O julgamento de Lula no STF

Imagem: ColeraAlegria
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Por VALERIO ARCARY*

Um dos maiores erros da esquerda brasileira foi subestimar Bolsonaro. Mas não pode tropeçar, pela segunda vez, na bola, e subestimar o papel de Lula

Até o anúncio da aposentadoria de Celso de Melo, parecia que o julgamento do Habeas Corpus de Lula na segunda turma do STF (Supremo Tribunal Federal) deveria acontecer antes do final de outubro. Agora, ninguém sabe. Um dos maiores erros da esquerda brasileira foi subestimar Bolsonaro. Mas não pode tropeçar, pela segunda vez, na bola, e subestimar o papel de Lula.

Será o julgamento político mais importante do ano, se vier a ser feito. Há muitas tecnicalidades jurídicas em disputa, mas, em traços gerais, dois desenlaces possíveis. Ou Lula perde o HC, e não poderá ser candidato em 2022, ou Lula recupera os direitos políticos e, se quiser, passa a ser pré-candidato, e é difícil pensar que não chegaria ao segundo turno.

Na atual conjuntura predomina um relativo fortalecimento de Bolsonaro, ainda que seja transitório, mas é também difícil imaginar que, se conseguir cumprir o mandato, não chegaria ao segundo turno. Portanto, este julgamento remete à questão do poder, em sua máxima gravidade, porque não há vaga para três candidatos em segundo turno. Lula Livre significaria, provavelmente, que Moro, Doria, ou Huck estariam fora do segundo turno.

A doutrina liberal da “independência” dos três poderes será posta à prova mais uma vez. Independência da presidência e do Congresso, mas não da classe dominante. Não existe um “comitê central” da burguesia, evidentemente. Acontece que julgamentos políticos são decisões que dependem muito da relação de forças da conjuntura em que acontecem. Mas um choque frontal de uma decisão do STF com o “senso comum” da classe dominante não é, também, impossível, porque a função da Justiça no equilíbrio do regime deveria ser a preservação dos interesses de classe, em perspectiva de longa duração, elevando-se acima dos interesses imediatos de uma ou outra fração.

Nesse ângulo, a Lava-Jato já foi longe demais com o abuso das delações premiadas sem provas: a judicialização da política chegou a limites extremos, até, perigosamente, disfuncionais. Mas, por outro lado, se os núcleos de poder do capital brasileiro não escolheram Bolsonaro, se adaptaram a ele, porque coincidem com o projeto estratégico de reposicionamento do Brasil no mercado mundial, e sabem que um governo de extrema-direita, liderado por um neofascista, é instrumental para impor uma derrota histórica aos trabalhadores. Temem pelos excessos bonapartistas de Bolsonaro, mas temem muito mais a reação defensiva furiosa que pode explodir nas classes populares.

O julgamento consiste do ponto de vista jurídico, essencialmente, em uma avaliação dos procedimentos de Sergio Moro e sua relação com os procuradores de Curitiba. A aprovação do HC de Lula corresponde à anulação das sentenças, e o desmonte de um discurso político hegemônico nos últimos cinco anos. Portanto, um terremoto.

Seu desfecho sempre foi imprevisível, porque as consequências são imensuráveis. Depois de tudo que aconteceu no Brasil desde o golpe institucional seria uma ingenuidade imperdoável subestimar a pressão da fração majoritária da classe dominante para manter a condenação de Lula.

Depende da iniciativa de Gilmar Mendes colocar em pauta. Considerando uma provável antecipação dos votos na segunda turma, o julgamento estaria, neste momento, empatado, o que significa que a sentença seria pró-réu. Toffoli deve substituir Celso de Melo na segunda turma. O que poderia sugerir um resultado ainda melhor, menos contestável. Mas a máxima gravidade deste desenlace exige considerar a possibilidade que a decisão seja levada para o Plenário. A indicação do substituto de Celso de Melo por Bolsonaro introduz ainda mais incerteza.

Se Lula não fosse ainda um candidato competitivo nas eleições de 2022, a possibilidade de recuperação plena de seus direitos políticos seria muito maior. A interdição de Lula é uma posição majoritária na classe dominante, mesmo nos círculos que admitem preocupação com os abusos de poder da operação Lava-Jato. Ela obedece, neste momento, a um cálculo de que a candidatura Lula tornaria um segundo turno contra Bolsonaro uma grande possibilidade.

Ainda que qualquer um dos cinco ministros da segunda turma possa, eventualmente, mudar os seus votos, a decisão parece estar nas mãos de Toffoli, porque já se sabe que Lewandowsky e Gilmar Mendes, em princípio, votarão a favor do HC, e Carmem Lúcia e Edson Fachin votarão contra.

Se Toffoli desempatar a favor do HC de Lula, não é impossível que uma decisão final possa ser transferida, hipoteticamente, para o Plenário do STF, com Luís Fux, um defensor da operação LavaJato, na presidência do STF. No Plenário há alguma incerteza, porque cinco dos onze ministros já votaram no passado, criticamente, face à Lava-Jato, embora sobre temas menos controversos: Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, e Dias Toffoli. Incerto, duvidoso, até improvável, porque o substituto de Celso de Melo será nomeado por Bolsonaro. Mas não impossível.

A incerteza resulta da ruptura de Bolsonaro com Sergio Moro. Assistimos, depois da posse de Augusto Aras na PGR (Procuradoria Geral da República), a um esvaziamento do poder do núcleo de Curitiba.

Não haverá muito espaço para um “jeitinho” para este julgamento no STF, embora nunca se deva subestimar a imaginação jurídica dos juízes do STF. Porque se há uma maioria burguesa a favor de manter a condenação de Lula, é cada vez mais claro que há diferentes frações, com interesses distintos, em oposição à Lava Jato.

A ruptura de Sergio Moro com o governo teve como consequência um processo no STF em que Bolsonaro é acusado de tentar intervir na Polícia Federal, portanto, abuso de poder. Não devemos diminuir, tampouco, a censura que Dallagnol recebeu no Conselho Nacional de Justiça. Mas as divergências de projetos políticos colocaram a judicialização da luta política em outro patamar com a iniciativa de Aras de concentrar na PGR em Brasília todas as operações contra a corrupção, esvaziando Curitiba.

A percepção de que a “Lava-Jato já fez o que deveria ser feito” e foi até longe demais, ou uma combinação de pressão do bolsonarismo e mal estar no centrão vem crescendo no Congresso. PSDB, MDB e DEM já foram atingidos pela Lava-Jato, e continuam acossados porque Serra e Alckmin voltaram às manchetes e terão dificuldades de escapar, junto com Aécio, de uma condenação, pelo menos de formação de caixa dois, senão enriquecimento pessoal ilícito, o que é mais grave.

O próprio bolsonarismo assumiu um questionamento aos procuradores da LavaJato, pela iniciativa da PGR sob o comando de Aras. O que sinaliza que Bolsonaro prefere, neste momento, talvez, um segundo turno em 2022 contra Lula, e não contra Sergio Moro ou Dória.

A classe dominante está dividida, mas parece incontornável que, se Bolsonaro conseguir sobreviver até 2022, deverá chegar ao segundo turno. Uma maioria da burguesia trabalha, portanto, para evitar que a esquerda possa chegar ao segundo turno.

Naquelas frações que apostam em uma candidatura de Sergio Moro ou de Dória, ou de outro como Luciano Huck, prevalece a perspectiva de que a gravidade da crise social, assim que o colchão do auxílio emergencial for suspenso, mesmo se for substituído pelo Renda Brasil, impede que a esquerda, em especial, se Lula puder ser candidato, seja excluída de um segundo turno. Portanto, liquidaria a possibilidade de uma candidatura liberal contra Bolsonaro. Porque o lugar de Moro e Dória, diante da polarização, seria semelhante ao de Alckmin. Logo a interdição de Lula é estratégica.

Do ponto de vista da esquerda a defesa de Lula obedece, também, a um cálculo estratégico. Se fizeram o que fizeram com Lula, podem fazer qualquer coisa com qualquer um.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã)

 

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