Quero estar acordado quando morrer

Sliman Mansour, A revolução foi o co meço, 2016
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MILTON HATOUM*

Discurso no evento de inauguração do “Centro de Estudos Palestinos” da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Parabenizo todos os que se empenharam em criar o Centro de Estudos Palestinos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. A existência deste centro é um acontecimento, e certamente vai estreitar as relações acadêmicas e culturais entre a USP e as universidades da Palestina.

Em 1982, quando o Estado ocupante bombardeou Beirute, o general israelense Rafael Eytan declarou que os palestinos eram “baratas drogadas numa garrafa”. No dia 9 de outubro de 2023, o ministro da Defesa de Israel disse que ia combater “animais humanos”. Com essas mesmas palavras os personagens brancos e racistas de um conto de James Baldwin nomeiam os afro-americanos; depois torturam e queimam até a morte o corpo de um homem negro, como vem ocorrendo com muitos palestinos de Gaza, incluindo crianças.

Como se sabe, James Baldwin, um norte-americano negro e homossexual, foi não apenas um grande escritor e ensaísta, mas também um incansável ativista antirracista e defensor da causa palestina.

Eu me lembrei desse conto enquanto lia o livro Quero estar acordado quando morrer, de Atef Abu Saif (Ed. Elefante). Atef, ex-ministro da Cultura da Palestina, é autor de vários romances, peças de teatro, reportagens e diários.

Os bons livros de ficção dão vida perene às imagens do passado. O jornalismo, quando visceralmente honesto e verdadeiro, dá vida perene às imagens e à catástrofe do tempo presente. O livro de Atef Abu Saif, publicado recentemente, é o testemunho de uma agressão monstruosa, covarde e extremamente cruel que ocorre há mais de um ano.

Como diz o título, Atef Abu Saif quer estar acordado quando morrer. Inúmeras vezes, em dias seguidos ou alternados, ele sentiu ou intuiu que ia morrer. Felizmente sobreviveu. Atef Abu Saif fala dessa sobrevivência, sempre precária, tantas vezes em suspenso, como se a vigília e o pesadelo fossem um estado permanente, ou uma linha tênue, quase invisível, que separa a vida da morte.

Durante quase 90 dias, o escritor foi testemunha do horror dos bombardeios por terra, ar e mar; viu corpos mutilados e desfigurados de amigos, parentes e de tantos outros palestinos que ele conhece, ou que conhecia, pois muitos foram assassinados. Atef Abu Saif narra brevemente a história dessas pessoas, invoca outros bombardeios contra Gaza ao longo deste século, e a primeira Intifada (1987-93), quando perdeu amigos de infância, foi ferido três vezes e preso por vários meses. Ele também nos lembra que esse pesadelo diuturno a que é submetido seu povo tem origem na Nakba, a catástrofe de 1948, quando 750 mil palestinos foram expulsos de suas casas e terras, e centenas de vilarejos e aldeias foram destruídos.

Segundo o saudoso romancista libanês Elias Khoury, a Nakba não acabou. De fato, a catástrofe iniciada antes mesmo de 1948 atravessou a segunda metade do século passado e culminou nesse genocídio executado pelo Estado ocupante, mas que só se tornou possível com a ajuda direta, maciça e incondicional do governo dos Estados Unidos e, em grau menor, de alguns países árabes e europeus.

Atef escreveu em seu diário: “Todos os dias olho para o futuro como um cego contemplando a noite”.

Edward Said assinalou que todas as ações do poder ocupante visam ao extermínio dos palestinos. Em seguida, acrescentou: “Mas os palestinos não vão desaparecer”. Penso que Atef Abu Saif e todos nós concordamos com o autor de Orientalismo.

Os palestinos não vão desistir de viver, nem de lutar pela liberdade; não vão desistir de escrever, imaginar, sonhar. O Estado ocupante e racista vem matando poetas, artistas, atores, atrizes, músicos, jornalistas, fotógrafos e cineastas. Mas essa barbárie não é recente.

