A democracia liberal em crise

Blanca Alaníz, serie Cuadrados, fotografía digital y fotomontaje a partir de la obra Sem título de Alfredo Volpi, Brasilia, 2016.
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Por ELIZIÁRIO ANDRADE*

A esquerda tem se deixado enganar pela visão liberal democrática do suposto interesse maior de republicanismo e constitucionalismo

Nenhum pensamento, prática política ou ideologia pode escapar do encontro com a história, que cobra a demonstração efetiva de suas verdades e enganos, o triunfo dos seus objetivos ou a continuidade permanente de ilusões que, aparentemente, parecem nunca ter fim, uma vez que se tornam recorrentes as noções de democracia, direitos e liberdades abstratas, que dissimulam e ocultam seus verdadeiros nexos com o capital e seus imperativos de produção e acumulação.

Desde o século XIX, as correntes clássicas da economia política (David Ricardo e Adam Smith) defendiam, cada um ao seu modo, uma liberdade de “mercado mundial” como condição para a construção de um “cidadão universal”, conhecido mais pela ideia de construção da “cidadania” do indivíduo, com direitos plenos de livre arbítrio. Este seria o caminho possível para se forjar, crescentemente, a igualdade formal e a liberdade, o qual assume centralidade na ideologia burguesa que, a partir da utopia liberal posta por Smith, em sua obra, A riqueza das nações[i], trouxe uma forte influência ao pensamento econômico, político e ideológico contemporâneo.

O ponto de partida desse pensamento sempre esteve focado na existência de um sistema econômico movido pelo livre mercado em escala nacional e mundial de uma suposta sociedade “aberta” e livre para a realização plena do círculo de rotação do capital; na obra de Marx concebido como uma relação social insaciável que expropria a força social do trabalho e saqueia os recursos naturais até a exaustão. Condição sine qua non de vida ou morte para que o capital se alimente para gerar mais-valor e mais-trabalho e se reproduza continuamente e de forma ininterrupta, para transformar os indivíduos, o ser humano, apenas, em suportes de sua lógica de acumulação.

A nível teórico e filosófico, tais relações sociais e econômicas sempre contaram com enormes esforços de camuflagem da sua verdadeira essência por parte do racionalismo idealista e do antropocentrismo humanista e renascentista. É nesse sentido que, no século XIX, a narrativa totalizante do mundo burguês prospera, dessa vez com Hegel que, partindo da premissa de Smith sobre a existência da pluralidade de forças de mercado, movido por interesses particulares regidos pelo capital, constrói – a partir de sua dialética racional – a ideia de que a anarquia do mercado é uma fonte criadora, regeneradora de valores éticos, morais, porque, segundo ele, na medida em que os indivíduos, através do seu egoísmo, agem, passam a constatar que a sua particularidade só se realiza no universal, ou seja, com a realização também dos interesses privados dos outros, imbricados pelos seus laços de totalidade[ii].

Assim, a vontade dos indivíduos, fundada na particularidade dos seus interesses privados – salvaguardados pela normatividade legal e institucional da democracia liberal – seria responsável pela dinâmica da economia capitalista e produção de riquezas criadas pelas iniciativas, vontades e competências de cada indivíduo. Em dados autores do neoliberalismo, como Ludwig Mises e Friederich Hayek, o mercado, além de ser concebido pela sua autodeterminação de desenvolvimento e equilíbrio, é considerado também como um fator subjetivo e de formação da consciência dos sujeitos sociais e dos indivíduos capturados pela ideologia e racionalidade neoliberal; preparados hoje para se converterem não em “cidadãos” fundados na concepção jurídica e de direito do Estado burguês, mas sim, de forma fria e dura, em um ser competitivo acima de tudo e de todos, que tem como meta única valorizar a sua força de trabalho para enriquecer e ascender socialmente. Estamos, pois, diante do desenvolvimento de uma sociabilidade onde os indivíduos são preparados como uma unidade isolada, convertendo-se em seres presos a um horizonte de vida ultra individualista, insensível aos dramas sociais e mergulhados em uma realidade devastadora de um ser repartido, dicotômico. De um lado, se mostra independente, autoconfiante em seu desempenho, de outro, se vê também, sozinho, acossado pela concorrência que ronda seus planos individuais, podendo levá-lo ao desemprego, fracasso, depressão, ansiedades, suicídio e à droga.

