A escravidão já foi uma prática legalizada?

Foto de Christiana Carvalho
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RICARDO MANOEL DE OLIVEIRA MORAIS*

Com altas autoridades defendendo a inexistência do racismo, passar em revista à nossa história é um imperativo

Todos os anos nós nos recordamos de um marco em que é lembrada a suposta abolição da escravidão pela Lei 3.353 de 13 de maio de 1888, conhecida como Lei Áurea. Deixo claro que não falarei dos movimentos que a antecederam ou de todos aqueles que se sacrificaram para que a escravidão tivesse um “fim”. O que eu gostaria de fazer é uma reflexão sobre a “legalidade” da escravidão entre 1822 e 1888. Diante de tamanhos retrocessos, com altas autoridades defendendo a inexistência do racismo no Brasil, brincando com questões como o “clareamento racial” e naturalizando o trabalho infantil, passar em revista a nossa história é um imperativo que se coloca.

Antes, porém, acho interessante olharmos para o nosso Deputado Príncipe. Há vários meses ele fazia um discurso na Câmara dos Deputados salientando, graças a uma imunidade parlamentar ironicamente republicana (imunidade ligada à liberdade de fala), que a escravidão faz parte da natureza humana. Não pretendo discutir a natureza humana. Acredito que esse seja um assunto para Príncipes. Apenas gostaria de apontar para o cinismo de alguém que foi filiado ao Partido NOVO (claro, nada mais novo que o monarquismo) entre 2015 e 2018 e que se dispõe a ser um congressista monarquista em uma República (ao menos é o que dizem). Coincidência? Acho que não.

No contexto da independência do Brasil, os ingleses impuseram como condição para o reconhecimento da colônia portuguesa como país independente que fosse abolida a escravatura. Logo, o Projeto de Brasil (ainda não se escrevia com Z – contém ironia) assumiu o compromisso de que só se tornaria Brasil se não existisse escravidão. Noutros termos, o Projeto de Brasil assinou um tratado mais de 60 anos antes da Lei Áurea com a potência econômica e militar do século XIX dizendo que não haveria no Brasil escravidão.

Mais ainda, na Constituição de 1824 não há qualquer menção à escravidão. Ao contrário, ela deixa claro que todos são iguais e não faz nenhuma distinção de cor ou raça (sugiro a leitura de seu art. 179). Daí entendemos não só de onde veio o cinismo do nosso Deputado Príncipe monarquista na república e defensor de uma “nova política”, mas também porque o BraZil não deixou que o Projeto de Brasil vingasse. E salta a pergunta que é a dúvida que sempre tive: se a escravidão no Brasil nunca foi permitida, como uma lei poderia proibi-la?

Não conseguiria responder a essa pergunta. Não sem o cinismo do nosso Deputado Príncipe (ou seria Príncipe Deputado?) ou do nosso “sensato” vice-Bolsonarista. Acho que é como um Projeto Anticrime. Se o crime é proibido, por que um projeto anticrime? Por isso questiono mais uma vez: se a escravidão jamais foi permitida, como pôde ser proibida? Perguntas da mais alta indagação.

Nós poderíamos, aqui, dizer que o crime não era proibido para os agentes do Estado durante o Regime de Exceção Militar. Poderíamos, igualmente, lembrar dos crimes cometidos por um ex-Juiz braZiliano, protagonista do tal projeto que proíbe crimes (vide art. 10 da Lei de Interceptação Telefônica. Mas, como dizem, princípio da irretroatividade). Poderíamos, ainda, lembrar dos elogios que o Sr. Sensato fez a um reconhecido torturador. Tudo isso diz muito sobre uma lei que proíbe o que jamais se permitiu.

Com isso, é com algum cinismo que digo que, em nosso país, a escravidão jamais foi legalizada. Ao contrário, vivemos décadas de tráfico deliberado de pessoas que aguardavam um mínimo de reconhecimento de direitos (apenas esclarecendo que não falo dos dias atuais). Isso apenas mostra o quão brutal e negacionista é o Estado brasileiro. Para os ingleses (daí a expressão “para inglês ver”), jamais houve escravidão no Brasil, assim como para o Governo, jamais houve pandemia ou racismo.