Em 8 de julho de 1972, agentes israelenses mataram em Beirute o escritor palestino Ghassan Kanafani, cuja novela notável Umm Saad é citada no livro de Atef Abu Saif. Em 6 de dezembro de 2023, assassinaram o professor e poeta Refat Alareer, autor do poema Se eu tiver de morrer, traduzido em 30 idiomas e lido nas redes sociais por mais 30 de milhões de pessoas.

As bombas calaram o poeta, mas não o poema, cujo título premonitório refere-se à morte do autor, mas os versos aludem liricamente à vida, à infância, à liberdade. Refat Alareer vive e viverá nesse poema, que se tornou um dos símbolos mais potentes da resistência: um canto universal escrito em árabe por um jovem professor de literatura de língua inglesa de uma das 19 universidades de Gaza que foram destruídas, juntamente com livrarias, escolas, museus, teatros e centros culturais.

Mahmud Darwich, outro grande poeta palestino, escreveu no livro Memória para o esquecimento: “os fatos devem falar”. Atef Abu Saif deu voz aos fatos, que a maior parte da grande imprensa oculta, manipula ou distorce.

No posfácio de seu livro, Atef Abu Saif dirige-se ao leitor: “O que você tem nas mãos não foi planejado como um diário. Quando comecei, escrevia esses textos diariamente porque queria que as pessoas soubessem o que estava acontecendo. Queria que existisse um relato de eventos caso eu morresse. Senti a presença da morte tantas vezes… Conseguia senti-la pairando sobre mim, em meu ombro, e escrevi como uma maneira de resistir a ela, de desafiá-la – se não para derrotá-la, ao menos para não pensar nela. Como a guerra continua, só consigo pensar em sobrevivência. Não consigo lamentar. Não consigo me recuperar. Minha dor teve de ser adiada. Meu luto postergado. Agora não é hora de pensar nisso. Neste livro, porém, consigo ver todos que amei e perdi, e posso continuar conversando com eles. […] Ainda posso ainda posso acreditar que eles estão aqui comigo”.

Nós, neste auditório, estamos com você e com o povo palestino, Atef Abu Saif.

*Milton Hatoum é escritor. Autor, entre outros livros de Relato de um certo Oriente (Companhia das Letras).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A Terceira Guerra Mundialmíssel atacms 26/11/2024 Por RUBEN BAUER NAVEIRA: A Rússia irá retaliar o uso de mísseis sofisticados da OTAN contra seu território, e os americanos não têm dúvidas quanto a isso
  • A Europa prepara-se para a guerraguerra trincheira 27/11/2024 Por FLÁVIO AGUIAR: Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos
  • Os caminhos do bolsonarismocéu 28/11/2024 Por RONALDO TAMBERLINI PAGOTTO: O protagonismo do Judiciário esvazia as ruas. A força da extrema direita tem apoio internacional, recursos abundantes e canais de comunicação de grande impacto
  • O acontecimento da literaturacultura equívoco 26/11/2024 Por TERRY EAGLETON: Prefácio do livro recém editado
  • Os espectros da filosofia russaBurlarki cultura 23/11/2024 Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro “Alexandre Kojève and the Specters of Russian Philosophy”, de Trevor Wilson
  • Aziz Ab’SaberOlgaria Matos 2024 29/11/2024 Por OLGÁRIA MATOS: Palestra no seminário em homenagem ao centenário do geocientista
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • O premiado Ainda estou aquicultura ainda estou aqui ii 27/11/2024 Por JULIO CESAR TELES: Não é apenas um filme que soube usar recursos visuais, fontes de época ou retratar um momento traumático da história brasileira; é um filme necessário, que assume a função de memória e resistência
  • Não é a economia, estúpidoPaulo Capel Narvai 30/11/2024 Por PAULO CAPEL NARVAI: Nessa “festa da faca” de cortar e cortar sempre mais, e mais fundo, não bastaria algo como uns R$ 100 bilhões ou R$ 150 bilhões. Não bastaria, pois ao mercado nunca basta
  • Guerra na Ucrânia — a escada da escaladaANDREW KORYBKO 26/11/2024 Por ANDREW KORYBKO: Putin viu-se confrontado com a opção de escalar ou de continuar sua política de paciência estratégica, e escolheu a primeira opção

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES