Repolitização da política

Lênin chega à estação Finlândia. Foto: reprodução YouTube
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

A novidade do Plano Plurianual Participativo do governo Lula 3.0 faz a política fugir da cretinice do Parlamento e vai às ruas. A notícia é ótima, mas a Estação Finlândia ainda está muito distante

Nenhum regime político tem a densidade da democracia. Mesmo os regimes autoritários mantêm os mecanismos constitucionais consagrados no paradigma democrático-republicano, com a divisão de poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário) e as instituições políticas, embora o cerco à liberdade. Vide o Ato Institucional (AI-2, 1965) da ditadura militar para assegurar uma maioria no Supremo Tribunal Federal (STF), ao aumentar de 11 para 16 os seus membros. Um Estado de exceção simula administrar somente coisas, e não pessoas, em um esforço farsesco de despolitização da política.

Na nova razão hegemônica, a democracia navega com o leme do ajuste fiscal, desindustrialização, privatização, desemprego e sob pretexto da “narrativa de crise” guia o Estado de direito neoliberal. Desnecessário citar os impostores do lavajatismo que nutriam a antipolítica, em nome do combate à corrupção. A máscara já caiu. Hoje, propaga-se a desvalia da política com o lawfare, sem a manu militari. O discurso de ódio abrange a toga, a opinião patrocinada e o “cretinismo parlamentar”, que reputa a luta da tribuna a principal arma de embate em qualquer conjuntura. A intempérie espiritual não escolhe dia ou hora. Para João Cabral de Melo Neto: “Não há guarda-chuva / contra o mundo”.

Visão da Casa grande

Luís Roberto Barroso, explica o que levou à aprovação da Lei das Terceirizações (31/03/2017) na atividade das empresas, em “Judicialização da vida”, no livro 130 anos: em busca da República, organizado por José Murilo de Carvalho et al. “A maioria dos ministros assentou que a Constituição não impõe um modelo de produção específico, não impede o desenvolvimento de estratégias empresariais flexíveis e tampouco veda a terceirização”. Até aí, tem-se o parecer da legalidade do assunto. O futuro presidente do STF registra o doloroso capitulacionismo trabalhista, a seguir.

“(i) O direito do trabalho e o sistema sindical precisam se adequar às transformações no mercado de trabalho e na sociedade; (ii) A terceirização não enseja, por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do trabalhador ou desrespeito a direitos previdenciários. O exercício abusivo da sua contratação é que pode produzir tais violações, existindo meios de prevenir e de reprimir tal comportamento”. O imperativo “precisam se adequar” revela que, 350 anos de escravidão, não bastaram para garantir a justiça aos neoescravizados. O menosprezo à labuta mantém-se incólume.

Impõe-se a visão da Casa grande, e se devolve à senzala a mão de obra num ambiente contratual de diminuição da massa salarial, em face dos ganhos do capital. O desmonte dos órgãos de fiscalização presencial das superintendências e gerências do trabalho e do emprego contradiz o lero-lero sobre “os meios de prevenir e de reprimir” as terceirizações em cruentas modalidades de superexploração.

Na Paraíba, a sede da Superintendência esteve interditada pelo risco de incêndio nas instalações elétricas. A Gerência de Osasco, com seis agentes para fiscalizar itens das condições de trabalho, saúde e segurança em dez municípios, em poucos anos registrou 54.318 acidentes, 1.406 boletins de doenças e 192 mortes. “A quem interessa o desmonte da fiscalização do trabalho?”, perguntam a auditora-fiscal Beatriz Cardoso Montanhana e a juíza do TRT-15 Patrícia Maeda (Associação Juízes pela Democracia, n°. 70). Inexistem os “meios” competentes de vigilância, alegados na Alta Corte.

Mensagem esquecida

Indissociável da ideia de liberdade como se depreende da definição “governo do povo para o povo”, a democracia naufragou. Rasgou-se a certidão de nascimento da Idade Contemporânea, a declaração de direitos de 1789-1791: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. La porte de l’enfer se abriu. Separou-se o trabalhador dos direitos de cidadão. O empresariado subsumiu a “vontade geral”, e o STF assumiu o papel da sociedade sem a alma do Estado de bem-estar social.