*Ricardo Manoel de Oliveira Morais é doutor em Direito Político pela UFMG.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Andrew Korybko Plínio de Arruda Sampaio Jr. Heraldo Campos Tadeu Valadares Lorenzo Vitral Eduardo Borges Otaviano Helene Fábio Konder Comparato Leda Maria Paulani Luiz Bernardo Pericás Fernão Pessoa Ramos Denilson Cordeiro Flávio Aguiar Henry Burnett Dennis Oliveira Eleonora Albano Ricardo Musse Jean Pierre Chauvin Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Marcos Aurélio da Silva Luiz Renato Martins José Dirceu Rodrigo de Faria Lincoln Secco Marilena Chauí Henri Acselrad Leonardo Boff Chico Alencar Paulo Nogueira Batista Jr Ronaldo Tadeu de Souza Daniel Costa Kátia Gerab Baggio Gilberto Lopes Osvaldo Coggiola José Costa Júnior Michael Löwy Vinício Carrilho Martinez Érico Andrade Gilberto Maringoni Berenice Bento José Machado Moita Neto Ronald León Núñez Paulo Capel Narvai Gabriel Cohn Marilia Pacheco Fiorillo João Feres Júnior Gerson Almeida Carlos Tautz Luiz Roberto Alves Jorge Luiz Souto Maior Luiz Marques Celso Frederico Marcus Ianoni João Adolfo Hansen Antonio Martins Marcos Silva Milton Pinheiro Matheus Silveira de Souza Michel Goulart da Silva Marcelo Módolo Dênis de Moraes Liszt Vieira Manchetômetro Paulo Sérgio Pinheiro Ricardo Antunes José Raimundo Trindade Valerio Arcary Eugênio Trivinho Leonardo Sacramento Benicio Viero Schmidt Luís Fernando Vitagliano Luciano Nascimento Paulo Fernandes Silveira Tarso Genro Paulo Martins Boaventura de Sousa Santos Ronald Rocha Antonino Infranca Juarez Guimarães André Márcio Neves Soares Afrânio Catani Vanderlei Tenório Valerio Arcary Walnice Nogueira Galvão Francisco Fernandes Ladeira Eugênio Bucci Thomas Piketty Maria Rita Kehl Daniel Brazil Armando Boito Everaldo de Oliveira Andrade André Singer Bento Prado Jr. Igor Felippe Santos Claudio Katz Vladimir Safatle Ari Marcelo Solon Atilio A. Boron João Sette Whitaker Ferreira Ricardo Abramovay Celso Favaretto Carla Teixeira Fernando Nogueira da Costa Mariarosaria Fabris Tales Ab'Sáber Ricardo Fabbrini Caio Bugiato José Geraldo Couto Michael Roberts Antônio Sales Rios Neto Marjorie C. Marona Lucas Fiaschetti Estevez Daniel Afonso da Silva Chico Whitaker Mário Maestri Bernardo Ricupero Francisco de Oliveira Barros Júnior Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Carlos Bresser-Pereira João Carlos Salles Luis Felipe Miguel Remy José Fontana Annateresa Fabris Ladislau Dowbor Flávio R. Kothe Renato Dagnino Priscila Figueiredo Alexandre de Freitas Barbosa Bruno Machado Alysson Leandro Mascaro Francisco Pereira de Farias Samuel Kilsztajn Luiz Werneck Vianna Leonardo Avritzer Alexandre Aragão de Albuquerque Elias Jabbour Airton Paschoa Eleutério F. S. Prado Slavoj Žižek Salem Nasser José Luís Fiori Sergio Amadeu da Silveira Yuri Martins-Fontes Manuel Domingos Neto Eliziário Andrade Jorge Branco Jean Marc Von Der Weid Luiz Eduardo Soares Rafael R. Ioris Andrés del Río João Lanari Bo Anselm Jappe José Micaelson Lacerda Morais Rubens Pinto Lyra João Paulo Ayub Fonseca Alexandre de Lima Castro Tranjan Julian Rodrigues Sandra Bitencourt Marcelo Guimarães Lima João Carlos Loebens

NOVAS PUBLICAÇÕES