Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*
A “composição por imagens” como método em Villa Lobos e em Chico Buarque de Hollanda
Que o compositor trabalha com formas gráficas, a escrita musical, simbolizando a matéria sonora é algo que todos sabem. Que haja uma relação talvez mais profunda ou mais decisiva entre a representação gráfica, a forma visível e a matéria representada na criação musical é uma questão menos evidente e, por isso, menos refletida, ou vice-versa.
É sabido que a paisagem do Rio de Janeiro inspirou Villa Lobos: as formas gráficas da linha das montanhas na baía da Guanabara serviram ao compositor de ponto de partida para o desenho melódico e rítmico na sua Sinfonia n. 6, explicitamente denominada “Sobre a Linha das Montanhas do Brasil”.
A “composição por imagens” como método em Villa Lobos parte da visão da paisagem e seus ritmos lineares, o entrelaçado das cadências visuais, texturas, tonalidades e cores, para a música como uma espécie de “explicitação” do universo sonoro que jaz no fundo das coisas e dos seres, a forma sonora como reverberação purificada dos ritmos do real, possibilitando deste modo a tradução e transfiguração do pulsar das coisas nos ritmos internos da subjetividade.
Concepção essencialmente romântica e estetizante de uma “alma musical universal” e de uma música “pictórica”? Em Villa Lobos, a “recriação” musical da paisagem é, ao mesmo tempo, algo “mais” e algo “menos” do que simples “romantismo” estético.
Na medida em que o romantismo, devidamente considerado, isto é, considerado em seu sentido próprio e amplo, como adiantou Hegel, é o solo profundo da modernidade nas artes, a “dimensão romântica”, isto é, a forma da subjetividade ou a tensão entre subjetividade e forma, está presente em toda obra de arte genuinamente moderna.
Na medida em que o método e a construção consciente e explícita, ou que se quer como tal, definem a modernidade artística, em Villa Lobos o procedimento gráfico e a visualidade e materialidade do signo gráfico como ponto de partida da criação musical, o pensamento por imagens visuais, a “espacialização” da música, a justaposição entre procedimentos e materiais heterogêneos, formas e matérias de natureza diversas, ultrapassa o mero “sentimento romântico” (a “pura espontaneidade” e receptividade emotiva) e ao seu modo busca o estranhamento, a des-familiarização como condição e método, descrito e teorizado magistralmente pelos formalistas russos no início do século XX, na base dos processos de ruptura dos gêneros, das formas e da própria obra de arte, que marca a passagem entre as épocas artísticas pré e proto modernas no século XIX tardio, e o desenvolvimento da arte moderna como tal.
No sentido de registros díspares que se combinam em unidades novas e mutantes, que explicitam as suas formas de construção como processo emergente e como “inquietude” da obra, como síntese “provisória” sempre a se ultrapassar numa abertura ao outro (outro tempo, outro espaço, outro modo possível de ser, etc.), heterogeneidade e alteridade que produzem, deste modo, a identidade da obra e portanto do sujeito que a constitui e é por ela constituído, neste sentido é que a “paisagem musical” em Villa Lobos é obra moderna, isto é, consciente de seus materiais e procedimentos, consciente de seus limites: obra-limite – aquela que vive conscientemente no intervalo entre dois tempos e duas matérias, no hiato da passagem sempre a se refazer, no entretempo, entre o passado e o futuro, entre o que foi e o que será. A síntese artística traduz a experiência humana do tempo como síntese: como presença e devir.
Uma montanha do Rio de Janeiro, o morro “Dois Irmãos”, inspirou, no que poderíamos chamar de “linhagem imaginativa e criativa de Villa Lobos”, a canção homônima de Chico Buarque de Holanda no álbum “Chico Buarque” de 1980.
