Ouvintes alemães!

Imagem: Vasco Prado
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Por DANIEL AARÃO REIS

Comentário sobre a reunião de discursos de Thomas Mann contra Hitler durante a Segunda Guerra.

“Alemães, salvem-se! Desperte, Alemanha! O nazismo vai durar eternamente? Quando virá o Salvador desta terra?” Estes apelos, ora esperançados, ora inquietos, cruzaram os ares de outubro de 1940 a maio de 1945, os longos anos da Segunda Guerra Mundial. Emanavam de Thomas Mann, escritor alemão, prêmio Nobel de Literatura, convidado pela BBC para fazer programas radiofônicos transmitidos ao território alemão.

Mann tornara-se um ícone da resistência ao nazismo, pelo prestígio como intelectual e pela não filiação partidária. Poderia representar a voz de uma oposição não comprometida pelo jogo político tradicional. Daí o convite da BBC e a expectativa de êxito do programa.

Os discursos de Mann são uma denúncia crua do nazismo e de suas lideranças. Vale lembrar que, até 1942, o prestígio deles ainda era alto no mundo, sobretudo na Europa, onde apareciam encarnando uma Ordem que viera para durar. Para Mann, porém, os nazistas são uma corja de assassinos, “demoníacos”. O escritor está convencido de que encarnam o “mal”. A luta contra eles é uma luta do Bem contra o Mal. Eles não vencerão porque o Mal não pode vencer o Bem.

O nazismo deveria ser destruído e seus líderes, “executados”. Se os próprios alemães assumissem a tarefa, melhor, a Alemanha poderia recuperar um lugar reconhecido entre as nações “civilizadas” do mundo.

Entretanto, se não o fizessem, a aliança formada por EUA, Inglaterra e Rússia o faria à custa de atrocidades e, pior, os aliados ocupariam o país, com conseqüências imprevisíveis para o destino da nação e da cultura alemãs.

Thomas Mann era um homem de vasta cultura, mas suas percepções da Guerra não deixam de ser singulares. Ele nunca se refere à União Soviética, preferindo chamá-la de Rússia, uma tradição das correntes anticomunistas. Na descrição das crueldades praticadas pelos nazistas, quase sempre enfatiza as cometidas na Europa Ocidental e Central, mas pouco denuncia as exações praticadas a leste de Varsóvia.

Quanto à Ásia, apesar das terríveis matanças perpetradas pelos japoneses, quase não aparece no ângulo de visão do escritor alemão, salvo para elogiar “o senso de nobreza e de decência” (sic) de dirigentes japoneses que ofereceram condolências quando da morte de F.D. Roosevelt, em abril de 1945, embora o Japão ainda estivesse em Guerra contra os aliados.

Palavras elogiosas Mann só reserva aos aliados ocidentais, aos quais vota irrestrita admiração. A resistência inglesa e a determinação de W. Churchill, os EUA, uma “democracia combativa”, e, em especial, o presidente dos EUA, F.D. Roosevelt, merecem encômios vibrantes. Para Mann, os estadunidenses só estão interessados “no trabalho e na construção da paz”, as guerras e as conquistas de terras estrangeiras lhes parecem “supérfluas e insanas”.

Mais tarde, quando solicita a cidadania, Mann não esconde o orgulho de ter se tornado um “civis romanus, um cidadão americano”.  E de ter isto acontecido, diz o escritor, “sob a égide desse César”, referindo-se a Roosevelt.  A Roma do Bem contra a Roma do Mal. Qualquer semelhança com o que viria depois não é mera coincidência.

Outra questão, essencial, é o caráter da associação entre o nazismo e a Alemanha. Como pôde acontecer? Como pôde a “Besta” emergir num país de tão refinada cultura? Questão inquietante, até hoje suscitando polêmicas.

No fogo dos acontecimentos, Mann tenta compreender o enigma e experimenta várias chaves, alternada ou simultaneamente.

