Poesia e sociedade

Peter McClure, Melodia silenciosa, 2017.
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Por ALEXANDE PILATI*

Trechos de uma conversa com Guto Leite

Uma definição de poesia

Duas palavras que, a meu ver, distinguem o conceito de poesia são a amplitude e a variabilidade. Qualquer rigidez extremada na tentativa de definição do que seja poesia acarretará prejuízo para a percepção da importância histórica, social e literária desse fenômeno humano. Para apelar ao bom senso, é preciso, no mínimo, considerar que são móveis as fronteiras de delimitação desse trabalho específico com a linguagem e que tais fronteiras variam ao longo do tempo, sob as condições do processo histórico. Caberá aos poetas e aos leitores decidir qual, entre as definições de poesia, apetece mais à sua experiência de produção de sentidos através do poético.

Dito isso, para abordar diretamente sua pergunta, me agrada a ideia de pensar a poesia como uma forma estética que se constitui através de um uso muito peculiar da linguagem. Um uso que explora, de modo intensivo, as virtualidades expressivas da língua. E a língua, vale ressaltar, é sempre uma construção social, política, coletiva. O poema é escrito individualmente pelo poeta, que o faz, entretanto, com ferramentas que não foram criadas por ele, nem pertencem apenas a ele, são construções da comunidade a que ele pertence. Esse é um vínculo profundo entre a poesia e o processo histórico.

Nesses termos, quando considero a poesia como forma estética, penso em algo que reflete, segundo meios específicos, a realidade circunstancial e cria um plano novo de relações de significados, relativamente autônomo, dotado de leis próprias, que lhe lastreiam a coerência e lhe dão organicidade e integridade. Quando produz um poema, o poeta trabalha o mundo, processa-o, utilizando a intensidade das palavras, que são a sua matéria prima. Nesse esquema, que busca não restringir o conceito, segundo posso compreender, cabem, por exemplo, Gregório de Matos e Francisco Alvim; ou Byron e Olavo Bilac.

O trabalho poético

Talvez possamos ajustar os termos de sua primeira indagação. Para mim a poesia é um trabalho cotidiano. Se consideramos a poesia como uma forma de interpretação da realidade que submete essa mesma realidade à radicalidade da palavra e a transforma, e a recria, creio que posso afirmar que ela é constante na minha experiência intelectual. Um poeta amigo aqui de Brasília, Nicolas Behr, gosta de dizer que “o poeta está sempre escrevendo”, mesmo que não seja com lápis e papel na mão. A poesia é, sob esse enfoque, antes de o poema acontecer, certo tipo de atenção para a vida, para o mundo, para si, atravessada um por uma atenção de segundo grau, que é vinculada ao apelo de concretude da palavra.

Isso é o que gera um tipo especial de consciência do mundo, que é tão necessário para que o poema ocorra, especialmente se pensamos no que a teoria vai denominar como lirismo. Por essa via, creio que seja possível encontrar afinidade entre pesquisar, analisar, dar aulas de poesia e escrever poemas. Considero que a arte literária é, antes de tudo, como diria György Lukács, “crítica da vida”. Esse princípio é matricial nas atividades que tenho a sorte de exercer em chave de enriquecimento multidirecional, isto é: dar aula ajuda a escrever, que ajuda a analisar, que se alimenta do pesquisar, que apoia a aula… e assim por diante. Parece algo circular, mas, em toda linha, o que aproveito é acúmulo, avanço.

Poesia na sala de aula

Meu livro Poesia na sala de aula baseia-se em um princípio que me parece inescapável quando pensamos em “ensino de literatura”: o lugar da literatura é a escola, mas é preciso desescolarizar o ensino de literatura. Quero dizer com isso que a escola é o espaço que possibilita o acesso ao direito à literatura. Entretanto, para que esse direito seja efetivamente alcançado pelos leitores em formação, é necessário que eles sejam estimulados a participar ativamente de uma produção de sentidos, a qual só é possível devido à dimensão estética do texto literário.

Se pensamos na “poesia em casa”, acho que é possível conceber formas de interação doméstica em que a poesia se torne mais presente no cotidiano. Sob esse aspecto, me parece que as formas orais, como a canção e outras manifestações de nossa cultura popular cumprem um importante papel. No meu caso, por exemplo, posso dizer que fui apresentado à poesia e pude por ela me interessar por causa desses tipos de manifestação oral que eram constantes em meu cotidiano familiar.

Poesia e canção popular

A canção popular brasileira é o sistema cultural em que uma concepção forte de poesia se desenvolveu de modo mais amplificado e consistente. Nossa experiência cancional no século XX atesta isso de modo cabal. Passando por cima das picuinhas teóricas de distinção entre poema e canção, veremos que, no Brasil, a forma mais bem acabada que a poesia encontrou para reverberar e fazer sentido cotidiano na vida das pessoas foi a canção popular. Tanto é assim que muito compositores populares vieram da literatura e muitos autores de poemas vieram da canção popular.

Como aludi na resposta à questão anterior, minha experiência com a poesia foi sobretudo conduzida pela atenção à canção popular, que me foi estimulada desde cedo. Faço parte de uma geração de escritores, e mais especificamente de poetas, que começaram a escrever porque formaram a sua sensibilidade para as palavras através da imersão diária na canção popular. Até hoje, quando escrevo um poema, gosto de experimentar diálogos com frases, rimas e ritmos da canção popular.

Diálogo com Carlos Drummond

O diálogo de minha poesia com Drummond é mais consciente e por isso talvez mais explícito do que no caso de outras influências. É o seu diapasão “realista” que me interessa, isto é: uma tensão entre subjetividade e objetividade que é apresentada sem exageros, sem ênfase, sem efeitos, ilusões ou autocomplacência. Drummond escreve colocando essa tensão vital nua, a quente, à frente do leitor. É isso que a sua linguagem poética reverbera e o que nela me fascina. Um mundo ao mesmo tempo descrito e interpretado, num movimento que revela equilíbrio tenso e problemático entre indivíduo e sociedade.

Entretanto, há outras influências mais enraizadas, que assomam naturalmente quando escrevo poesia: Bandeira (que li muito na adolescência), Cabral (que li de modo livre em minha juventude), Gullar (que li muito quando comecei a desenvolver as ferramentas da crítica literária dialética). Já mais maduro, li de modo sistemático Rimbaud, Baudelaire, Pasolini e Dante. A todos esses eu volto sempre, como uma espécie de enciclopédia em que me alimento de ideias e sensações.

O gesto poético

Na maioria das vezes o poema começa a se constituir para mim através de uma frase ou duas. Tal frase já é resultado do contato com um fator, por assim dizer, extra-forma: um sentimento, um fato, uma paisagem, uma canção etc. Essa frase que vem brota inicialmente já é poema e guarda, talvez, o melhor que o futuro texto poderá resultar em termos de apropriação crítica e criativa da vida. Ela já contém ritmo, rima, metro, figuras etc. Manuel Bandeira dizia que “Todo grande verso é um poema dentro do poema”. O trabalho poético posterior, em geral, consiste em preencher o entorno dessa frase matriz.

Quando era um poeta mais jovem, estava muito preocupado com que o poema apresentasse imagens fortes, que provocassem o leitor. Hoje em dia, estou muito mais preocupado com o ritmo, que me parece cada vez mais legítimo como esteio do bom poema. Assim, se pudesse escolher (mas nem sempre nos é dado fazê-lo) começaria a escrever um poema em torno do sentimento do ritmo, de maneira que ele conduza o “contratempo” que é a existência de um poema, o qual exatamente pelo ritmo peculiar, dialeticamente, se distingue e se vincula ao correr da vida.

O que me motiva a escrever poesia é a inquietação inerente ao processo poético. Não há sentido em fazer poesia se não há inquietação. Por isso, poesia, para mim, é sempre uma busca. Muitas vezes, me perguntam sobre um determinado poema ou verso: “o que você quis dizer aqui?”. Gosto de responder, nesses casos, que escrevi para tentar descobrir o que eu queria dizer. Também sob esse aspecto a poesia é procura, inquietação e insatisfação. Um poeta satisfeito com a sua poesia padece de alienação, nos piores sentidos do termo.