Dois Irmãos, quando vai alta a madrugada
E a teus pés vão-se encostar os instrumentos
Aprendi a respeitar tua prumada
E desconfiar do teu silêncio
O compositor-poeta contempla a montanha, dia após dia, ou mais propriamente, noite após noite, quando cessa o trabalho do dia e vislumbra, descobre, na imponência e na quietude da montanha, no seu ser-aí, algo como um “outro lugar” e uma “outra face”: na sua materialidade, na solidez da rocha e em seus contornos um ritmo, uma pulsação, como uma vibração sonora se anuncia, se revela.
Penso ouvir a pulsação atravessada
Do que foi e o que será noutra existência
É assim como se a rocha dilatada
Fosse uma concentração de tempos
A rocha dilatada, partida ao meio, deixa entrever o vazio no seu cerne, a sua “outra face”, o não-ser, o nada que a estrutura e define “por dentro”, o reverso e o avesso, que, como “vazio”, como intervalo, como silêncio, o silêncio da rocha, é condição primeira de emergência da musicalidade como unidade de som e silêncio, de movimento e repouso, tensão e distensão, assim como a figura é unidade de luz e sombra.
A rocha dilatada traz em si as marcas do tempo de sua formação: é um retrato das forças e dos processos que a constituíram, um retrato do seu tempo passado, das suas transformações, como toda forma o é: uma síntese (provisória), um equilíbrio (momentâneo) das forças que a fizeram, fazem e irão desfazer e refazer, tanto material quanto idealmente, no futuro.
É assim como se o ritmo do nada
Fosse, sim, todos os ritmos por dentro
Ou, então, como uma música parada
Sobre uma montanha em movimento
Exemplar neste sentido, a montanha revela ao músico-poeta a síntese dos tempos: os tempos vividos e por vir, os tempos imaginados, os tempos musicais, verbais, os tempos das palavras, das cadências, das melodias possíveis no e pelo silêncio. Por meio, igualmente, dos ritmos gráficos, os tempos da forma e da contra-forma, dos intervalos, dos contrastes entre os sólidos e os espaços vazios, cuja junção nas superfícies define a imagem.
A montanha viva, pulsante e prenhe do tempo, a montanha em movimento guarda em si e revela, como num retrato, a música que, feita imagem, contorno e paisagem, pode ser contemplada: a música parada, a música feita figura, na identidade dos ritmos e das linhas visuais e sonoras.
A melodia é linha, contorno, a harmonia é figura, a música é ao mesmo tempo fluxo e estrutura – estrutura gráfica na página, como em Villa Lobos, traduzindo a paisagem e estrutura da experiência vivida do fluir, da respiração, da energia do corpo em movimento e seus ciclos ativos de afastamento e retorno dinâmico ao equilíbrio: a tradução, em pulsão interna formalizada, da experiência do corpo próprio e do corpo outro no espaço e no tempo.
Algo da “poética do pensamento” ou da “poética da reflexão” de João Cabral de Mello Neto ecoa nos versos de Chico Buarque e nos temas da temporalidade, da matéria, do nada, do ser. E nos lembra, igualmente, aspectos da escrita “teórica” de Clarice Lispector.
A matéria sonora e imaginativa do autor carioca, no entanto, unindo música e palavras, constituem um universo sensorial e estético próprio, específico da canção: ao mesmo tempo relacionado e distinto do (e, em certo sentido, incomensurável em relação ao) universo da poesia como arte especificamente literária.
A melodia e a harmonização, com lembranças de Debussy segundo a observação próxima e especializada de Edu Lobo, sugerem recorrência e variações cíclicas como explicitação contínua dos temas poéticos em cada uma das estrofes, unificados na imagem da montanha.
Fecha-se o círculo: a música materializada na montanha faz ver ao compositor a fonte de suas canções. A montanha é imagem de um tempo fora do tempo, um tempo fora de si, como a própria criação é descentramento da linguagem e da vivência subjetiva. A criação inverte o sentido comum da compreensão do sujeito poético: a paisagem contempla o artista.
*Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.
A presente publicação é versão parcialmente modificada de texto originalmente publicado no antigo blog Malazartes em 2012.
copyright © Marcelo Guimarães Lima, 2020, texto e desenhos originais