Diferente do que prevaleceu até metade do século XIX, voltado à formação iluminista da cidadania, o jornalismo atual visa a subjetividade do homo economicus para o aceite do status quo. Divulgava-se as ideias (valor de uso), e agora as mercadorias (valor de troca). A dimensão comercial venceu. Jornalistas econômicos viraram ventríloquos das finanças, reproduzindo releases de consultorias à guisa de informação. Fake news “técnicas” blindaram a péssima economia contra a boa política. A esquerda faz o Estado intervir na economia para barrar as desigualdades. A direita e sua extrema absolutizam o livre mercado. Não falta remador na canoa furada do totalitarismo da mercadoria.

Ignorou-se a Mensagem para o século XXI, de Isaiah Berlin (1909-1997): “Somos obrigados a fazer concessões, forjar compromissos, lançar mão de oportunidades para que o pior não nos assombre”. A covardia jogou no lixo a vocação possível para o bem coletivo e, no altar, pôs o capital volátil. O mandonismo no topo da pirâmide procurou impedir, na base, um pensamento com dados confiáveis sobre os diversos ângulos da existência social – a economia, a cultura, o direito, o modo de vida, etc.

A opacidade foi a régua no quadriênio do populismo direitista. O próprio despresidente afirmava ser ingovernável o país. Nas redes sociais, os bolsonaristas como os trumpistas aboliram ao máximo o debate público, estruturando-se de forma a incentivar a despolitização e arregimentar bolhas a partir de polêmicas moralistas no Twitter. Na militância cibernética, a adesão era confirmada pelo número de likes. No círculo do ladrão e companhia, a confirmação vinha em caixas de joias milionárias.

Um novo imaginário

A novidade do Plano Plurianual Participativo do governo Lula 3.0 está em colocar a política ao alcance de todas todos e todes, universalizando a deliberação sobre temas centrais para as unidades federativas. A política foge da cretinice do Parlamento e vai às ruas. Assembleias atraem massas de interessados e gestores. À diferença das Conferências Nacionais de gestões anteriores, o PPA-Participativo tem a prerrogativa institucional de escolher as prioridades. O silêncio midiático não é um acaso, senão a tentativa de desqualificar o novo imaginário social e os seus protagonistas.

O tímido ensaio de autogoverno derruba o dogma de que o locus da política é o Legislativo, e os representantes eleitos. A política ocorre em lugares que acolham o povo como sujeito – em vez de objeto de políticas dos demagogos. O experimento traz a marca do humanismo socialista no empoderamento da população, para que a democracia desenvolva o potencial constituinte de um ordenamento sociológico mais igualitário. Recusa os pressupostos do Consenso de Washington.

Sem resvalar em um otimismo panglossiano para o qual “tudo vai melhor no melhor dos mundos possíveis”, como se lê no Cândido, de Voltaire, a isso podemos chamar “pedagogia do oprimido” ou “contra-hegemonia”. Trata-se da construção lenta, não da épica hollywoodiana sobre as tomadas do poder. Depende de um trabalho de persuasão pela práxis, com intervenções permanentes em várias frentes – partidos, sindicatos, entidades comunitárias, trabalhadores informais, movimentos de mulheres, antiracistas, ecológicos, LGBTQIA+, ONGs. A cotidiano deve impulsionar o processo civilizacional de repolitização da política, para uma outra história – saída da sombra – vir à luz.

Não obstante, em artigo incluído no Brasil sob escombros, organizado por Juliana Paula Magalhães e Luiz Felipe Osório, vale o alerta de Breno Altman: “Os fatores orgânicos de corrosão do consenso social seguem presentes, apenas esmaecidos pela sensação de que foi evitado um mal maior. Seria ilusão fatal, se essa pausa provisória conduzisse à inversão de causalidade – o bolsonarismo é produto da crise sistêmica, não seu criador”. Para os liberais econômicos, presentes no governo em curso, chegou-se ao teto. Para os democratas sociais, a Estação Finlândia ainda está muito distante.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Gilberto Maringoni Ricardo Musse Antonino Infranca Paulo Martins Carlos Tautz Leonardo Avritzer Andrew Korybko Jorge Luiz Souto Maior Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Renato Martins Lincoln Secco Érico Andrade Fernão Pessoa Ramos Francisco Fernandes Ladeira Leonardo Sacramento Alysson Leandro Mascaro Ronald Rocha Vladimir Safatle Marjorie C. Marona Luiz Bernardo Pericás Mariarosaria Fabris Thomas Piketty Flávio Aguiar Ricardo Antunes Ladislau Dowbor Lorenzo Vitral Luiz Marques Carla Teixeira Daniel Brazil Fábio Konder Comparato Yuri Martins-Fontes Valerio Arcary Alexandre de Freitas Barbosa Elias Jabbour Marilena Chauí Matheus Silveira de Souza Valerio Arcary Eleutério F. S. Prado Eduardo Borges Gerson Almeida Celso Favaretto Marcos Silva Armando Boito Jorge Branco Gabriel Cohn Henri Acselrad Celso Frederico Osvaldo Coggiola Luiz Roberto Alves Ronaldo Tadeu de Souza Ronald León Núñez Marcos Aurélio da Silva Airton Paschoa Paulo Capel Narvai Tales Ab'Sáber Eleonora Albano Plínio de Arruda Sampaio Jr. Samuel Kilsztajn Marilia Pacheco Fiorillo Rodrigo de Faria Vinício Carrilho Martinez Paulo Sérgio Pinheiro Kátia Gerab Baggio Paulo Fernandes Silveira Denilson Cordeiro Liszt Vieira Annateresa Fabris Fernando Nogueira da Costa Flávio R. Kothe Jean Marc Von Der Weid Marcus Ianoni Renato Dagnino Gilberto Lopes Eugênio Trivinho Leonardo Boff Henry Burnett Michel Goulart da Silva Salem Nasser Benicio Viero Schmidt Berenice Bento Tadeu Valadares Luiz Eduardo Soares Priscila Figueiredo Leda Maria Paulani Otaviano Helene João Carlos Loebens Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luis Felipe Miguel Eliziário Andrade Afrânio Catani Sandra Bitencourt Francisco de Oliveira Barros Júnior José Costa Júnior Manchetômetro Bernardo Ricupero André Singer Marcelo Guimarães Lima José Geraldo Couto Daniel Costa Francisco Pereira de Farias José Luís Fiori João Carlos Salles Luís Fernando Vitagliano Bruno Machado Chico Alencar Eugênio Bucci Igor Felippe Santos Maria Rita Kehl João Paulo Ayub Fonseca Sergio Amadeu da Silveira Walnice Nogueira Galvão Manuel Domingos Neto Julian Rodrigues Milton Pinheiro Daniel Afonso da Silva Antônio Sales Rios Neto João Feres Júnior Paulo Nogueira Batista Jr Lucas Fiaschetti Estevez Boaventura de Sousa Santos Antonio Martins José Machado Moita Neto Ari Marcelo Solon Rafael R. Ioris Alexandre de Lima Castro Tranjan Atilio A. Boron Luciano Nascimento Tarso Genro Claudio Katz Vanderlei Tenório André Márcio Neves Soares Luiz Werneck Vianna Everaldo de Oliveira Andrade Marcelo Módolo José Dirceu Bento Prado Jr. Michael Löwy Ricardo Abramovay Caio Bugiato João Sette Whitaker Ferreira Alexandre Aragão de Albuquerque Dênis de Moraes Ricardo Fabbrini João Adolfo Hansen José Raimundo Trindade Luiz Carlos Bresser-Pereira Heraldo Campos Chico Whitaker Michael Roberts Andrés del Río João Lanari Bo Remy José Fontana Rubens Pinto Lyra Mário Maestri José Micaelson Lacerda Morais Dennis Oliveira Jean Pierre Chauvin Anselm Jappe Slavoj Žižek Juarez Guimarães

NOVAS PUBLICAÇÕES