Os mantras dos economistas

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Por LUIZ GONZAGA BELLUZZO & MANFRED BACK*

Se a dívida pública é um risco insolúvel, por que os bancos centrais e o mercado financeiro a abraçam como ativo seguro? A resposta está na contradição que os economistas positivistas se recusam a enxergar:o Estado não é uma família, e sua moeda não é uma mercadoria

1.

Joseph Goebbels, ministro da propaganda do regime nazista, dizia: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade. Se uma mentira é grande o suficiente e é repetida frequentemente, ela será acreditada”, em alemão große Lüge.

Os economistas do mainstream repetem as ameaças do risco fiscal e calote da dívida. No repertório de mantras dos sacerdotes da Crematística sobressai o calote da dívida pública.

Ao investigar os detentores da dívida pública brasileira, nos deparamos com paradoxos interessantes. Vamos ousar considerações sobre dialética para constranger o espírito positivista que assola o pensamento único. As teorias econômicas convencionais estão encharcadas de indagações binárias do tipo “é isto ou aquilo”.

Pedimos ao leitor que permita a dois modestos economistas invocarem um filósofo da estatura de Hegel para arrostar as trapalhadas metodológicas dos sabichões da ciência triste. Na Introdução à Ciência da Lógica o mestre de Iena asseverou: “Quando as formas são tomadas como determinações fixas e consequentemente em sua separação uma da outra, e não como uma unidade orgânica, elas são formas mortas e o espírito que anima sua vida, a unidade concreta não reside nelas….O conteúdo das formas lógicas nada mais é senão o fundamento sólido e concreto dessas determinações abstratas; e o ser substancial dessas abstrações é usualmente buscado fora delas”.

Os mantras anunciados pelos sacerdotes do equilíbrio, revelam que as determinações fixas invadiram as casamatas da ciência triste. Os invasores buscaram destruir dimensões constitutivas da economia monetário-financeira capitalista: à desconsideração do circuito gasto-renda associa-se o tratamento da dívida pública. Ela é apresentada com os riscos e percalços dos devedores privados, famílias e empresas.

Karl Marx observou: “Como a dívida pública se respalda nas receitas estatais, que têm de cobrir os juros e demais pagamentos anuais etc., o moderno sistema tributário se converteu num complemento necessário do sistema de empréstimos públicos… O grande papel que a dívida pública e o sistema fiscal desempenham na capitalização da riqueza e na expropriação das massas levou um bom número de escritores, como William Cobbett, Doubleday e outros, a procurar erroneamente na dívida a causa principal da miséria dos povos modernos”.

Em sua caminhada irreverente, John Maynard Keynes disparou: “Se por algum motivo os indivíduos que compõem a nação não estão dispostos, cada um em sua capacidade privada, a gastar o suficiente para empregar os recursos com os quais a nação é dotada, então é o governo – representante coletivo de todos os indivíduos deve preencher a lacuna. Os efeitos das despesas governamentais são precisamente os mesmos que os efeitos da despesa dos indivíduos. Assim, o aumento da receita fiscal fornece a fonte das despesas públicas extras. Por isso, pode ser vantajoso para um governo recorrer a um empréstimo do sistema bancário”.

2.

Os poderes estatais de tributar e de administrar as condições de crédito e de liquidez estão intimamente associados. Assim, os entes soberanos desfrutam de maior liberdade para financiar o gasto ao emitir títulos públicos, ativos que frequentam os balanços dos entes privados como forma de riqueza de maior qualidade, segurança e liquidez. Os sistemas monetários e financeiros modernos estão ancorados nos ativos públicos de “última instância”.

O conto da carochinha do calote na dívida pública busca iludir os cidadãos e cidadãs em todas as partes do planeta. Mas, os chefes de tesourarias, os administradores de fundos de investimentos, de fundos de previdência e seguradoras pensam e agem de forma muito diferente: escapam dos arreganhos binários dos especialistas que rondam os arrabaldes dos mercados financeiros.

Abaixo apresentamos os dados do Tesouro Nacional.

Fonte: Tesouro Nacional

Quase 80% dos títulos públicos estão nas mãos do setor financeiro nacional e apenas cerca de 10% nas mãos de não-residentes.

“Alguma coisa está fora de lugar”, como diria Caetano Veloso. Enquanto os economistas dos mercados financeiros ameaçam com o calote, as tesourarias se empanturram de dívida pública. Garantidos pelo Tesouro e pelo Banco Central, os títulos públicos possuem liquidez diária, garantia de recompra.

Em qualquer lugar do mundo os títulos públicos são a garantia o lastro de todas as operações de crédito. Os grandes bancos americanos, Godman Sachs, J.P.Morgan, Bank Of América, detêm um percentual elevado de treasuries (títulos públicos do Tio Sam) na composição de suas carteiras de ativos.

3.

Duas indagações se impõem aos catastrofistas: quando na história das economias capitalistas ocorreu calote de dívida pública denominada em moeda nacional? Quando o tesouro brasileiro deixou de cumprir seus compromissos e pagamento de juros? Nunca.

Mas, os sabichões da Crematística não sossegam e repetem insistentemente que não se pode viver gastando mais do que se arrecada! No mundo deles, a água (a renda) não escorre pelos canais da circulação monetária.

Como ensina John Maynard Keynes na Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, as políticas econômicas que regulam o orçamento público deveriam manter os gastos correntes sempre equilibrados. Os gastos de capital estariam destinados à administração das flutuações da renda para assegurar expectativas favoráveis do setor privado em relação ao futuro de seus negócios. É um gasto regulador da estabilidade das economias capitalistas ao impedir a contração do gasto privado.

Como dizia Hegel: “o botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. É essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo… Com efeito, a Coisa mesma não se esgota em seu fim, mas em sua atualização; nem o resultado é o todo efetivo, mas, sim, o resultado junto com o seu vir-a-ser”.

*Manfred Back é graduado em economia pela PUC –SP e mestre em administração pública pela FGV-SP.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente). [https://amzn.to/45ZBh4D]


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