Racismo à brasileira

Imagem: Afeez Ajibola Yusuf
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Por SAMUEL KILSZTAJN*

O Brasil é um país em busca de sua identidade. A política de ações afirmativas, apesar de ter sido então ridicularizada, é hoje, afortunadamente, uma conquista

O racismo dominou a ciência e a civilização ocidental na primeira metade do século XX. Após o desastre da Segunda Guerra Mundial, o Brasil, então considerado um paraíso racial, era um exemplo a ser seguido. A “democracia racial brasileira” foi objeto de pesquisa da Unesco em prol da superação do racismo a nível internacional.

Contudo, a pesquisa Percepções sobre o racismo no Brasil, realizada em abril de 2023 por iniciativa do Instituto de Referência Negra Peregum e do Projeto SETA – Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista, revela que 8 a cada 10 pessoas consideram que o Brasil é um país racista.

Gabriel García Márquez dizia que vivia para contar; eu conto para viver. Embora não traga a negritude na pele, meu pai foi escravo em Ebensee. Mas ele só se deparou com pessoas negras, pela primeira vez na vida, quando foi libertado pelos soldados norte-americanos do Campo de concentração nazista na Áustria. Depois de ficarem alojados em Campos de refugiados, meus pais foram morar num cortiço, onde eu nasci. Minha mãe nunca tinha visto uma pessoa negra na vida até desembarcar no Porto de Santos em 1953. Joseph Roth, em Um judeu vai para a América, escreveu em 1927, “do outro lado do oceano, existem judeus ainda mais judeus do que os judeus, ou seja, os negros”.

Meus pais sequer sabiam onde ficava o Colégio Estadual de São Paulo, onde cursei o ensino médio. Mas, um dia, encontrei minha mãe no colégio, que fora chamada pela diretora. Estávamos em meio à Ditadura militar e a diretora, na minha presença, disse para minha mãe que eu era subversivo, daqueles que “diziam” que se casavam com negras. Fiquei um tanto perturbado porque a diretora não se restringiu à política, incluindo, como subversão, a minha amizade com uma das poucas moças negras do colégio, o que, para mim, não tinha relação alguma com as minhas preferências políticas (ou deveria ter?).

A questão racial, evidentemente, é uma construção cultural. Dentro de um ônibus, meu filho, aos quatro anos de idade, perguntou algo sobre “aquela mulher branca na nossa frente”. Eu não estava vendo nenhuma mulher branca na nossa frente e ele, não querendo apontar para ela, começou a ficar irritado comigo, “como é que você não está vendo aquela branca na nossa frente?” Era uma mulher negra com blusa branca.

Já como professor na universidade, por um incidente, me vi envolvido na coordenação de pesquisas na área da saúde. Na saúde pública nos defrontamos com a questão da violência; e, a partir dos homicídios, chegamos à questão racial. As pesquisas sobre violência nos levaram ao tráfico de drogas e à conclusão de que a maior parte das vítimas de homicídio são os próprios traficantes, mais precisamente os pequenos e descartáveis traficantes do varejo, que vivem nas franjas do crime organizado.

Os homicídios relacionados ao tráfico de drogas têm três fontes: o código penal cáustico instituído pelo tráfico que, nos bairros pobres, leva seus jovens integrantes à morte; a concorrência sanguinária entre quadrilhas de traficantes, derivada dos lucros extraordinários deste comércio (ilícito); e o confronto com a polícia, em muitos casos com policiais corruptos que exigem sua parte nos lucros. A “lei do silêncio” garante a proteção da hierarquia e autoridades envolvidas no tráfico. Mata-se um nóia por um calote de 70 reais, para impor a moral; e protege-se a elite, que recolhe suas fichas com o auxílio de rodo.

O perfil das vítimas de homicídio é sexo masculino, jovem, pobre e preto. Mas, se as vítimas são os próprios traficantes, isso equivale a dizer que o perfil dos traficantes é sexo masculino, jovem, pobre e preto. Ao fecharmos o artigo “Vítimas fatais da violência e mercado de drogas na Região Metropolitana de São Paulo”, publicado na Revista Brasileira de Estudos de População, achamos mais conveniente só mencionar as variáveis sexo, faixa etária e nível de renda, excluindo a variável raça/cor… para, na sequência, nos debruçarmos no estudo que denominamos “Vítimas da cor”.

Na pesquisa, nos deparamos com questões demográficas chaves para entender a maior participação de negros entre as vítimas (e entre traficantes do varejo). Descobrimos que o negro, além de ser maioria na população pobre, também o é na população masculina e entre a população jovem, ou seja, há proporcionalmente mais homens negros que brancos e há proporcionalmente mais jovens entre os negros que entre os brancos. A pesquisa revelou que homens pobres e jovens, negros e não-negros, apresentam a mesma probabilidade de serem assassinados (e traficantes do varejo).

Embora a taxa de mortalidade por homicídios seja maior na população negra, a taxa de mortalidade por homicídios para homens jovens e pobres é a mesma entre negros e brancos. Ou seja, o trabalho confirma que a maior parte dos traficantes do varejo (e vítimas de homicídio) são os pequenos e descartáveis traficantes, homens pobres e jovens, negros e brancos, que vivem nas franjas do crime organizado.

Nossos resultados, publicados nos Cadernos de saúde pública da Fiocruz, não foram propriamente entendidos. Nos congressos científicos na área da saúde pública, vários representantes negros acharam que estávamos minimizando a importância dos homicídios de negros, e não estávamos. Fomos convidados também a apresentar o nosso trabalho na Academia Militar do Barro Branco. Os oficiais da Polícia Militar ficaram muito contentes com o nosso trabalho, porque queriam acreditar que isso significava que eles não acossavam os negros. Ou seja, nosso tiro saiu pela culatra.

Depois desse fiasco, nos dedicamos à pesquisa sobre “Concentração e distribuição do rendimento por raça no Brasil”, que foi publicada na Revista de economia contemporânea da UFRJ. A partir desses estudos e evidências, em 2000, passamos a militar em prol da regulamentação das cotas na universidade; e, paralelamente, abrimos vagas para negros para desenvolver pesquisas sobre a questão racial no país. Mas ficamos muito surpresos com o racismo prevalecente entre professores de esquerda nas universidades brasileiras.

Em reunião com todos os coordenadores de programas da Pró-reitoria de pós-graduação da universidade, apenas três programas se pronunciaram a favor das cotas, todos os demais eram contrários. Uma coordenadora se deu ao trabalho de ler um manifesto que escreveu contra as cotas para negros, defendendo cotas para homossexuais; outro, entre risinhos, disse que todos nós tínhamos um pé na cozinha, ao que respondi, “eu não”.

O Brasil é um país em busca de sua identidade. A política de ações afirmativas, apesar de ter sido então ridicularizada, é hoje, afortunadamente, uma conquista. A universidade, na época em que ingressei na faculdade, ficava na Bélgica. Hoje, felizmente, por conta das ações afirmativas, a universidade pública está ficando com a cara do Brasil, ainda que seja somente em meio ao seu corpo discente. Os professores ainda são belgas, mas a universidade certamente está produzindo intelectuais negros que, daqui a uma geração, estarão ocupando o cargo de docentes, a exemplo do geógrafo Milton Santos.

*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de 1968, sonhos e pesadelos (https://amzn.to/3ZkegH7)


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