Os militares no golpe na Bolívia

Imagem Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Designações como “golpe jurídico-midiático” ou “golpe jurídico-parlamentar” encobrem o fato de que golpe de Estado sempre é uso ilegal da força bruta

Por Manuel Domingos Neto*

Consumado o golpe na Bolívia, eis que aparecem as críticas ao presidente Evo Morales: “não devia ter sido candidato”, “devia ter resistido”, “apostou no apaziguamento de forças inconciliáveis”… Apressadamente, sem maiores informações, imputando tibieza ao grande líder boliviano, alguns dizem “não devia ter saído do país!”.

A primeira análise sólida que li sobre a tragédia boliviana foi o artigo de Atílio Boron, publicado em A Terra é Redonda (ver https://dpp.cce.myftpupload.com/o-golpe-na-bolivia-cinco-licoes/), que mostra como os Estados Unidos procederam neste país e advertindo para que os latino-americanos aprendam a lição.

Mas Atilio escorregou ao mencionar um suposto “golpe por omissão”: o Exército teria lavado as mãos diante dos policiais truculentos e dos baderneiros fascistas.

Essa conclusão descabida é compartilhada por muitos e deriva das tergiversações na análise das formas de ruptura do Estado de Direito na América Latina, refletidas inclusive nas tentativas de reclassificar o golpe de 1964 no Brasil como “golpe civil-militar”, o que muito agrada aos fardados.

Não existe “golpe por omissão” e designações tais como “golpe jurídico-midiático” ou “golpe jurídico-parlamentar” encobrem o óbvio: golpe de Estado é uso ilegal da força bruta, quaisquer que sejam seu revestimento para consumo da sociedade atingida.

Sem armas na mão ninguém golpeia. Por sua vez, sem respaldos de setores sociais, sem auxílios na formação de opinião pública favorável, sem amparos em jurisconsultos e em juízes de araque, a força bruta não mostra eficácia. Por mais extenso que seja o rol dos golpistas (grande imprensa, grandes empresários, juízes, policiais, milicianos, parlamentares, religiosos etc.) apenas e exclusivamente o detentor da força logra quebrar o Estado Democrático de Direito.

Na América Latina, quem detém essa força é o Exército. Este é o responsável maior pelos atentados à democracia e pelo cumprimento dos desígnios imperialistas.

Evo acreditou no Exército, assim como todos os dirigentes latino-americanos que tentaram reformas sociais nos últimos vinte anos. Lula, como Evo, empenhou-se em fortalecer esta instituição concedendo-lhe equipamentos, recursos e remuneração digna. Tentando melhorar a qualidade do comando, Evo chegou até a oferecer aos militares cursos sobre o imperialismo. Evo confiou em instituições concebidas e preparadas para obedecer ao comando do Império. Esse tem sido o grande erro das forças democráticas latino-americanas.

Para que o militar tenha peso político, basta existir. Basta estar equipado e treinado. Não precisa dar um tiro. Não precisa se mexer, sobretudo se outros podem executar o trabalho sujo, como foi o caso agora na Bolívia.

Caladinho, o Exército deixou a polícia e os bandoleiros fascistas aterrorizarem o povo e os governantes. Bastava ter dado um recado curto aos baderneiros de que não aceitariam o desrespeito às leis. Todos recuariam. Mas, ao contrário, estimularam silenciosamente a desordem. Apareceram apenas no ato final, “sugerindo” que Evo se demitisse.

Pensemos no Brasil. O golpe contra a Dilma teria ocorrido se o Exército tivesse processado uma meia dúzia de caminhoneiros e militantes fascistas que pediam abertamente a intervenção militar?

Esses fascistas estavam achincalhando as Forças Armadas. Corporações efetivamente legalistas sentem-se moralmente agredidas quando alguém lhes sugere desobedecer a Lei. Mas, ao contrário, os comandantes brasileiros sentiram-se prestigiados.

Alguns, inclusive, como foi destacadamente o caso do general Mourão, ainda no serviço ativo, que chegou a ameaçar abertamente com o uso da força e não foi preso. Assim como Bolsonaro não foi preso quando ao longo de anos pregou a ditadura. No lugar da punição, propagandistas do terror militar, como Bolsonaro e Mourão, foram guindados ao comando do país.

A lição maior propiciada pelos eventos bolivianos não pode ser outra: cuidado com os grandes mudos armados e treinados pelas grandes indústrias dos Estados Unidos!

* Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC/UFF, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice presidente do CNPq

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Carlos Diegues (1940-2025)
Por VICTOR SANTOS VIGNERON: Considerações sobre a trajetória e vida de Cacá Diegues
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
Cinismo e falência da crítica
Por VLADIMIR SAFATLE: Prefácio do autor à segunda edição, recém-publicada
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
A estratégia norte-americana de “destruição inovadora”
Por JOSÉ LUÍS FIORI: Do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre EUA, Rússia e China
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES