Poder de polícia

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Por MANUEL DOMINGOS NETO*

O caso de Bruno Pereira e Dom Phillips é assunto de polícia, não de militares

Incomoda-me ouvir recriminações ao Exército por sua “inoperância” no de Bruno Pereira e Dom Phillips. Isso é assunto de polícia, não de militares. Custear exército para que atue na segurança pública é jogar dinheiro fora e expor a cidadania à truculência.

Exércitos servem para dissuadir ou abater agressores estrangeiros; preparam-se para lidar com inimigos, não para disciplinar cidadãos e perseguir criminosos. Excepcionalmente acodem a sociedade em calamidades extremas.

O constituinte vergou quando admitiu que as Forças Armadas atuassem para garantir a lei e a ordem. Lula errou ao sancionar, em 2004, a Lei Complementar que garantiu poder de polícia às Forças Armadas na faixa de fronteira. Agravou o distúrbio de personalidade das fileiras e deixou de fazer o necessário preparar a segurança pública nas áreas remotas.

Nas diretrizes da frente partidária que o apoia, lançadas ontem, não vi nada a esse respeito. Até quando o Exército será confundido com polícia de fronteira? Persistindo tal confusão, os problemas serão agravados.

O envolvimento de militares em assuntos de segurança pública resulta em desastre, notadamente tratando-se de casos que envolvam os povos originários. Os oficiais aprendem desde a juventude que índio é estorvo e que seus protetores e ambientalistas são inimigos da pátria a soldo de interesses estrangeiros. Repetem essa ladainha de formas variadas. Uma delas afirma que há muita terra para pouco índio.

Também fico intrigado com as reclamações diante do fato de o ocupante da cadeira presidencial não manifestar solidariedade com os familiares de Bruno Pereira e Dom Phillips. O homem já provou não se comover com a dor alheia e mostrou incapacidade de se comportar como chefe de Estado. Não esqueço de como silenciou na morte de Nelson Freire enquanto o presidente francês mandava condolências ao povo brasileiro pela perda de seu gênio.

No caso de Bruno Pereira e Dom Phillips, se este indivíduo expressasse sentimento, seria de alegria: dois inimigos abatidos! O sujeito se formou em escolas militares, cabe lembrar.

Para os democratas, está difícil cair a ficha sobre a função que cabe aos braços armados do Estado. Ao reclamar o envolvimento do Exército em atividades policiais, os brasileiros reconhecem inadvertidamente legitimidade no desvio da missão militar. De quebra, agradam os comandantes, oferecendo-lhes pretexto adicional para pedir ampliação de orçamento.

Passa da hora de compreender que a sociedade mantém corporações militares para dissuadir estrangeiro hostil, não para atuar como polícia. Alguns imaginam que esta dissuasão possa ocorrer com a presença na fronteira. Ledo engano. Vigiar fronteira em tempo de paz é tarefa para polícia especializada. O mesmo quanto à defesa de reservas florestais.

Quem vigia fronteira, coibi desmatamento, persegue bandidos e garante a lei e ordem não pode se preparar para guerrear. As tarefas são incompatíveis. Quando os militares as assumem sofregamente, prejudicam a construção de um sistema de segurança pública e deixam o país desprotegido.

Pagamos caro para não termos defesa militar e vivermos sobressaltados.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC/UFF, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

 

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