Os códigos da prudência

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Por VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ & TAINÁ REIS*

Miyamoto Musachi contra as “coortes fascistas” na Palestina e no Brasil

Já leram Miyamoto Musachi? À primeira vista, ele traz a solidão como resposta: prudência para ter equilíbrio, concentração e dedicação. Isso seria o que se denominou de “super-ação”. Também traz o sentido do “equilíbrio social”, quando não se chocam em volume extenso o “super ego” (a vaidade exponencial), que ultrapassa o necessário “superego” (controle social que também não tenha efeito castrador: “cancelamento de todos que “não aprovamos”). Portanto, ainda que limitados nesta primeira investida, essa solidão não é um fim em si mesmo, mas tão-somente um meio.

Procuraremos um meio-termo, o equilíbrio entre a técnica e a ética, a responsabilidade diante da racionalidade, a paz no lugar da guerra, o diálogo ao invés dos gritos da morte, a democracia e a civilidade ao contrário das cortes fascistas – para ocupar nossos pensamentos e ações acerca da Palestina e do Brasil.

Trata-se, ainda hoje, da luta contínua contra esse fascismo que nasceu com o faschio – um ramo simbólico de poder na Roma antiga –, mas, também com as coortes de soldados e de gladiadores, sob o comando dos centuriões e seus séquitos sedentos de sangue humano.[i] O Conde Vlad, inspirador do Drácula, não faria feio – mais ainda quando vemos hospitais, doentes, idosos, crianças, civis inocentes serem bombardeados por Israel.

Contra tudo isso sempre houve um chamamento ao juízo, pelo caminho da Prudência. Este caminho também seria o Bushidô para Miyamoto Musachi. Porém, o melhor espadachim japonês de todos os tempos não só conhecia a “arte da guerra”, como afinava-se na filosofia da vida. O que chamamos de prudência. Afinal, muito antes de lutar (a política também é luta) é preciso sabedoria para viver, conviver.

Os códigos da prudência

Este espírito de total entrega e obediência cega a tradições e a seus senhores é o que restou do mundo antigo e que mais se aproximou, temporalmente falando, de nossa modernidade. O xogunato, no Japão, vigorou até a véspera do século XX[ii] – o xogum era o verdadeiro governante no Japão antigo, acumulando os cargos de chefe político e os poderes de líder militar (shōgun = general). O representante maior dessa fase, da defesa das tradições milenares e da passagem à ocidentalização, é Miyamoto Musashi e seu extenso trabalho O livro de cinco anéis.

Miyamoto Musashi reapresenta o fim de um ciclo da ética e da tradição que movimentaram o “desencantamento do mundo” no Oriente. Depois disso, a melhor representação viria com os gregos clássicos (ainda que o Xogunato existisse há pouco tempo, se comparado aos gregos). É de se frisar que, enquanto Miyamoto Musashi escreve sobre a “moral do samurai” (certamente, o que havia de mais sagrado e tradicional no Japão feudal), a razão de Estado se multiplicava como ideologia e prática expansionista na modernização da Europa Ocidental.

Miyamoto Musashi (1584-1645), o mais famoso samurai do Japão, passou a vida dedicando-se ao “caminho da estratégia” (Ni Tem Ichi Ryu). No xintoísmo, aprendeu a religião do esforço contínuo. Esta noção de “caminho” é originária das bases confucionistas do período Tokugawa e significa o “itinerário de vida do guerreiro”, uma “vereda para Deus”. Como samurai, venceu e matou mais de 60 adversários, entre 13 e 28 ou 29 anos.

Aos 30 anos reviu este “passado de violência”, mas só compreendeu o caminho da estratégia aos 50 anos. Portanto, dos 30 aos 50 anos, passou estudando. Para Miyamoto Musashi: “A estratégia é o ofício do guerreiro […] Fala-se que o guerreiro deve seguir o caminho duplo da pena e da espada e que deve ter gosto por ambos os caminhos” (Musachi, 2002, p. 167). Como samurai, era adepto da filosofia do Bushidô, ou seja, como está pronto a morrer a qualquer instante, o samurai liberta-se dos sentimentos mundanos, “valorizando a vida de modo intenso”.

O caminho é a estratégia: “O guerreiro tem uma posição própria, pois busca percorrer o caminho da estratégia, que é o estudo de como superar o homem […] mas, como prática benéfica, ela não se limita à esgrima […] O homem usa equipamentos para vender seu próprio eu […] Alguém disse certa vez que “A estratégia imatura é causa de dor” e isso é verdadeiro (Musachi, 2002, p. 168).

É expresso como a tradição pressente a mercantilização crescente da época, a alienação, a “perda da aura”, em uma frase simples como essa: O homem usa equipamentos para vender seu próprio eu. Entretanto, mesmo diante de tão grave perigo, Miyamoto Musashi destaca uma engenharia e simetria entre a arte, o trabalho e a luta (afinal, são expressões do mesmo “gênio” humano): “O carpinteiro usa uma planta-mestra do prédio, e o Caminho da estratégia é similar ao do carpinteiro, pois também usa um plano de campanha […] O mestre é uma agulha, o discípulo a linha. É preciso praticar sem descanso […] Como o soldado, o carpinteiro afia suas ferramentas, seus instrumentos de trabalho” (Musachi, 2002, p. 169-170). Acentua-se aqui o trinômio do trabalho, do cuidado e do zelo. O caminho, por sua vez, é narrado em cinco livros: “Terra, Água, Fogo, Vento e Nada […] Como se parece com uma estrada marcada no chão, o primeiro livro se chama Livro da Terra […] Por comparação, o espírito é semelhante à água. A água adota a forma de seu receptáculo, às vezes, é uma gota e às vezes é mar revolto […] O espírito para vencer um oponente é o mesmo para abater dez milhões deles […] O terceiro é o Livro do Fogo […] O espírito do fogo é feroz, seja ele pequeno seja grande; o mesmo acontece com as batalhas […] Por vento refiro-me a tradições antigas e tradições familiares de estratégias do mundo […] É difícil alguém conhecer-se se não conhecem os outros […] Por Nada entendo o que não tem princípio e não tem fim[iii] […] Quando tomamos conhecimento da força da natureza, aprendendo o ritmo de qualquer situação, tornamo-nos capazes de abater o inimigo, golpeando-o naturalmente (Musachi, 2002, p. 171-172).

É impossível não destacar a sensibilidade do samurai para o que hoje chamamos de luta pelo reconhecimento: É difícil alguém conhecer-se se não conhece os outros. Mesmo que empregue isto de forma instrumental, para abater seu inimigo, como no emprego da técnica das duas espadas (da escola de Nito Ichi Ryu): “Esta é a verdade: como arriscam a vida, é indispensável que usem ao máximo os armamentos disponíveis” (Musachi, 2002, p. 173). Como não é correto não-reagir na luta pela vida, nota-se uma manipulação da razão. Aliás, vê-se como a luta por sobrevivência condiciona a luta pelo reconhecimento.

Além disso, o caminho é um eterno conhecimento, uma forma de educação permanente: “De uma coisa, aprenda mil coisas […] Dominar a virtude da espada longa, por outro lado, é governar ao mundo e a si mesmo, e assim a espada longa é a base da estratégia […] O homem tem de burilar o caminho que escolheu” (Musachi, 2002, p. 174).

Não há inatividade, como não há misticismo de quem seja portador de um dom especial, superior. O caminho de todos os Caminhos é a educação: estudar mil coisas, para governar com estratégia. Como na arte de governar, na política, necessita-se de uma combinação entre estratégia, prudência e conhecimento (aprofundado, atualizado). Na Antiguidade, este conjunto de habilidades articuladas era chamado de techné. Para os gregos clássicos, técnica era um conjunto amplo – pode-se dizer que no Mito de Prometeu a descoberta, o conhecimento, o saber necessário ao domínio do fogo e seu emprego na manufatura de ferramentas,[iv] tem o mesmo sentido dado por nós atualmente às mais fantásticas descobertas científicas e tecnológicas.

Na Idade Moderna, ganharam destaque as técnicas mecânicas e incorporaram-se outras concepções técnicas (o como, o “saber-fazer”, o método aplicado) ao saber (agora como ciência). Nessa época, chegou-se a considerar que “o saber é fundamentalmente técnico”. Como aplicação, podemos dizer que a tecnologia (como conjunto complexo de técnicas, artes, ofícios e saberes elaborados e/ou aplicados) é um trabalho exercido sobre a natureza e sobre os homens; quer seja a bomba destrutiva da vida de crianças, quer seja o aparelho respiratório dos feridos por essa mesma bomba. Assim, seguindo-se a antropologia da técnica (para o passado e presente) e a epistemologia da tecnologia (para o presente e futuro), teríamos que: a tecnologia é a arte que transforma o mundo natural em realidades artificiais.[v]

Hoje, no entanto, após tantos desvios dos maus usos, é lícito dizer que ainda precisamos elaborar o mapa conceitual que deve cercar esse mesmo conjunto complexo da técnica e da tecnologia, bem como da ciência. Para os gregos, a cópia também era desprezível. A cópia é um embuste de vida curta, pois nem se tem conhecimento e precisão, nem há avaliação adequada do uso dos meios: “Tem-se hora e lugar para a utilização das armas […] Você não deve ter uma arma favorita […] Não é conveniente copiar os outros, e sim utilizar as armas que consegue dominar apropriadamente” (Musachi, 2002, p. 175).

As técnicas vêm desse aprimoramento da própria consciência e não o contrário. Não há batalha que não se pareça com a luta pela vida — todas exigem dedicação intensiva, superação e nisto estão as “virtudes”: “(i) não pense desonestamente; (ii) o caminho está no treinamento; (iii) familiarize-se com todas as artes; (iv) conheça o caminho de todas as profissões; (v) nos assuntos materiais, aprenda a distinguir ganho de perda; (vi) Desenvolva o julgamento intuitivo e a compreensão de tudo; (vii) perceba as coisas que não podem ser vistas; (viii) dê atenção às coisas triviais; (ix) não faça nada que não sirva para nada (Musachi, 2002, p. 176-177).

É uma forma antecipada de utilitarismo, mas como utilitarismo em busca de sentido e não de resultados diretos, não é imediatismo. Mais do que curioso, é revelador de que a escolha do Caminho é pura “vocação”, paixão: “Acima de tudo, para começar, é necessário, colocar seu coração na estratégia e encarar firmemente o caminho” (Musachi, 2002, p. 177). Por isso, a cópia, por mais bem intencionada que seja, é sempre imperfeita, porque não expande o conhecimento, o improviso e a inovação: “Não se limite a ler, memorizar ou imitar, pois, para conseguir perceber o princípio em seu íntimo, estude dedicadamente” (Musachi, 2002, p. 178).

Estudar também implica em auto-conhecimento, com percepção, perspectiva, postura, “visão”, posicionamento diante dos fatos da vida: “Fique numa postura de cabeça erguida, nem curvada para a frente nem olhando para cima, nem virada para o lado. Sua testa e o espaço entre seus olhos não devem ficar franzidos […] Em todas as formas de estratégia, é necessário manter a postura de combate na vida cotidiana e que se faça da postura diária sua postura de combate” (Musachi, 2002, p. 179).

O olhar duplo da percepção e da visão deve ter abertura e amplitude: “É importante, na estratégia, ser capaz de ver de ambos os lados sem movimentar os olhos […] use esse olhar na vida diária, e não o modifique, aconteça o que acontecer” (Musachi, 2002, p. 179). Esta “visão” trará melhor condição para lutar, pois a arte da luta está na temperança, no equilíbrio, na harmonia entre flexibilidade e força: “A rigidez significa que as mãos ficam ‘mortas’. A flexibilidade dá vida às mãos[vi]” (Musachi, 2002, p. 180). A vitória está na razão: “A espada tem de voltar sempre de maneira racional…” (Musachi, 2002, p. 181). A luta é uma “racionalização da aprendizagem” – além de sincronia, tempo, ritmo e o principal: objetivo.

A objetividade está em paralelo (harmonia ou distonia), mas uma vez em movimento, não deve cessar: “Mais do que tudo, é fundamental pensar em manter o movimento até derrotar o inimigo […] ‘Num só tempo’ significa que, após encurralar o inimigo, você deverá golpeá-lo da maneira mais rápida e direta possível” (Musachi, 2002, p. 185). Toda reação é uma nova ação ou, no fundo, a continuidade da ação inaugural. Para enfrentar muitos, tome posição ofensiva, mas aguarde o ataque e enfrente quem se mover primeiro. De todo modo, é preciso haver paciência, determinação, treinamento (“espírito de combate”). O primeiro passo do caminho é estudar insistentemente; o segundo é vencer a você mesmo, ou melhor, “quem você foi ontem”.

É preciso uma espécie de dedicação exclusiva para o poder “miraculoso”. Seguindo-se uma boa estratégia, há vários meios e muito treinamento para se matar os inimigos: “a luta pela sobrevivência, a descoberta do significado da vida e da morte, o aprendizado do caminho da espada, a mensuração da força dos ataques…” (Musachi, 2002, p. 193). Sem dúvida, é um longo aprendizado para a “luta pela sobrevivência”. Não há preceito, sem método; mas isso não implica que haja um método superior, um tipo de “método mais metódico”. Miyamoto Musashi sugere uma combinação de métodos, adaptando-os às condições e necessidades: do método ao controle e daí à vitória.

Afinal, na luta pela sobrevivência, não há complacência: “O espírito é o de derrotar até as entranhas do inimigo. Isso tudo é Ken No Sem […] Atue com rapidez e golpeie com força. Este é o Tai No Sen” (Musachi, 2002, p. 195-196). Agora, o melhor método é o uso imperativo da inteligência; quando se aplica o bom senso sobre o senso comum ou nas obviedades, o resultado é espantosamente objetivo, produtivo, benéfico e simples: “O fundamental, na estratégia, é obstruir as ações úteis do inimigo e deixá-lo à vontade para executar as ações inúteis” (Musachi, 2002, p. 196).

Contudo, o principal é estar aberto à grandeza de sentimentos e de valores, afastando-se da pequenez: “Renego o espírito estreito e preconceituoso na minha doutrina. Estude bem isso” (Musachi, 2002, p. 208). Renegue as irracionalidades, “despreze o que é insignificante”. Como samurai, dedicado à luta, sempre pronto para morrer, sabia que o segredo não era a morte: “Para começar, matar não é o caminho da humanidade. Matar é a mesma coisa para pessoas que sabem lutar e para as que não sabem” (Musachi, 2002, p. 210). Viver é lutar; matar é só matar – não precisa de arte. O que fez Musashi mudar o rumo da vida foi ter (re)descoberto o próprio “sentido da vida”, após passar metade de sua existência envolvido com a morte.

É este sentido para vida, em total substituição à compulsão pela morte, que retemos da sabedoria bushidô de Miyamoto Musachi –, pois, se a guerra é a arte da sobrevivência e da imposição, a política é arte da negociação e da afirmação. A arte da prudência de Miyamoto Musachi ecoa no reconhecimento de algo absurdamente simples e muito óbvio de se entender, qual seja, na guerra não há vida. Somente os tolos e os senhores da guerra não veem desse modo.

*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

*Tainá Reis é doutora em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Referências


MARTINEZ, Vinício Carrilho. Os códigos da prudência. Pesquisa de pós-doutorado em ciências políticas. UNESP/Marília, SP: [s.n.], 2011.

MUSASHI, Miyamoto. O livro de cinco anéis. São Paulo : Editora Claridade, 2004.

Notas


[i] Contra tudo e contra todos, havia Spartacus: o rebelde gladiador romano. Spartacus, em luta de escravos e gladiadores pela vida vivida com liberdade, viria se somar a dezenas, milhares de outras lutas contra a escravidão. Toda luta contra a negação dos direitos, especialmente contra a servidão e a escravidão, está no pórtico das lutas políticas. Toda luta política contra a nulidade social é um clássico de todos nós.

[ii] Os japoneses afirmam que Saigo Takamori foi o derradeiro samurai, quando aos 50 anos, em 1877, teria lutado até a morte para preservar a ética do Bushidô (“o código do guerreiro”) e que estava prestes a desaparecer por causa das reformas ocidentais adotadas pela Restauração Meiji (1867-1912).

[iii] No budismo, Nada ou Vazio indicam a “natureza ilusória das coisas terrenas”. Portanto, não é vazio como “ausência de significados”.

[iv] Os gregos dominavam bem a metalurgia (como herança cultural de outros povos, a exemplo dos Hititas): “a arte de moldar e de ajustar os metais”. Tornar o metal dócil.

[v] Esta realidade ainda pode ou não ser tratada como ficção, pois a realidade virtual não é ficcional.

[vi] Refere-se explicitamente ao uso da Katana, a tradicional espada samurai.


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