A crítica de Marx à noção do direito de Hegel[iii], que fornece argumentos para a noção liberal de cidadania, assinala que a intencionalidade dessa racionalidade e ideologia de transformar os sujeitos sociais e indivíduos em força propulsora do sistema, termina por convertê-los em seres competitivos implacáveis e insensíveis, que encaram os problemas sociais e as crises a partir de sua particularidade e interesse imediatista, acima do social e da efetiva solidariedade. Os direitos e a igualdade formal são subtraídos ou reconfigurados para atender às novas necessidades objetivas das forças produtivas e das relações sociais do sistema capitalista, conduzindo os seres humanos para profunda degradação social, arrastando os que vivem do trabalho formal, temporário e precarizado para uma realidade de terra arrasada. O que confirma a continuidade do disparate fundante e contraditório entre o capital e trabalho e que o mesmo não foi superado pelo capitalismo financeiro e nem desfez o falso véu do conceito de cidadania, sob a roupagem da participação política, através do “voto universal” em períodos determinados.

O problema aqui não se situa no indivíduo, mas em suas relações sociais, na forma aterradora das características do desenvolvimento econômico, onde os impulsos advindos dessa dinâmica produzem uma realidade mórbida de ações genocidas, comandadas pelo capital e os governos de plantão, que encarnam seus interesses de forma consciente ou inconsciente. Por isso, não é tão difícil assim constatarmos que, mesmo morrendo milhões de seres humanos, por causa da crise do capital e da pandemia nas sociedades capitalistas, a economia não pode parar, como de repente se descobrisse – através de uma ópera trágica – que o trabalho é a chave da produção material e imaterial e, por essa razão, não pode prescindir dele para garantir a valorização do capital.

Por essa razão, os que vivem do trabalho, nesta sociedade ameaçada pela pandemia, devem continuar o seu labor, não importando se todos estão sendo levados ao matadouro da pandemia. Pior ainda, a aceitação da morte de milhões de seres humanos, no Brasil e no mundo capitalista no contexto da pandemia, causada pelo vírus covid-19 e suas variantes, que se soma a outras pandemias na história das sociedades capitalistas, não fez mudar a posição das classes dominantes e do sistema em suas determinações responsáveis por fenômenos devastadores na forma de vírus, bactérias, envenenamento dos solos, das lavouras, alimentos industrializados, destruição das florestas e poluição do próprio ar que respiramos.

Portanto, tais fatos não devem ser vistos como fenômenos estranhos à condição humana na sociedade capitalista; eles são intrínsecos à forma de sociabilidade das relações na sociedade burguesa, dos seus fundamentos irracionais e instrumentais que se desnudam, demonstrando que não há como conciliar com a vida e a natureza. Nestas condições, a consciência social que emerge desse sistema econômico e de suas relações sociais hipermercantilizadas e coisificadas se desenvolve em um terreno de instabilidade e irracionalidade crescente da reprodução do capital, determinando um processo de desenvolvimento sempre provisório e descartável, quer seja da economia ou da vida.

Aqui, nem a igualdade formal tampouco a universalidade racional e abstrata resolve esse dilema, porque faz parte da essência e dinâmica de como o capital se produz, revolucionando irracionalmente suas condições técnicas e científicas, bem como as condições sociais de vida e das relações de trabalho, para poder elevar a acumulação e as taxas de lucro. Por isso mesmo, pouco importa que seja pela via do rentismo, da especulação financeira ou da produção. Pois, de uma maneira ou de outra, acaba por insuflar a todos para privilegiarem os caminhos provisórios, mutáveis e erráticos da forma de acumulação fictícia dos valores do capital, no seu estágio destrutivo.

Desse modo, o estado de coisas que estamos vivendo nessa pandemia não pode ser entendido como um “acidente”, produto do acaso ou de determinações essencialmente naturais, biológicas, moleculares e de explosões viróticas indefinidas ou indecifráveis, mas sim como fruto de uma totalidade sustentada pela sociabilidade marcada por interesses particulares antagônicos que gera essas mazelas sociais profundas, destrutivas para a condição humana e a natureza. Portanto, para a administração do conjunto dos problemas em que a humanidade se encontra mergulhada só se pode apresentar soluções provisórias, uma vez que a erradicação dos dramas e desesperos humanos, dentro da realidade social capitalista, não será possível. Enquanto carregarmos o fardo dos seus fundamentos, as determinações dessa forma de sociabilidade repousada em uma lógica da produção e acumulação como um fim em si mesmo, que existe apenas para sustentar a criação de valor para o capital, não haverá futuro, mas sim um darwinismo social genocida e barbarizado.

Mesmo assim, os ideólogos liberais continuam a repetir: o mercado é a única e definitiva alternativa econômica e social – expressão legitima da realidade e razão do mundo. Ao mesmo tempo, a propaganda contra o Estado, sua presença na economia continua como um discurso constituído de falácias, na sua forma e essência. Isto porque não são capazes de anular a sua função histórica, a qual existe e se alimenta através das relações contraditórias entre a vida pública e privada e a dicotomia entre a produção social e a apropriação privada dos bens. Além disso, porque o Estado tem o papel de garantir sua base nacional-territorial de exploração, dominação, relações de dependência e hegemonia, em escala mundial.

É nestas condições que o ultraliberalismo – para compensar a fragilidade dos seus argumentos e convencimentos racionais – produz a ideologia do “empreendedorismo”, que aparece como uma agenda de reforço da hegemonia burguesa na sociedade, transformando os indivíduos que vivem do trabalho em seres obedientes ao projeto mercadológico do capitalismo contemporâneo, entregues a sua própria sorte e sem vínculos institucionais de trabalho, direitos, educação, saúde e moradia.

Assim se configura a base da noção de pluralidade liberal, de supostas oportunidades abertas e em condições de serem aproveitadas e usadas de forma livre, eficiente e competente pelos despossuídos dos meios de produção. A ideologia, aqui, não consegue dissimular sua própria desfaçatez e deslocamento da realidade social concreta de crescimento incontrolável da desigualdade social, do aumento do fosso entre a riqueza e pobreza, da redução crescente de renda da maioria da população, que passa a perder as esperanças de um futuro melhor de vida. Dessa maneira, a única função mesma dessa ideologia é a de reforçar a hegemonia ultraliberal empresarial e mercadológica de querer, com isso, anular ou negar a realidade da luta de classes e a existência de interesses sociais e econômicos antagônicos.

A intencionalidade da ideologia do “empreendedorismo”, sem base efetiva nas relações econômicas da realidade, é mais um elemento enganoso da narrativa de um processo civilizatório que já contava com precedentes históricos de esforços intelectuais na filosofia clássica, a qual formulava a possível construção de entendimentos orientados por um suposto “dever ser” moral dos homens e, através da “paz perpétua” entre nações e povos, da liberdade dos indivíduos, se alcançaria a estabilidade e a coesão social de interesses para o triunfo definitivo do capitalismo (Emaunel Kant, A Razão Prática)[iv]. De igual modo, não é muito diferente desse idealismo o horizonte intelectual de alguns filósofos, herdeiros da Escola de Frankfurt, a exemplo de J. Habermas[v], que não escapou do círculo das ilusões liberais do formalismo discursivo e neo-idealista, para propor uma saída para luta de classes através de um “agir” da “razão comunicativa”. Um conceito que expressa a definição de uma via de mudança através de um processo dialógico em que os sujeitos sociais, de posse de argumentos, realizariam “discussões públicas” racionais de interesse geral para chegar a um consenso progressivo de normas ético-jurídicas, em lugar do confronto direto e aberto entre interesses materiais antagônicos.

No plano da política, não deixa dúvida que se trata de uma formulação filosófica que se rende à democracia liberal e renuncia a um programa assentado em uma estratégia revolucionária. Com efeito, a referida posição abre caminho para políticas de coalizão de classe e de abandono da luta contra-hegemônica, com reformas radicais capazes de atingir o capital, os seus interesses e, por fim, construir um novo projeto social fundado em uma concepção de democracia e liberdade que coincida com a verdadeira emancipação do trabalho e do fim de sua alienação.

Aqueles que rechaçam essas aspirações universais de luta pelo poder e transformações da ordem social a partir do eixo trabalhadores versus burguesia empurram as ideias do liberalismo democrático e as teorias neo-idealistas – que buscam reconciliar os homens no mundo social desigual -, para a consciência de uma esquerda adaptada aos horizontes políticos e de vidadas sociedades burguesas. Trata-se de influências teóricas e ideológicas que não nos levarão a lugar algum, a não ser à impotência política da ação socialista na pragmática moral da ética kantiana, fundada no subjetivismo e no idealismo de sua razão prática, que transcende as relações sociais e suas estruturas sistêmicas, assim como as determinações históricas dos fatos e realidade.

No fundo, diz respeito a teorias que não passam de justificativas que buscam produzir desculpas para criar uma racionalidade explicativa que, de um lado, defende a permeabilidade do sistema que seria capaz de abrir novos espaços e incorporar formas múltiplas de vida e suas particularidades num mundo de pluralidades fragmentadas, formais, que se realiza nos marcos da institucionalidade burguesa. De outro lado, ampara-se no velho conceito liberal formal do direito e igualdade no mundo das “oportunidades” promovidas pelo mercado e pela possibilidade de expressões políticas, culturais múltiplas, consideradas como livres e pela chance da ascensão social.

É nessa trama política que repousa a ideologia do liberalismo democrático, que exclui qualquer legitimidade de contestação dessa ordem social, uma vez que o propalado pluralismo dessa democracia capitalista, longe de incluir a maioria da população na geração das riquezas produzidas sociedade, segrega aqueles que produzem as condições materiais, sociais e culturais de nosso mundo. É um fato que, segundo Mészáros, confirma a “substância de classe”[vi] do falso liberalismo democrático e do mercado que, a depender do agravamento das suas crises e o capital se encontre sob ameaça, poderá conceder espaços e apoios a forças políticas autoritárias em graus inimagináveis de violência, como as que a história testemunhou: o fascismo e o nazismo que emergiram das entranhas do capitalismo em crise e das disputas interimperialistas. Ou como ocorreu em 2016 no Brasil, em que as diversas frações da burguesia, em conluio com o imperialismo, se uniram para forjar um golpe político, jurídico, midiático, sob a tutela militar, para pôr fim a um governo de esquerda social-liberal e levar ao poder um governo de extrema direita.

Assim aconteceu com os regimes tirânicos nazifascistas que se instituíram na Europa, com apoio de grandes empresas capitalistas e a complacência dos liberais que estavam dispostos a sacrificar a democracia em condições de crise e esmagar seus inimigos históricos: a classe trabalhadora, o marxismo e o comunismo. Esse mesmo comportamento das classes dominantes se observou na América Latina na década de 1970, que foi tragada por golpes militares e a implantação de ditaduras civil-militar com amplo apoio de poderosos segmentos empresariais e do imperialismo norte-americano. O que não pode ser visto como meros fenômenos do passado, mas sim soluções a que as classes dominantes poderão recorrer novamente, se assim for necessário, para garantir a defesa do interesse do capital.

Isto porque, a alternância entre as formas de regimes mais ou menos autoritários ou combinados com elementos institucionais de fachada democrática decorre de necessidades intrínsecas à lógica de reprodução do próprio capital, em conjunturas específicas. Mas, nada disso é estático, está perpassado por um movimento dialético entre a necessidade dos monopólios que avançam em um processo avassalador de concentração e centralização, de um lado, e do outro, os diversos interesses dos capitais concorrentes que requerem – em condições econômicas e políticas nacionais favoráveis e “normais” -arranjos políticos para uma maior base institucional e social de legitimação para suas formas hegemônicas de dominação.

É nessas condições conjunturais, de possíveis tensões entre as frações burguesas que disputam maior parcela de vantagens no seio da crise, que tende a surgir políticas de “frente ampla democrática”, descolada das questões econômicas e sociais, ao tempo que as reivindicações econômicas e políticas surgem desnaturadas do seu caráter político e ideológico de classe. É um caminho próprio das estratégias de coalizão de classes que tendem a conduzir a esquerda a derrotas pelas velhas trapaças das frações de centro direita e pela centro esquerda, que se deixam enganar pela visão liberal democrática do suposto interesse maior de republicanismo e constitucionalismo, bem como pela esperança na imparcialidade dos tribunais e dos seus juízes e ministros. Uma posição que deixa de lado os fartos exemplos históricos de como age a burguesia ou frações dela quando se encontram ameaçadas e precisam manter o poder para repor suas margens de taxa de lucro.

Na conjuntura, esse comportamento político resulta do fato de certos partidos e lideranças de esquerda já terem assimilado importantes componentes da ideologia dominante no plano teórico, político e prático na relação com o Estado, no distanciamento ou abandono da referência de classe. Ao se afastarem como elemento central para balizar as resoluções políticas no plano da tática e estratégia, bem como na definição de tarefas políticas para esse momento específico de ascensão da extrema direita e da direita tradicional, são obrigados a pagar um alto preço político de desgaste e desprestigio no seio das massas trabalhadoras.

Dessa maneira, a esquerda que se recusa a realizar tarefas estratégicas de combate e de organização para evitar novos malogros, acaba por se submeter à ordem social vigente e adota posições defensivas no campo do programa político e das ações na conjuntura, para confrontar as forças sociais e políticas de direita e extrema direita no país. Em verdade, por trás dessas posições, está o abandono de um horizonte socialista, da prática política-estratégica de construção da contra-hegemonia e de um programa que permita gerar condições subjetivas de mudanças da correlação de forças, da politização e crescimento da consciência social de classe. Ao contrário dessa perspectiva política, o que constatamos é uma opção que se encerra nos marcos da “democracia liberal”, procurando evitar – como se fosse possível – os seus “excessos deformantes” ou versão mais dura e cruel da ordem econômica e social do capital em seu estágio avassalador de um processo de valorização acelerada.

Por essa razão, as representações políticas comprometidas com os interesses hegemônicos do capital financeiro –sem qualquer constrangimento ideológico ou político – tendem a confluir em alianças eleitorais para aprofundar as reformas cruéis do neoliberalismo e criminalizar as ações políticas e sociais dos que vivem do trabalho e se encontram em situações torpes de discriminação social. Tudo isso para conceder ao capital fictício as vantagens dos lucros com salários rebaixados e sem direitos, rendas elevadas e impostos financeiros acima da valorização real do capital, isto é, uma valorização fictícia acima e à frente da valorização real decorrente das relações de produção das mercadorias e de serviços. Por isso mesmo, quando não há mais como cobrir as demandas dessa orgia financeira, com possibilidade de liquidez, vem o momento do aprofundamento da crise econômica, social e política cada vez mais grave, como a de 2008 e a deste momento, detonada pela pandemia da covid19. Nessas circunstâncias, o discurso liberal emerge de forma mais radicalizada, brutal e cínica, arregimenta todas as forças de direita e extrema direita, conservadores e fundamentalismos de toda espécie, para impor a ferro e fogo reformas dogmáticas ultraliberais.

A ilusão de um mundo encantado, no qual a liberdade, a democracia, a igualdade, o bem-estar e o humanismo da modernidade burguesa, que parecem reinar na sociedade, pelo menos no plano formal, passam a ser desprezados, atacados e vigiados. Por isso, o fetiche da democracia, como uma aparência necessária para construir um consenso do modo de vida criado pelo capital, que deixa intocadas as relações de desigualdade social e de poder, a fim de preservar e salvaguardar, com segurança, a reprodução capitalista. Tudo isso abre cada vez mais contradições incontornáveis, que desnudam a própria forma fantasmagórica das relações políticas e de liberdade das democracias na sociedade capitalista.

Pior ainda, a crise atual põe em risco tanto a democracia quanto a economia que, do ponto de vista da sua capacidade de integração e coesão social, em torno da necessidade e lógica que determina a forma de vida dos “cidadãos”, se precarizaram, tornando mais instável a força de convencimento da hegemonia burguesa, através do consentimento ou da relação passiva das classes e dos diversos seguimentos oprimidos da sociedade. Entre outras causas, porque se tornou mais difícil o papel do Estado como mediador entre a sociedade civil e os interesses econômicos na nova fase de rígida “austeridade”, a qual expressa, de forma fria e direta, os requisitos e exigências de acumulação e expansão dos “mercados”. Estes, atuando como instituições nacionais e internacionais obedientes aos ditames do capital financeiro, transformamos Estados em meras agências ou em cobradores de dívidas a serviço e a favor da oligarquia financeira nacional e mundial. Enquanto isso, no meio da crise em curso, a maioria da população se vê completamente desprotegida para ser atendida em suas demandas básicas, como: saúde, educação, habitação, emprego e outros direitos.

As consequências dessas transformações, para o Estado e a sociedade civil, que têm lugar desde 1980, implicaram uma severa erosão do espaço político e social da democracia liberal, sequestrada pelas políticas de privatização dos serviços públicos, redução dos direitos constitucionais e eliminação de leis ou criação de obstáculos para impedir a presença mais significativa de representantes de partidos de esquerda ou centro esquerda no parlamento. Cresce, portanto, o cerceamento dos espaços democráticos e das liberdades políticas e de expressão, por conta mesmo do novo padrão de acumulação do capital, que redefine a sua forma de poder político e modelo de sociabilidade centrado na financeirização e no individualismo exacerbado, em completo desprezo pela condição humana, até mesmo no sentido do humanismo moderno.

Para compreendermos este fenômeno é preciso considerar que a evolução do capitalismo e sua expansão universal converteram todos os territórios, a natureza, o trabalho e as diversas dimensões do ser social e humano em mercadorias subsumidas a um processo único de produção e acumulação. E é no bojo desse desenvolvimento que o capitalismo, como produto da concorrência, acaba por criar estruturas e relações sociais e econômicas que, objetivamente, esmagam a funcionalidade da tão louvada “livre concorrência” e da democracia liberal burguesa. Pois, por trás da ideologia da livre concorrência, se ergueram monopólios, trustes, cartéis e conglomerados industriais e financeiros, em escala nacional e global, onde o capital passa a se chocar com a dinâmica inicial do capitalismo concorrencial e com o núcleo central de sua própria ideologia: a livre circulação de capitais e efetiva sucessão democrática de poder nas sociedades burguesas.

Ao operar esse processo, o capital impõe uma modalidade de reprodução que, ao invés de assegurar a pluralidade de mercado, a alternância do poder político e a universalidade de interesses fundada em motivações individuais privadas – como fator motor da economia, da produção e da troca – tem evoluído de forma subordinada aos monopólios e corporações que controlam a produção e os preços de mercado, bem como o controle de todas as transações financeiras. Articulando essa dinâmica a um avassalador processo de concentração e centralização de capitais que avança através de relações especulativas e parasitárias nas relações econômicas e sociais. Com efeito, as bases materiais das relações de pluralidades econômicas no mercado e de um suposto “cidadão universal”, pleno de direitos – formulado pela utopia liberal clássica –não se concretizaram, se desfizeram na esteira de suas próprias contradições.

A partir dessa situação – no mundo real da prática política – nem mesmo a ideologia burguesa do voto universal passou ilesa, pois, independente de qual fração burguesa, forças políticas social-liberais ou reformistas estejam no governo, é a oligarquia financeira quem dá as cartas e dirige os assuntos econômicos e políticos de Estado. A democracia burguesa, que ocultava a sua particularidade concreta de interesses privados e de dominação, passou a se converter mesmo em uma plutocracia do capital financeiro, em que os direitos e liberdades não se coadunam mais com o funcionamento do sistema, com a sua nova forma de produção e reprodução dominado pelo capital financeiro, que vive da renda econômica, do favoritismo fiscal e da privatização do petróleo, da extração mineral e de todas as fontes de energia e de tecnologias avançadas, através de monopólios em escala mundial e de todas as atividades públicas antes geridas pelo Estado. É nessas relações econômicas e de poder que se processa o real confronto entre as classes, frações de classe e entre nações que combatem entre si, para internacionalizar o capitalismo rentista num processo de financeirização global de todos os bens, serviços que antes se pensava ser atividades específicas do Estado para permitir maior segurança econômica e social para os povos de cada nação.

A esta altura, cumpre perguntar: em que erraram os liberais em suas projeções econômicas, sociais e políticas de sua utopia? Em primeiro lugar, a propagação ideológica de uma possível natureza “positiva” da forma de desenvolvimento do sistema e de um consenso em prol a ordem social burguesa, ao modelo de vida e de sociedade, através da legitimação da democracia liberal, não se apresenta mais como uma solução necessária e final; ela se enfraqueceu e passou – mesmo que ainda como força hegemônica – para uma fase de perda crescente de legitimação. Em segundo lugar, esse prognóstico, antes de qualquer coisa, não se ampara em um ponto de vista apenas doutrinal e ideológico, mas sobretudo pelo aprofundamento nas contradições que expressam a atual crise do capital, que pode desembocar em um processo crescente de barbarização social, marcada por insensibilidades e cinismos assombrosos, diante do descaso da preservação da vida, da negação do conhecimento, da ciência e do enfraquecimento da solidariedade e ausência do senso de interesses comuns na sociedade.

As restrições às próprias liberdades da democracia capitalista são, cada vez mais, intensas e amplas, em uma forma de sociabilidade que tende a reforçar sua dimensão coercitiva e autoritária para poder aumentar a desigualdade social, a exploração, a fome, a miséria, a pobreza, a devastação da natureza e os conflitos bélicos que ameaçam a preservação da humanidade. Mas, longe de ser realidades decorrentes de gestões de governos inconsequentes ou incompetentes, ela exprime, em verdade, as próprias contradições entre as forças produtivas e as relações sociais de produção. Pois, essa tendência, paradoxalmente, vem ocorrendo num período em que as forças produtivas do sistema se mostram capazes de desenvolver condições materiais e sociais inigualáveis na história das sociedades capitalistas, o que poderia permitir um bem-estar social e atendimento em amplo espectro as demandas da população em todo o mundo. Mas, isso não ocorre, porque a monopolização da economia e a financeirização tendem a exacerbar as tendências imanentes da produção capitalista, tornando absolutamente explícita a estreiteza dos limites privados do processo de socialização, revelando os traços característicos de uma estrutura que se encontra em profunda transformação, com possibilidades históricas abertas de mudanças e rupturas.

Do mesmo modo, o Estado, em relação à economia e à sociedade, antes com suas relações mais encobertas, mascaradas por uma universalidade abstrata, se encontra hoje diante de imperativos incontornáveis do capital que exige de suas funções históricas uma intervenção mais rígida, usando amplos mecanismos de manipulação, controle e vigilância da consciência social e ações para conter as reações daqueles que resistem às condições sociais que estão sendo impostas. E, na medida em que a crise continue a apresentar dificuldades para se estabilizar, o Estado é forçado a impor às massas trabalhadoras e à maioria da população formas severas de “austeridade”, na esfera das relações econômicas, social e do trabalho.

Portanto, para pôr em prática e operacionalizar as medidas e princípios neoliberais macroeconômicos, recorre-se ao Estado, ao parlamento, ao poder judiciário e coercitivo como instâncias intrínsecas de controle, dominação e hegemonia. Implicando, obviamente, maior cerceamento das liberdades e dos direitos civis como medidas necessárias para garantir a nova forma social metabólica de desenvolvimento do capitalismo e de manutenção da ordem social. Agora, não mais como tendências, mas como realidades que se radicalizam, a utopia liberal clássica, ligada à economia política que expressava, no final do século XIX, a emergência histórica do livre mercado mundial e do espírito burguês que começava a construir, segundo Marx, o mundo, a sua própria imagem e semelhança.

No período, a intenção dos liberais não era só a de explicar a realidade de sua época, mas antecipar teoricamente um horizonte possível de uma sociedade que nasce de uma razão crítica de sua realidade histórica para dar lugar a um processo civilizatório regido pela égide do capital, onde as regras, condições e possibilidades das transações econômicas seriam determinadas pelo próprio mercado e consumo, capaz de promover o equilíbrio entre os Estado-nação, gerar prosperidade, o bem-estar e a felicidade humana.

Entretanto, a evolução do capitalismo e a agudização de suas contradições vai revelar enormes fragilidades para a utopia da universalidade liberal e sua noção de pluralidade de mercado. Durante as quatro primeiras décadas do século XX, as sociedades capitalistas, por um lado, viveram de entusiasmos com curtos períodos de “progresso”, através de modernizações conservadoras e autoritárias e, por outro, mergulhadas em crises econômicas e políticas devastadoras, as quais, como sempre, caracterizadas pela queda da taxa de lucro e baixos níveis de crescimento e estagnação, bem como de superprodução. Ao mesmo tempo, crescia também a desigualdade social, o desemprego em massa e maior descontentamento social e polarização política e ideológica.

Após a segunda grande guerra imperialista, face à destruição das forças produtivas nas economias ocidentais, e de um novo quadro de disputa hegemônica geoestratégica e político-ideológica, recorreu-se, sem qualquer apego, aos princípios liberais clássicos, à intervenção estatal orientado pelos princípios econômicos keynesianos, com objetivo de derrotar, de um lado, seu grande adversário, a União Soviética e, de outro, colocar o Estado como protagonizador político e de recursos econômicos para alavancar a retomada do crescimento e que fossem capazes de contra restar os fatores do declínio das taxas de lucro e da rentabilidade capitalista de produção, num quadro geral de estagnação. O objetivo era dar um novo impulso à economia e regular o mercado da irracionalidade e anarquia do capital em sua dinâmica de acumulação e lucro.

