Por VALERIO ARCARY*
O golpe de 1964 abriu caminho para uma regressão econômico-social
“Coitados dos revolucionários que se contentam em fazer uma revolução pela metade, não estão senão cavando a sua própria sepultura” (Saint-Just, Rapport à la Convention, 3 de Março de 1793).
As sequelas da noite de 31 de março de 1964 duraram vinte anos. Foi uma derrota histórica. A quartelada de março foi uma insurreição militar preventiva. A ditadura militar instaurada em 1964 foi uma contrarrevolução social em toda a linha. Precipitada pelo medo de que uma situação revolucionária poderia se precipitar e sair de controle diante da crescente instabilidade social e política da luta de classes durante o governo João Goulart.
Ninguém poderia antecipar, todavia, naquelas circunstâncias, que a ditadura seria tão duradoura. O regime militar abriu o caminho para uma regressão econômico-social. As organizações operárias e populares, e a esquerda sindical e política não se prepararam para o confronto. Foram surpreendidas pelo golpe e derrotadas, sem capacidade de resistência, prisioneiras de suas ilusões na disposição de lutar do governo de João Goulart. “Estavam com os punhos cerrados, mas com as mãos nos bolsos”, nas palavras que Rosa Luxemburgo. Nas palavras de Jacob Gorender, quando deveriam ter conclamado à luta com as armas, recuaram. Quando empunharam as armas, heroicamente, após 1968, já era tarde demais. A desmoralização social e política entre as amplas massas populares era irreversível. O medo de represálias era esmagador.
Um confronto com os setores organizados dos trabalhadores foi procurado e construído, intencionalmente, por uma fração pró-yankee da burguesia, desde o suicídio de Getúlio Vargas em 1954. O golpe não poderia deixar de estabelecer uma nova relação de forças entre as classes em escala continental, deixando Havana, dramaticamente, isolada. O golpe no Brasil foi o carrasco da revolução na América Latina.
A situação reacionária aberta depois do golpe intitucional de 2016 favoreceu o surgimento de interpretações do golpe que insistem em requentar duas teses esdrúxulas. A primeira é aquela que afirma que nenhuma das forças políticas em confronto em 1964 tinham compromissso com a democracia. A segunda, como consequência da primeira, é aquela que defende que o governo Jango caminhava para um autogolpe prévio às eleições previstas em 1965. Nenhuma delas é verdadeira.
A esquerda brasileira era hegemonizada pelo PCB. Se havia uma força política comprometida com a legalidade constitucional em 1964, esse partido era o PCB, o que é irônico, porque o PCB não era legal. Vivia desde 1948 na semilegalidade, ou seja, em uma semiclandestinidade. Não se desconhecia quem eram os seus membros mais destacados. Mas o PCB pagava o preço de lutar no contexto da guerra fria, e era um dos partidos mais disciplinados na América Latina, depois do giro político conduzido por Kruschev. O PCB estava comprometido com uma estratégia reformista e, por isso, foi quase destruído. Pode-se ter uma percepção muito crítica do que foi a política do partido de Prestes em 1964. Mas acusar o PCB de preparar uma ruptura revolucionária é desonesto e injusto.
A teoria do autogolpe de Jango é outra fabulação conspirativa, facilmente, refutável. Mas é verdade que a situação política no Brasil de 1964 era de desgoverno, ou seja, pré-revolucionária. Uma revolução era, por suposto, necessária, para que as reivindicações populares pudessem ser satisfeitas. Mas as massas trabalhadoras não tinham qualquer ponto de apoio organizado, lúcido e determinado para poderem se defender da contrarrevolução, passando à iniciativa, ou respondendo em autodefesa.
Existiam três campos em luta em 1964, e não somente dois. Existia o campo político do governo Jango, e o campo político da oposição empresarial militar golpista. Mas existia um terceiro campo que, embora acéfalo era, também, importante. Este terceiro campo era o das massas operárias e populares.
É verdade que este terceiro campo não conquistou a sua independência política. Estava atrelado ao campo dirigido pelo governo. Mas tanto ele existia, que foi a sua imponência a razão pela qual Jango desistiu de oferecer resistência. Temia uma guerra civil e a possibilidade de ser ultrapassado em uma mobilização revolucionárias contra os golpistas. Jango receava, também, que o Brasil viesse a ser uma nova Cuba. Jango não era um socialista moderado. Era uma liderança do varguismo, uma corrente burguesa nacional. Jango era herdeiro de uma ala nacional-desenvolvimentista do getulismo. Evidentemente, a avaliação que prevaleceu na alta oficialidade militar golpista era que não estava descartada a possibilidade de Jango ter o seu “momento” Fidel Castro. A decisão de sair do país revelou que estavam errados.
Revolução e contrarrevolução são fenômenos indivisíveis um do outro. Ensina a mais elementar dialética que as causas se transformam em conseqüências, e vice-versa. A revolução é uma alavanca de transformação social, quando reformas não são possíveis. Os métodos revolucionários são os que as massas têm à sua disposição, para impedir golpes ou enterrar regimes obsoletos que se colocam no caminho dos seus interesses, e recusam qualquer negociação.
Se o fazem com excesso de radicalismo, se as revoluções cometem erros e exageros, se na corrente violenta das mobilizações de milhões, são arrastadas junto com as formas arcaicas de organização social mais do que seria, eventualmente, necessário, e se cometem injustiças, talvez, irreparáveis, não tem sentido julgar.
É porque ocorreram vitórias por métodos revolucionários em alguns países, que foram possíveis concessões conquistadas por métodos reformistas em outros. Mas, mesmo para conquistar reformas, são necessárias mobilizações com impulso revolucionário. Aprendemos com o golpe institucional do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, mais de meio século depois de 1964, que a classe dominante brasileira não merece confiança.
*Valerio Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).