Um campo vasto

Sergio Sister, 1970, ecoline e crayonsobre papel, lápis e caneta hidrografica, 32x45 cm
image_pdf

Por MARCUS MAZZARI*

Comentário sobre o romance de Günter Grass

Um campo vasto, embora inserido na tradição picaresca e repleto de referências e alusões literárias, é em primeiro lugar um romance político de rara ousadia: os 37 capítulos, organizados em cinco livros, constituem tableaux em que Grass projeta e prismatiza uma visão extremamente crítica da reunificação alemã. Pois este é o tema central do romance, a linha de fuga que organiza uma série de episódios aparentemente soltos, que se estendem de dezembro de 1989 a outubro de 1991. Mas para isso Günter Grass constrói uma ampla e complexa perspectiva narrativa, uma vez que os acontecimentos em torno da reunificação são paralelizados com a unificação alemã nos anos 1870, sob a égide de Bismarck (às vezes recuando-se até o movimento revolucionário de 1848).

Essa visão histórica está intimamente relacionada com a concepção da personagem principal: Theo Wuttke, mais conhecido pelo apelido de Fonty, é uma espécie de reencarnação do grande realista alemão Theodor Fontane (1819-1898). Nascido no mesmo dia deste e na mesma cidade, mas exatos 100 anos depois, as experiências de vida de Fonty reproduzem fielmente os principais fatos da biografia do “imortal”, como Fontane é mencionado ao longo do livro. Essa correspondência abrange detalhes da constelação familiar, vicissitudes políticas como a participação na ocupação militar da França (sob Bismarck e sob Hitler) ou o envolvimento com serviços secretos, uma irresistível atração pela Escócia e até doenças ou a comemoração pouco feliz do septuagésimo aniversário. Observe-se ainda que a instância narrativa engendrada por Grass, o “nós do arquivo” que abre o romance e vai articulando suas várias dimensões (às vezes um “eu” destaca-se do coletivo, mas sem adquirir nitidez para o leitor), refere-se ao Arquivo Fontane, sediado ainda hoje na cidade de Potsdam.

Assim, Um campo vasto é também um romance sobre vida e obra de Fontane, autor de baladas e relatos de viagem que apenas aos 60 anos estreia como romancista, produzindo a partir de então verdadeiros marcos do realismo alemão e mesmo europeu, como é o caso dos romances O Stechlin e Effi Briest [1]. Deste último, filmado por Fassbinder, Grass extraiu o título do seu livro: “um vasto campo” é a expressão com que o velho Briest, pai de Effi (de certa forma o pendant prussiano de Madame Bovary ou Ana Karênina), busca sistematicamente furtar-se a todo assunto mais espinhoso. (É claro que, em Grass, “vasto campo” abriga uma referência sub-reptícia às dimensões territoriais da nova Alemanha).

Mas a esse Fonty, portador de tanta tradição histórica e literária, não é permitido perambular sozinho pela Berlim ampliada pela queda do muro; Grass dá-lhe a companhia de uma “sombra diuturna” que deve sua existência a uma fonte literária: trata-se de um certo Hoftaller, reedição autorizada da personagem Tallhover, que no romance homônimo de Hans-Joachim Schädlich (1986) representa a perenidade dos serviços secretos e de espionagem. Ligados por um pacto obscuro em que ressoam associações com o pacto clássico entre Fausto e Mefistófeles, mas sugerindo também, nos empreendimentos que terminam pateticamente, a dupla Bouvard e Pécuchet, visitam por dentro (naturalmente a contrapelo da perspectiva oficial) as diversas etapas da recente história alemã: a transformação do muro em souvenirs no capítulo de abertura; a união monetária no final do primeiro livro; o processo de privatizações nos capítulos do quarto livro que se passam na sede da Sociedade Fiduciária (“Treuhand”), por cujo intermédio as estatais da antiga República Democrática Alemã são privatizadas (ou antes presenteadas, observa Grass); a cerimônia oficial de reunificação no término do terceiro livro. Neste último episódio eles têm a companhia de Madeleine Aubron, neta ilegítima de Fonty (pois também Fontane teve experiência semelhante) que surge inesperadamente no meio do romance, trazendo consigo a visão francesa da reunificação.