Acho que isso garantiu modestamente algum progresso na minha obra. Há vinte anos, quando publiquei meu primeiro livro, os poemas eram escritos para provar aos outros e a mim mesmo que eu podia ser poeta. Hoje essa preocupação não existe mais e posso escrever os poemas sem a ansiedade de ser reconhecido como alguém capaz de escrevê-los. Hoje escrevo pelos poemas e não pelo poeta que eles irão ajudar constituir aos olhos de outrem. Quiçá essa seja a transformação básica.

Mas, se pensamos em continuidades ao longo da minha obra, mesmo lá, naqueles primeiros poemas, a insatisfação com a escrita era uma presença forte. Hoje consigo perceber a importância disso com mais lucidez. É como nos versos de uma canção da Nação Zumbi: “Sem fastio, com fome de tudo” – para mim esse é um lema que mantém o poeta vivo e chancela sua poesia como antena das exigências da vida.

Poesia e tradução

Do ponto de vista de quem é poeta, a tradução de poesia é, antes de qualquer coisa, um excelente exercício. O trabalho da tradução ensina (ou reitera) ao poeta o imenso valor de cada escolha (vocabular, métrica, sonora etc.) e de suas consequências. Hoje, certamente, penso e pondero muito mais cada escolha que faço ao escrever meus poemas, graças às tentativas de tradução de poesia que realizei. Traduzir poesia é, também, criar um novo texto poético – como já disseram alguns importantes nomes de nossa tradução literária.

Em certa medida, o tradutor é um coautor dos poemas na língua de chegada, por isso, precisa estar ciente de que deve respeito ao que está conformado na língua de partida. Entretanto, esse respeito, como se trata de coautoria, não deve reprimir as possibilidades criativas de abordagem do material original. Ao contrário do velho adágio que distingue o tradutor como traidor, penso que, nos melhores casos, o tradutor é um expansor de significados.

Por que a poesia?

No meu livro, procuro delinear algumas linhas importantes para o trabalho com a literatura em sala de aula, mais especificamente a poesia. Uma dessas balizas consiste em não desconfiar da inteligência e da sensibilidade dos estudantes, o que se revela na sua capacidade de descobrir sentidos, às vezes bem inusitados, na forma artística. A metodologia de abordagem da poesia na sala de aula precisa incluir essa diretriz e, assim, não furtar do estudante o “direito à descoberta”, como dizia Antonio Gramsci, que eu cito no livro.

Considerar a poesia de uma forma ampla, que engloba, por exemplo, o rap, a embolada, o cordel, o soneto, o funk, a elegia, a canção popular, também é fundamental para que se consiga transitar entre os interesses dos estudantes e o mundo da poesia mais distante de seu cotidiano. O papel do professor de literatura é formar leitores e isso passa necessariamente pelo estímulo à ampliação do repertório de leitura dos estudantes. “Mas afinal”, o futuro professor poderia perguntar, “por que a poesia?”.

Vamos ao cerne do problema: a sociedade capitalista é baseada em esquemas totalitários e monopolizantes, ela vive e se reproduz pelo monitoramento, controle e repressão dos sentidos. A liberdade que ela propala é de araque, porque atravessada até a medula pela mercadoria. Tudo tende, sob esse aspecto, a se fetichizar. A literatura tem o condão de se rebelar naturalmente contra isso – ela é o espaço do historicamente novo e da possível desalienação e precisa estar disponível especialmente àqueles que pensam que ela não lhes diz respeito.

Bem, salvo engano, a poesia pode efetivar tudo isso de um modo radical. Ler junto com os estudantes e escutá-los sobre o que leram é fundamental para que eles se aproximem da formulação própria e independente de um significado para a poesia nas suas vidas. Como escreveu o magistral escritor russo Anton Tchekhov, em “A noiva”, um de seus contos tardios, “O principal é transformar a vida, todo o resto é secundário”. É engraçado que a poesia nos desperte para a verdade da primeira parte desse enunciado sendo, talvez, o que há de mais secundário no mundo.

*Alexandre Pilati é poeta e professor de literatura brasileira na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Terra calada e outros poemas de distâncias (Caravana).


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