Num primeiro registro, os nazistas teriam enganado o povo alemão. Com uma capacidade diabólica de inverter sentidos, apresentaram-se como nacionalistas, socialistas, revolucionários, defensores das melhores tradições, protetores da Europa. Apropriaram-se de belas palavras e valores para conspurcá-los com perfídia criminosa.  E o povo alemão, ludibriado ou/e assustado pelos perigos da crise, do bolchevismo e do caos, acompanhou aquela gente “miserável, repugnante”. Que lástima! Mann não abandonará esta chave, mas ela é demasiado simplista para convencê-lo.

Numa segunda chave, então, o autor invoca as circunstâncias. O nazismo teria recebido ajuda externa, e não apenas por amor à paz, mas “pelas piores razões”. Quais? Teria havido um “encadeamento fatal de conseqüências”. Se há culpa, o escritor sentencia, “ela está entrelaçada com muitas culpas do mundo”. O nazismo não seria um fenômeno apenas alemão. Uma vez, na emissão de março de 1944, Mann afirmou: o capital financeiro alemão e internacional impeliu os nazistas ao poder. Grave acusação, inesperada. No entanto, o assunto, de interessantes implicações, não seria aprofundado.

Mas há uma terceira chave, e com ela Mann reconhece as afinidades entre o povo alemão e o nazismo. Admite âncoras históricas que enraizariam o nazismo na Alemanha, uma história de nacionalismo e racismo, “longa e terrível”, idéias que sempre trouxeram o germe da corrupção assassina, de modo algum alheias “à boa e velha Alemanha da cultura”… E a infinita habilidade de engolir mentiras, a obediência sem limites, a credulidade, o encantamento e o deslumbramento com o nazismo, associado à “honra, à beleza e à ordem”. O “misticismo tecnicizado”, uma “carência convulsiva” e mais a inveja da Inglaterra e dos ingleses, ingredientes que se somaram e se combinaram num caldo grosso, fermentando ódios e ressentimentos ancestrais.

Chaves diferentes, que não se excluem, entrelaçam-se, num ziguezague tateante.

Mann e o seu tormento: “continuarei a ser alemão e a sofrer pelo destino da Alemanha”. E tenta se consolar: isto não resume a história do espírito alemão, há Dürer, Bach, Goethe e Beethoven. O problema é que os nazistas também reivindicam as luzes gloriosas da civilização alemã.

Quando a Guerra aproxima-se do fim, em meio a devastações catastróficas, Mann tentará ainda convencer o povo alemão a se revoltar contra o nazismo. Argumenta, apostrofa, brada, insulta. Ameaça com aniquilamentos mais do que justificados: se não se revoltarem, os alemães merecerão o castigo! Haverão de expiar suas culpas!

Não houve jeito. A Alemanha preferiu a corja do Mal às bombas e aos tanques do Bem. Os alemães lutaram como leões até que a última cidadela, Berlim, caísse, e o demônio, Hitler, se suicidasse. Ninguém apareceu para salvá-los deles mesmos. E teriam, talvez, se perdido completamente se a Guerra Fria, que veio logo em seguida, não os tivesse poupado.

E foi então necessário que se passassem décadas para que os historiadores profissionais retomassem as chaves propostas pelo grande escritor alemão, acionando-as agora de forma mais complexa, e voltassem a tentar compreender aqueles fantasmas que tanto o tinham atormentado e que ainda nos assombram com seus enigmas.

Porque aquele passado, como se sabe, não passou. Nem ele é apenas alemão, embora os alemães o tenham vivido com intensidade singular. E se voltar? Afinal, como já pressentira o poeta, a “Besta” foi aniquilada, mas o ventre que a gerou permanece fecundo.

*Daniel Aarão Reis é professor titular de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de A Revolução que mudou o mundo – Rússia, 1917 (Companhia das Letras).

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas no. 5, agosto de 2009.

Referência


Thomas Mann. Ouvintes alemães! discursos contra Hitler (1940-1945). Tradução: Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 224 págs.

 

 

 

 

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