É a partir desse momento que as proposições do keynesianismo passaram a ser vistas, pelos governos do mundo capitalista e suas instituições econômicas e financeiras internacionais, como a única solução viável para alavancar a economia capitalista destroçada pela guerra protagonizada pelo imperialismo e pelo nazifascismo. A “idade de ouro” do desenvolvimento da economia capitalista, que advém desse novo período, revelou-se, depois, como apenas um interregno entre uma fase de expansão de um padrão de acumulação para uma nova crise que emergiria no mundo inteiro, a partir da década de 1970.

Mais uma vez, a consciência burguesa enfrenta um desarranjo mental da sua própria teoria econômica, fundada no mito de uma suposta funcionalidade do sistema, em que sua dinâmica tem que se prevenir contra os inimigos internos e externos e busca restringir, limitar a prosperidade, com o controle e regulação do mercado. Por isso, recorre à construção de uma ideologia que aprofunda as contradições dos seus próprios mitos clássicos com um eufemismo: o “neoliberalismo”, que passou a ser o elemento central da ideologia financeira que hegemoniza a consciência das classes dominantes.

Do mesmo modo que os liberais fracassaram em sua tese de relações do “livre mercado” e da tentativa posterior, no pós-guerra, em querer controlar a “irracionalidade do capital” com as políticas keynesianas, hoje, a burguesia assumiu de vez essa própria irracionalidade sem disfarce, protagonizando esse jogo bruto de como enfrentar a crise sem estabelecer limites ou barreiras para sua reprodução. Estamos diante do conhecido “salve-se quem puder”, pois nada mais é sagrado, intocável, ético ou moral que seja capaz de impedir a marcha da reprodução do capital. Em consequência, o recurso a mentiras, guerras, infâmias, manipulação, fome, assassinatos seletivos dos adversários e inimigos com direito de assistir em tempo real saiu da ficção para o plano “natural”, “normal” e real da percepção da realidade. Do mesmo modo, pode-se também desfazer-se ou esvaziar os poderes – sem o menor escrúpulo – das instituições jurídicas, parlamentares civis do Estado para manter o poder das frações de classe dominante hegemônica e instaurar a ditadura do capital, disfarçada na forma de democracia liberal em crise.

É fato, portanto, que as economias capitalistas, a própria crise do capital e as soluções encontradas através da forma de defesa elaborada, o neoliberalismo, faz com que as contradições se tornem mais violentas, aceleradas e com enormes dificuldades para serem freadas, estabilizadas. Em sendo assim, a crise do capital e suas mazelas sociais passam a ser o próprio modus vivendi da “normalidade” das sociedades capitalistas, institucionalizando estados de emergência e aumentando mecanismos autoritários da vida social e política como formas de evitar realidades cada vez mais convulsivas. Mas, se isso é possível, pelo menos provisoriamente, torna-se insustentável prosseguir indefinidamente com o poder que tem o Estado em criar dinheiro ou deslocar fundos públicos para financiar essas ações de finalidade emergencial.

Pois, como a economia e a sociedade funcionam hoje pelo filtro e critério da rentabilidade e da financeirização de tudo que é produzido ou investido, o Estado – como depende também da valorização do capital – não tem como ignorar essa dinâmica. Nesse sentido, recoloca-se a questão: como será possível produzir nossas vidas e financiar os custos da sociedade sem que não se esteja sufocado pela lógica autofágica da criação do valor que dá razão de ser e existir à ordem social vigente?

Aqui, a palavra continua com os trabalhadores e todos os segmentos sociais oprimidos e que vivem à margem do sistema; esses devem criar as condições para se ver livres dos poderosos mecanismos de dominação que reduzem tudo a riquezas abstratas e fictícias ou mercadoria, que assume formas fetichistas que aliena, corrói o caráter dos indivíduos e obstrui o desenvolvimento da consciência da classe que vive do trabalho e dos oprimidos.

*Eliziário Andrade é professor titular de história na UNEB.

Notas


[i] SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. Trad. Luiz João Baraúna, São Paulo: Abril Cultural, 1a ed., 1983.

[ii] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

[iii] Karl, Marx. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.

[iv] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[v] Habermas, Jurgen. Teoria de la acción comunicativa. Madri, Atlea, Taurus, Alfaquara, 1987.

[vi]István, Mészaros. O poder da ideologia. São Paulo, 2004.

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