Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
O tapete, que ao voar tornou-se ator de As mil e uma noites, é uma das grandes invenções e patrimônio da humanidade
Devemos a As mil e uma noites a intimidade com o tapete voador, ou tapete mágico, um dos talismãs de Aladim, aquele da Lâmpada e do Gênio. Atende a nossa fantasia de voar com autonomia, comum nas crianças e nos sonhos dos adultos.
O tapete ocupa lugar de honra numa civilização em que, ao contrário do Ocidente, dispara projeções. Além de ornar palácios, forra tendas no deserto, onde constitui o único piso em cima da areia. Pendurado para formar reposteiros e divisórias, substitui paredes. Com sua trama multicolorida, em que se veem cópias reduzidas de fontes e ramagens e bichinhos (desmentindo a noção de que o Islã proíbe imagens), opera uma internalização do oásis ou do jardim. Transferindo-os simbolicamente para dentro do lar, mitiga a dureza agreste da paisagem calcinada circundante.
Típico de povos pastores, que assim aproveitavam a lã de seus rebanhos de ovelhas, seu desenvolvimento e apogeu se dá na Pérsia, hoje Irã. Tanto é que, seja qual for sua origem, venha da China, do Egito ou da Turquia, três grandes provedores de tapetes, tornou-se conhecido como “tapete persa”.
Quem pode nos ajudar a entender melhor o tapete voador é Gaston Bachelard, o filósofo francês que escreveu a bela sequência de livros em que analisa as figuras literárias do que chamou de “ imaginação dos quatro elementos” – terra, água, fogo e ar.
Bachelard define o “voo onírico”(em O ar e os sonhos) e o “devaneio ascensional” em desafio às forças da gravidade (em A terra e os devaneios do repouso), sendo esta uma fatalidade que o engenho humano viria a contradizer. O desejo de voar precede em vários milênios a invenção do avião, com direito à representação artística. Pense-se nos anjos da iconografia cristã: os serafins têm três pares de asas, tal como se vê em tanta pintura medieval e renascentista. Ou nos touros alados com cabeça humana dos assírios. Dentre os deuses egípcios supremos, Isis é usualmente representada com as duas asas espalmadas, de que se serve para abanar Osiris e ressuscitá-lo. Deus do firmamento, Horus, o filho do casal, tem asas e cabeça de falcão. Entre os gregos, Hermes (Mercúrio para os romanos), o mensageiro dos deuses, ostentava um par de asinhas em cada calcanhar, garantindo a mobilidade pelos ares.
Mas os deuses também tinham uma mensageira, Íris-das-asas-de-ouro, que, quando se deslocava entre a Terra e o Olimpo, riscava o céu criando em seu rastro o arco-íris. Célebre e frequente nas artes plásticas é Pégaso, o cavalo alado, bem como o grifo e a sereia aviforme. Leonardo Da Vinci criou várias máquinas voadoras, que não chegou a testar, mas estão expostas nos museus e até vieram ao Brasil, numa mostra na Oca do Ibirapuera. E Gaston Bachelard registra desde casos documentados de pessoas que tentaram voar com engenhocas ou asas postiças e se espatifaram, até algo que remete à mitologia como a lenda de Ícaro.
Como se sabe, este grego subiu aos céus com asas de plumas, mas se distraiu traçando arabescos no éter e se aproximou demasiado do Sol, numa alegoria da desmesura. A cera que prendia as asas derreteu, Ícaro despencou e morreu.
Quem apreciava As mil e uma noites era Jorge Luis Borges. Além de citá-la amiúde, também escreveu um erudito ensaio sobre seus tradutores. A eles podemos acrescentar Mamede Jarouche, professor da USP, que produziu uma versão brasileira. No ensaio, Borges desdobra seu saber.
Adepto do raciocínio a contracorrente, Borges, à sua maneira arrevesada e heterodoxa, compara inicialmente as duas traduções mais célebres: a primeira, a de Galland para o francês, expurgada dos episódios eróticos, e a de Burton para o inglês, que trata de restaurar o que a censura mutilara. O belíssimo (e libertino) filme de Pasolini baseia-se nesta última. Borges exalta a qualidade estética da primeira, que mantém o clima maravilhoso e mágico da obra, em detrimento de suas reticências. Examina ainda outras traduções e controvérsias, louvando por exemplo as infidelidades de Mardrus em extrapolações mais rococós que o original, desculpando-o pela colaboração criadora.
O tapete, que ao voar tornou-se ator de As mil e uma noites, é uma das grandes invenções e patrimônio da humanidade: como se vê, merece respeito.
*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).
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