Por GUSTAVO CAPONI*
Lula vai para o segundo turno em posição mais confortável que Gustavo Petrus e Gabriel Boric, vencedores na Colômbia e no Chile
O chamado ‘pensamento positivo’ sempre me pareceu um eco do pensamento mágico-religioso. Por isso não me deixei levar pela onda de otimismo ‘Lula ganha no primeiro turno’. Sabia que Jair Bolsonaro não era um extraterrestre; e que ele é produto e expressão de uma grande parte da sociedade brasileira. Essa parte que é reacionária, conservadora, racista, e sumamente inculta; malgrado os diplomas universitários que alguns possam ter.
Eu esperava uma eleição difícil e de resultado imprevisível. Basicamente, o bolsonarismo é expressão de três coisas: dos interesses de uma alta burguesia que não quer um governo que possa arbitrar em favor dos trabalhadores na puja distributiva; das aspirações de uma classe média alta que quer defender seus (muitas vezes magros) privilégios e vantagens com relação aos setores mais pobres da sociedade; e do conservadorismo recalcitrante de parte desses setores mais pobres.
Esse conservadorismo, que também é muito importante nos setores médios, pode se impor a qualquer cálculo racional a respeito da ameaça e o retrocesso que o bolsonarismo acarreta para os interesses e direitos dos setores baixos e médios da sociedade. Por isso, a vitória de Lula não era algo fácil. Por outra parte, quem foi irracional o bastante como para votar Jair Bolsonaro uma vez, evidencia uma indigência cognitiva que não permite ser muito otimista respeito da sua capacidade de revisar um erro. O método de fixação da crença que impera no pensamento irracional é o método da tenacidade (vide Charles Sanders Peirce).
Entretanto, malgrado esse contexto deplorável, o resultado que Lula de fato obteve foi muito bom. Foi uma vitória eleitoral importante e significativa. Ganhou por mais de cinco pontos, ficando a menos de dois pontos de ter ganho a eleição já no primeiro turno. A ‘surpresa’ desagradável, porém, foi a ‘imprevista’ quantidade de votos fascistas. E isso leva a moderar o otimismo que certamente cabe ter com relação ao segundo turno.
Embora, também se possa pensar que Jair Bolsonaro esteja mais perto de seu teto eleitoral do que Lula. Além do mais, o percentual de votos “indefinidos” que Bolsonaro precisa conquistar para se impor é muito maior do que aquele que Lula tem que conquistar. É claro, infelizmente, que a irracionalidade que parece motivar as escolhas da maior parte do eleitorado brasileiro até pode gerar a preocupação de que uma parte dos votos de Lula vire em favor de Jair Bolsonaro. Mas acho que, se isso vir a acontecer, será um fenómeno marginal.
O que não dá é para deixar-se levar pela onda de abatimento resultante do desapontamento daqueles que se deixaram levar pelo ‘pensamento positivo’. Esse otimismo, contrário ao célebre mais comumente ignorado ‘pessimismo da inteligência’, foi produto do pensamento mágico; e não tem que ser considerado na hora de avaliar o acontecido. De fato, Lula sai do primeiro turno numa posição de longe muito mais confortável do que aquela na qual saíram do segundo turno dois candidatos progressistas que recentemente também pleitearam, e ganharam, a presidência perante eleitorados em grande parte reacionários e conservadores.
Falo de Gustavo Petrus na Colômbia, e de Gabriel Boric no Chile. Gustavo Petrus passou ao segundo turno em primeiro lugar com quarenta por cento dos votos; que não eram muito promissores com relação ao cinquenta e pouco por cento dos votos que tinham somado os dois principais (embora não únicos) candidatos de direita. Gabriel Boric chegou ao ballotage tendo atingido só um desluzido segundo lugar no primeiro turno. Levando nessa primeira etapa só o vinte e seis por cento dos votos, e tendo que sair a fazer a diferença apelando para um eleitorado que, na sua maior parte, tinha se espalhado entre alternativas de ‘centro-direita’.
Todavia, e felizmente, Petrus, Boric e Lula são políticos de verdade. Políticos de raça que, para lutar com o otimismo de vontade, não precisam contrariar o sempre saudável pessimismo da inteligência. Não fosse assim, o torneiro mecânico nunca teria chegado a ser o presidente mais importante de toda a história latino-americana; e é porque ele é como de fato é, que ele saberá liderar a puja eleitoral deste mês que temos pela frente. Para vencer um desafio importante não é preciso pensar que ele seja ‘coisa fácil’; nem tampouco é preciso ter ‘fé’ nas próprias forças. Pelo contrário: é melhor não se deixar enganar por essas bobagens.
Para enfrentar uma batalha, há que levar em conta as dificuldades e as próprias fraquezas. E há que saber usar a força que se tenha, pouca ou muita, para bater impiedosa e astutamente nas fraquezas do adversário; que, neste caso, todos sabemos que são muitas.
*Gustavo Caponi é professor de filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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