Ney Matogrosso

Wassily Kandinsky, Elevação, 1929.
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Por FRANCISCO DE OLIVEIRA BARROS JÚNIOR*

Comentário sobre a trajetória artística do cantor e ator

Desde 1973, Ney Matogrosso faz parte do meu show. Com 10 anos de idade, iniciando o quinto ano ginasial e ouvindo a “Mulher Barriguda” dos Secos & Molhados. Sangue latino enviando uma “Rosa de Hiroshima” para o Brasil militarizado. Com a “Primavera nos Dentes”, o grupo musical cantava o “Amor”, a “Angústia”, “o Doce e o Amargo”. “Flores Astrais” em diversos voos sonoros. “Da Caixinha de Música do João” à “Toada & Rock & Mambo e Tango & Etc.”, Ney, Gérson Conrad e João Ricardo vieram abalar as nossas radiolas.

Um “delírio” sonoro que, tal como uma “Prece Cósmica”, tocava “As Andorinhas”. O Grupo Secos & Molhados, biografado por Miguel de Almeida, engendrou “um fato comportamental” destoante, com a sua iconografia rebelde. No cenário musical da época em que provocaram abalos, criaram não “somente um espetáculo de música”. Segundo o biógrafo da “viagem onírica” por eles conduzida, “as canções e a postura do grupo extravasaram o universo do entretenimento e ganharam um status político ao quebrar paradigmas”.

E a viagem continuou com a carreira solo do inclassificável Ney Matogrosso. Um sujeito estranho, embalado pela loucura de quem jura que é melhor não ser um “normal”. Um anjo safado da contraluz. Indivíduo de relevância sociológica, a merecer uma citação em uma aula sobre Émile Durkheim e a sua sociologia da ordem moral, da integração. Desvendando máscaras sociais, Ney tocou para pensarmos no que está “por debaixo dos panos”. Som descortinador para incomodar os que “transformam o país inteiro num puteiro” com vistas aos ganhos de muita grana. Uma mosca na sopa.

“Eu só sei ser subversivo”. Subjetivação de Ney em Olho nu, filme de Joel Pizzini. O personagem transita da ribalta para as telas. Ney amante, político, ecologista. Penas, pedras, chifres, mato, rio e mar emolduram o cenário onde vive, trabalha e é fotografado. A fotografia mostra o bicho homem “na fazenda Matogrosso, em Saquarema, no Rio de Janeiro, em conexão com a natureza”. “É um Bowie da floresta?”, indaga Rita Lee. Nelson Motta afirma: “Ney é um bicho do mato caseiro,…”. Artista atento aos sinais do seu tempo histórico. O marginal, o exagerado e o desvairado que canta uma canção de amor com o beijo bandido de um corazón cigano. No cinema, incorporou o “bandido da luz vermelha”, na sua volta, em Luz nas trevas, dirigido por Helena Ignez e Ícaro Martins. Banditismo sonorizado com feitiço e pecado rasgado dando títulos a LP’s, CD’s e registros sonoros digitais da sua carreira.

Ney assina como artista. Canta, dança, ilumina e dirige. Teatral, performático. Um showman. Seus espetáculos viajam pelos brasis e apresentam um caprichado acabamento. Desenho da luz, figurinos, projeções e outros elementos cênicos recebem a marca do Ney profissional e sintonizado com o espaço dos palcos. Significativos lugares para a liberação das suas fantasias, fantasmas e medos. Shows para ouvir a sua singularidade vocal e ver a sua potente presença em cena. Estilo e personalidade de um intérprete desassossegado. Camaleônico. O qualitativo padrão artístico dos seus trabalhos recebe o toque dos virtuoses instrumentistas e compositores ao lado dos quais ganha a estrada. “Eu não sei improvisar. Eu improviso a partir de muito ensaio”. Da base do disco, Ney monta o espetáculo, bota o seu bloco na rua e sai em turnês duradouras e bem-sucedidas pelo prestígio por ele alcançado junto a um público de diversas gerações. “Um artista completo que criou uma persona teatral única e poderosa como veículo para seus assombrosos dotes vocais e sua sensibilidade livre, corajosa e provocadora”, na visão de Nelson Motta.

Artista reverente, lançou discos em homenagem a personalidades musicais que fazem a sua cabeça e são suas influências. O Rádio dos Orlandos e Dalvas é lembrado nas suas memórias auditivas. Sons ouvidos desde os tempos da casa paterna. Evocações de Carmen Miranda. Angela Maria, Chico Buarque, Tom Jobim, Heitor Villa-Lobos e Cartola receberam tributos fonográficos nas releituras de Ney. Visita musical aos “museus de grandes novidades”. É um promotor de encontros intergeracionais. Lembro do projeto “Vagabundo”, uma parceria com a banda Pedro Luís e a Parede. É o “canto em qualquer canto”. Propuseram tirar Jesus da cruz, representante dos crucificados nossos de cada dia.

Em perspectivas sonoras decoloniais, de indígenas ancestralidades, Ney vocalizou um desperta América do Sul. Nas suas memórias, em interlocução com Ramon Nunes Mello, cita a canção “Deus salve a América do Sul” por considerá-la “profética em relação à situação política e social em que nos encontramos”. Um brasileiro de coração civil, indignado com o paradoxal “tem gente com fome”. “Olhos de farol” lançados pelas lentes sensíveis de quem vê “Miséria no Japão” e “A Cara do Brasil” que não é só a Zona Sul carioca. Acuidade visual para ver que o mundo está gripado. Ney, com arte, é vocalizador de uma “uma percepção diferente da vida”. Representa o contágio positivo com a “memória de outras perspectivas de mundo”. Na companhia das letras de Ailton Krenak, estou falando de gente brilhante que “é a cura para a febre do planeta”. Nas palavras de Caetano Veloso, Ney é “…um ser humano fascinante, uma pessoa que engrandece a percepção da nossa vida como sociedade”.

Na trilha de Jackson do Pandeiro, se é samba que eles querem, ele canta. De “corista de rock”, vai ao batuque de um samba rasgado do “urubu malandro”. Ney transita por vários gêneros, para além dos musicais. A feminina voz do cantor cantando a afirmativa “Homem com H”, em 1981, constituiu provocação política a partir da masculinidade por ele performada. A androginia vocal e os viras de seus requebros e rebolados. O pescador de pérolas, “de gravata e unha vermelha”, desafia os caretas, os enquadrados e seus esquemas mentais binários. “Sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher”. “É uma sereia tropical?”, “É uma vedete escandalosa?”. Indagações de Rita Lee sobre um alguém gerador de estranhamentos. Ousar ser no uso da “libido como arma”.

Na história sexual da música popular brasileira, Ney é citação destacada por Rodrigo Faour. A evolução do amor e do sexo no cancioneiro brasileiro tem o seu historiador e os seus malditos “transviados”. Em cenas teatrais de libidinagem explícita, Ney provoca a plateia e desnuda a transa cênica que protagonizava: “Eu tinha desejo sexual pela plateia. Eu queria trepar com aquela gente toda”. Uma metamorfose ambulante. Uma criatura a performar aquele ser que deixou de ser homem “pra virar lobisomem”. Ney está entre os Devassos no paraíso, de João Silvério Trevisan. “A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade”, referencia o nome de Ney na parte “a arte de ser ambígua”. Nas “histórias de amor maldito”, os tons desafinados de Ney epigrafam os anos 1970, tempo no qual “eclode o desbum guei”: “Não vim para esclarecer nada. O que eu puder confundir, eu confundo”. É por estas e outras que incomodava algumas figuras paternas. Em De gravata e unha vermelha, filme de Miriam Chnaiderman, Johnny Luxo é enfático: “O meu pai tinha pavor, pavor, pavor assim declarado do Ney Matogrosso”.

Ney é sujeito de estudo nas ciências humanas e sociais. Em tese de Sociologia, Flávio de Araújo Queiroz apresenta Ney Matogrosso em “sentimento contramão, transgressão e autonomia artística”. Análise de um trajeto que aponta “para a construção social de um corpo transgressor e para o processo de legitimação da autonomia artística do cantor em relação à censura moral intensificada durante o regime militar”. Em texto historiográfico, Robson Pereira da Silva penetra nas “eróticas no corpo e no palco de Ney Matogrosso”. Para lembrar do cinema brasileiro, “nenhuma malícia será castigada” é o título do artigo no qual Robson afirma: “a carnavalização da interdição foi utilizada por Ney Matogrosso como instrumento de expressão dos impulsos eróticos que tendiam ser abafados por uma moral repressora permanente”. Em companhia das letras de Julio Maria, na biografia de Ney, lançada em 2021, ano em que o cantor completa 80 anos, o seu biógrafo afirma: “mais do que artifício de cena, o nu passou a ser um ato de afirmação”.

“Não faço papel de santo nem pra minha família”. Da composição da Rita Lee para o pensamento da cantora sobre o seu “amigo telepático”: “Ney é o artista brasileiro mais chique, misterioso e sexy”. Nelson Motta segue a trilha de Rita: “É masculino e feminino, é elegante e bagaceiro, popular e sofisticado, roqueiro, sambista, forrozeiro, emepebista, romântico, político e sensual”. Nos seus “caminhos tortos”, rompendo tratados, quebrando protocolos e traindo ritos, Ney foi vencendo em uma trajetória artística modelar. “Um vira-lata de raça” nadando contra a corrente e para quem o importante “é não estar vencido”. Nu com a sua música, ele resiste caetaneando e cantando o seu lema: “Envelhecer certamente com a mente sã, me renovando dia a dia, a cada manhã, Tendo prazer, me mantendo com o corpo são… Mas não vou dar fim jamais ao menino em mim, e nem dar de, não mais me maravilhar diante do mar e do céu da vida e ser todo ser, e reviver a cada clamor de amor e sexo…”.

*Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

 

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