Com esse romance, Grass demonstra seu pouco apreço por aquela velha lei do gênero épico, ilustrada já pela Ilíada, que recomenda situar no passado as histórias narradas – e quanto mais pretéritas elas sejam, melhor para o narrador, esse “evocador sussurrante do imperfeito”, acrescentou Thomas Mann. Acima dessa lei, importa-lhe o direito do escritor de imiscuir-se na história de seu tempo, de ser um contemporâneo participante e incômodo. Embrenha-se assim, em seu novo epos, pelos escusos meandros da Sociedade Fiduciária, buscando desvendar a mentalidade rapinosa via de regra racionalizada pelas ideologias econômicas: “Em 70/71, não foi diferente”, lê-se no paralelo histórico traçado por Fonty no 20º capítulo. “A unificação alemã é sempre a unificação dos vigaristas e dos gananciosos. Só que então existia a quarta classe, a dos operários. Nisso ainda havia esperança”. E mais adiante, o desabafo de Hoftaller: “Privatizar, ainda que associado com o Diabo, e agora o Diabo botou os chifres de fora!”.

É natural que a resistência literária de Grass também se defronte com teorias pós-modernas em alta cotação na atual vida universitária, expondo sua feição caricatural, no final do capítulo 14, com algumas pinceladas precisas; e paralelamente vai contando, por meio de cartas trocadas com Fonty, a trágica história do judeu marxista Freundlich, professor em Jena cuja produção intelectual é avaliada e rejeitada por uma comissão acadêmica mais “sintonizada” com o atual espírito do tempo.

Pela profusão de paralelos históricos e de referências literárias, Um campo vasto não é leitura fácil. Cumpre advertir, porém, que o leitor brasileiro enfrenta dificuldades adicionais. As escassas notas da tradução são pouco esclarecedoras, começando com a que explica a primeira menção a Effi Briest com uma vaga observação sobre “Hölderlin, Goethe etc”. Outra nota sobre o trocadilho com o “imperativo kantiano de covardia categórica” poderia ser mais esclarecedora se acrescentasse que o escritor de que se trata no contexto se chama Hermann Kant, beneficiário de altos cargos na RDA que não primou propriamente pela coragem.

Também fica a cargo do leitor descobrir o que seja Stasi, sigla abreviada do então onipresente serviço secreto da RDA. Entre os problemas da tradução, alguns o leitor atento poderá solucionar por conta própria, como uma data equivocada à pág. 52, que empurra a unificação alemã para o século 18. Esse leitor poderá estranhar os baixos custos da primeira etapa da reunificação, já que na edição brasileira faltam outros 24 bilhões de marcos (pág. 121); é de se estranhar também que os nomes de Rosa Luxemburgo e Heine fossem tão solicitados para rebatizar ruas e praças em cidades da antiga RDA (pág.139). Deparando-se com “trabalhadores como Stirn e Fausto” (pág. 434), o leitor deve entender algo como “trabalhadores intelectuais e braçais”, já que se trata de uma expressão com os substantivos Stirn (testa) e Faust (punho).

Marcus Mazzari é professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Autor, entre outros livros, de Labirintos da aprendizagem (Editora 34).

Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, Jornal de Resenhas, em 10 de outubro de 1998.

Referência

Günter Grass. Um campo vasto. Tradução: Lya Luft. Rio de Janeiro, Record, 1998, 616 págs (https://amzn.to/457HPhm).

Nota do editor

[1] Sobre a vida e a obra de Theodor Fontane cf. Arlenice Almeida da Silva. “Effi Briest”. In: A Terra é Redonda [https://aterraeredonda.com.br/effi-briest/].

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES