Por ROBERT REICH*
Para reverter a desigualdade, precisamos desconstruir o mito do “livre mercado”
Como pôde um punhado considerável de bilionários – cujas vastas fortunas se multiplicaram mesmo durante a pandemia – convencer a vasta maioria do público de que sua riqueza não deve ser taxada para sustentar o bem comum?
Eles empregaram um dos mais antigos métodos usados pelos mais ricos para manter a riqueza e o poder – um sistema de crenças em que a riqueza e o poder nas mãos de poucos aparecem como natural e inevitável.
Séculos atrás, ele era o dito “direito divino dos reis”. O rei James I da Inglaterra e o rei Luís XIV da França, dentre outros monarcas, asseguravam que os reis recebiam sua autoridade de Deus e, portanto, não deviam prestar contas a seus súditos terrenos. Essa doutrina viu seu fim com a Revolução Gloriosa do século XVII e com as Revoluções Americana e Francesa do século XVIII.
Seu equivalente moderno pode ser chamado de “fundamentalismo de mercado”, uma crença que tem sido promovida pelos super ricos de hoje com o mesmo entusiasmo que a velha aristocracia tinha pelo seu direito divino. De acordo com ela, o que você recebe é simplesmente uma medida do que você vale em dinheiro.
Se você acumula um bilhão de dólares, certamente o mereceu, pois tal quantia foi um prêmio recebido do mercado. Se você mal sobrevive, a culpa é toda sua. Se milhões de pessoas estão desempregadas ou se seus salários estão encolhendo, ou elas têm que ter dois ou três empregos e não possuem a menor ideia do que receberão no mês seguinte ou, até mesmo, na próxima semana, é uma pena, mas este é o resultado das forças do mercado.
Essa visão predominante é absolutamente falsa. Um “livre mercado” não pode existir sem um governo. Um mercado – qualquer mercado – precisa de um governo para criar e garantir as regras do jogo. Na maioria das democracias, tais regras emanam das legislaturas, das agências e cortes administrativas. O governo não “interfere” no “livre mercado”. Ele cria e mantém o mercado.
As regras do mercado não são neutras nem universais. Elas parcialmente refletem as normas e os valores da sociedade. Elas também refletem quem, na sociedade, tem o maior poder de criar ou influenciar as regras tácitas do mercado.
O debate interminável sobre se o “livre mercado” é melhor do que o “governo” torna impossível o exame de quem exerce tal poder, como eles se beneficiam disso e se tais regras devem ser alteradas para que mais pessoas se beneficiem delas. O mito do fundamentalismo de mercado é, portanto, extremamente útil àqueles que não querem que tal exame seja realizado.
Não é nenhum acidente que aqueles com influência desproporcional sobre as regras do mercado – que são os maiores beneficiários da criação e adaptação destas regras – também são aqueles que apoiam de forma mais veemente o “livre mercado”, e são os mais fervorosos defensores da superioridade relativa do mercado sobre o governo.
O debate mercado vs. governo serve apenas para distrair o público da realidade subterrânea de como as regras são geradas e alteradas, do poder nos interesses dos endinheirados sobre este processo, e a extensão de seus ganhos resultantes disso. Em outras palavras, estes defensores do “livre mercado” não apenas querem que o público concorde com eles acercada superioridade do mercado, mas também sobre a importância central do debate interminável sobre quem – o mercado ou o governo – deve prevalecer.
É por isso que é tão importante expor a estrutura subjacente ao dito “livre mercado” e mostrar como e onde o poder se exerce sobre ele.
Desigualdades de renda, de riqueza e de poder político continuam a aumentar em todas as economias avançadas. Essa não é a única realidade possível. Mas para revertê-la, precisamos de um público informado capaz de ver através das mitologias que protegem e preservam os super ricos de hoje, assim como o Direito Divino dos Reis de séculos atrás.
*Robert Reich é professor de políticas públicas na Universidade da Califórnia-Berkeley. Foi Secretário do Trabalho dos Estados Unidos durante os governos de Bill Clinton (1993-1997).
Tradução: Daniel Pavan
Publicado originalmente no jornal The Guardian.