Por Zenir Campos Reis*
Desde os anos 1990 dispomos, nas livrarias, de três edições da obra de Augusto dos Anjos. A editora Paz e Terra republicou nos últimos dias de 1995, Toda a poesia, No ano anterior, junho de 1994, Antonio Arnoni Prado havia preparado, para a Martins Fontes, Eu e outras poesias. Alguns meses depois, Alexei Bueno se encarregaria de organizar, para a Nova Aguilar, a Obra completa do poeta paraibano.
Esses três títulos confirmam a mudança de público, a meu ver intencional, buscada pelos sucessivos organizadores dos poemas, desde 1965. Naquele ano saiu, com três anos de atraso, a edição comemorativa do cinquentenário do único livro publicado por Augusto dos Anjos, Eu. Na primeira edição, a capa branca exibia o título com grandes e vermelhas maiúsculas impressas no centro. No alto, as letras pretas com o nome do autor e, em baixo, cidade, Rio de Janeiro, e data, 1912.
Falecido o poeta, aos 30 anos, em Leopoldina (MG), em, Órris Soares reuniu à coletânea original a produção recente do conterrâneo, incluindo mesmo um poema inacabado, “A meretriz”. A Imprensa Oficial do Estado da Paraíba edita, em 1920, Eu e outras poesias, prefaciado pelo organizador. Até a 28ª edição, de 1961, são esses os poemas conhecidos de Augusto dos Anjos, e com esse título foram popularizados. A editora Bedeschi, com um catálogo de obras populares e popularescas, divulgou-o, com grande sucesso, desde a 7ª edição (1936). Em papel jornal e a preço acessível.
Nos últimos 30 anos o público e a crítica universitários vêm-se ocupando do livro. A mudança mais evidente é a consagração das 872 páginas, papel bíblia, da editora Nova Aguilar, nosso equivalente da prestigiosa coleção Pléiade da Gallimard na França.
Seu novo público dispensa a identificação do título: o nome do poeta basta como referência; compreende e admite a inclusão dos versos excluídos pela autocrítica do autor, versos de iniciante, versos que vêm de 1900, quando o poeta contava apenas 16 anos; recebe com interesse a prosa estranha e os documentos de interesse biográfico; finalmente, saúda os novos estudiosos, que vêm trabalhando por uma apresentação mais fiel dos textos e pela compreensão dos poemas. Mas, a depender exclusivamente dessas edições, o poeta parece cada vez mais distante do grande público que conquistou.
Tive ocasião de, recentemente, visitar a Usina Santa Helena, em Cruz do Espírito Santo, a 40 quilômetros de João Pessoa, Paraíba, sucessora dos engenhos Pau-d’Arco e Coité, que pertenceram à família de Augusto dos Anjos.
Foi difícil a localização: tínhamos esquecido, meus amigos e eu, o nome atual da usina e tentamos informar-nos na cidade. Depois de algumas tentativas falhadas, indicaram-nos uma senhora idosa, que talvez conhecesse a propriedade onde nascera o poeta. “Antônio Augusto é o nome do meu filho; Augusto dos Anjos? Conheço não.” Depois, veio a dúvida: quando indagamos pelo poeta, que imagem evocamos? O mais provável é que nossa interlocutora, na várzea paraibana, tenha pensado num cantador de viola, talvez repentista. Nenhum, com esse nome, lhe veio à memória. Um fotógrafo, que ouviu a conversa, foi quem nos orientou.
No local, tratamos de confirmar, com duas senhoras que por ali passavam. Obtivemos mais que a confirmação: “Aqui é o lugar de minha saudade”, disse a mais idosa. “Aqui tive meus filhos e aqui os criei.”
Indicou-nos uma casa em ruínas, que seria a casa onde nasceu Augusto dos Anjos. Depois, guiados pelo Sr. José Maria, trabalhador na usina desde 1942, fomos, já anoitecendo, conhecer o tamarindo debaixo do qual costumava o jovem poeta estudar:
No tempo de meu Pae, sob estes galhos,
Como uma véla funebre de cera,
Chorei billiões de vezes com a canceira
De inexorabilissimos trabalhos!
