos subservientes às constantes chantagens, também políticas, do poder econômico (que se vale, igualmente, da fragilização das instituições e da organização coletiva classe trabalhadora), e que, considerando a condição dependente do país na divisão mundial do trabalho, essa fórmula não tem fim, a não ser que tenhamos, de fato, um projeto de nação, no qual a classe trabalhadora seja efetivamente respeitada e incluída, considerando, sobretudo, o seu protagonismo na preservação da vida e na produção da riqueza.
Posta a questão em perspectiva histórica, quem sabe se perceba que mesmo o fim pode representar um recomeço. O trem que chega é o mesmo trem da partida! Para um novo destino…
*Jorge Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (estúdio editores)
Notas
[1]. https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/07/03/verde-amarela-simplifica-contratacao.htm
[2]. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/presidente-do-santander-sugere-que-funcionarios-cortem-salarios-para-dividir-com-empresa/
[3]. https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/jbs-e-a-empresa-que-mais-deve-para-a-previdencia-veja-os-500-maiores-devedores-22wmik37dli6hsucikyp1kcz1/
[4]. https://economia.ig.com.br/2019-04-03/tcu-investiga-paulo-guedes-por-suposta-fraude-em-fundos-de-pensao.html
[5]. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/05/auxilio-emergencial-cadastro-aprovacao-espera.htm
[6]. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/menos-de-20-do-credito-para-socorrer-empresas-foi-desembolsado.shtml