Hoje, esta arvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flóra Brazileira
E a paleontologia dos Carvalhos!
Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiarios que eu morri,
Voltando á patria da homogeneidade,
Abraçada com a propria Eternidade
A minha sombra ha de ficar aqui!
(Debaixo do Tamarindo, na grafia original [1])
Ouvimos de nosso guia precisões na localização de fatos da biografia do conterrâneo famoso, da sua família, da ama de leite, Guilhermina. Contrapunha suas informações às dos “sabidos”, certamente os que escrevemos livros, sem conhecer diretamente os lugares com que se familiarizou em mais de meio século de trabalho, em contato com a tradição oral popular.
Dispomos, está visto, de duas tradições: a popular é mais dispersa e descontínua, porque não se apoia em documentos fixados em suportes permanentes, que são, por exemplo, os livros. Vive a vida precária do testemunho pessoal, frágil, que tem a duração variável da vida humana e a precisão do ouvido instavelmente atento. Ouvido na verdade seletivo para o que, na cultura, mais estritamente, serve à compreensão do mundo e à autocompreensão.
A tradição universitária, erudita, escrita, beneficia-se da estabilidade garantida pelo livro impresso. Com tal ponto de apoio, pode ser mais contínua e mais consciente. É a aspiração, ao menos, talvez inatingível, da crítica especializada. O livro permitiu, também, que os poemas de Augusto dos Anjos convivessem com textos críticos que lhe parasitaram, às vezes amorosamente, as edições: prefácios, posfácios, notas.
Para as exigências da crítica universitária, das três edições recentes, a mais satisfatória é a preparada por Alexei Bueno. Com gosto de bibliófilo, revisita as publicações originais para esclarecer dúvidas. Falta, talvez, indicar com mais clareza seu itinerário de fixação de texto da produção de Augusto dos Anjos. Sente-se carência semelhante no que respeita à fortuna crítica, derivada quase toda do volume crítico organizado por Afrânio Coutinho e Sônia Brayner. Para ser completa, a obra poderia aproveitar os textos de provas escolares do poeta, transcritas nos livros de Demócrito de Castro e Silva, citados na bibliografia. Os originais destas provas perderam- se, segundo fui informado, num incêndio do arquivo da Faculdade de Direito do Recife.
O melhor estudo crítico entre os agora editados, parece-me, é o de Ferreira Gullar, que acompanha Toda a poesia, da Paz e Terra, desde 1977. Ele próprio poeta e grande leitor, esmiúça pormenores de fatura, assinala continuidades com a tradição literária brasileira, bem como descontinuidades em relação a ela. Mas, de fato, não está ali a totalidade da produção de Augusto dos Anjos. Não conserva também a organização do núcleo tradicional de seus poemas. Do ponto de vista da crítica textual é a coletânea mais precária. Na mesma edição, bem-vinda novidade, transformou-se em prefácio a orelha assinada por Otto Maria Carpeaux, outro grande leitor do poeta.
O poeta difícil e, paradoxalmente, popular, teve a sorte de encontrar intérpretes sensíveis e competentes. Não faltam, porém, universitários ou não, os que tropeçam nas palavras, às vezes ignorando desconhecer o sentido delas, outras vezes emaranhando a sintaxe. Quando se escreve que os versos apresentam “rima e métrica indefectíveis” pensou-se provavelmente “impecáveis”, mas que significará um “inegável soneto”?
Fico aqui desejando que as duas tradições, a popular e a universitária, se encontrem. Mas, dou-me conta, a satisfação deste desejo supõe a realização de outro: que a sociedade se transforme, que se elimine o fosso que separa a maioria carente da minoria afortunada em diferentes níveis.
Só então vamos poder compreender plenamente a múltipla atribuição de sentido: é, sim, a casa de Augusto dos Anjos, mas também “o lugar de minha saudade”.
*Zenir Campos Reis foi professor de Literatura Brasileira na FFLCH-USP