Realismo jurídico contra o opressor

Kazimir Malevich, Cabeça de um Camponês.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ARI MARCELO SOLON*

Comentário sobre livros de Tommaso Gazzolo

Qual é o melhor método jurídico para derrotar o opressor? Semana passada, quinta-feira à noite, na aula de Jewish Law, apresentei o livro de Tommaso Gazzolo.

Moisés pede a Deus: “quero saber como meus filhos interpretam as coroas místicas junto da revelação da Torá”. Com isso, percebe-se que Moisés não entende nada da lei como interpretação.

Com base nisso, Tommaso Gazzolo articula as raízes místicas e haláchicas do pensamento do comercialista Tullio Ascarelli. Se pudéssemos resumir em uma linha o pensamento de Ascarelli, seria: “a lei é a interpretação”. Eu esperei que a gênese jusfilosófica do caso jurídico iria prolongar a fusão entre hermenêutica e realismo jurídico, afinal, Jewish Law é um exemplo de realismo jurídico: “pela maioria vocês decidem”.

Interessado nessa leitura de Gazzolo, percebi que o autor, como eu, tem interesses comuns: Kelsen, Heidegger e o mundo operário. E, das coroas místicas, o autor fundamentou esta lei como hermenêutica com Gershom Scholem, a lei hebraica e sua interpretação com Benjamin, com Levinas, e mais vários trechos do Talmud que inspiraram Ascarelli, como o famoso caso do forno do Achnai, em que se diz que a lei não está no céu, a lei está na terra.

Então passei para a leitura do segundo livro. Qual foi a minha decepção inicial?

Nada de Ascarelli, nada de coroas místicas, só o realismo mais radical da escola de Genova.

Até interpretação/direito jurisprudencial é separado da hermenêutica. Ou seja, no embate entre filosofia analítica contra hermenêutica jurídica, quem ganha é a primeira.

Onde está Gadamer? Onde está Heidegger? Nada.

Isso me fez lembrar o embate violento que tive com o grande jurista da escola de Genova, Guastini. Também sou a favor do realismo jurídico. E, também, se bem que hereticamente, sou a favor de Kelsen, mas separo o realismo do positivismo. Nesse sentido: “O ponto de vista do professor Solon é claramente normativo. O não cognitivismo ético não suscita nenhuma teoria da interpretação jurídica, nem descritiva nem normativa. É uma posição que lida com o status lógico dos julgamentos morais e, como tal, não tem nenhuma implicação normativa. Refere-se à ética, não ao direito, muito menos à interpretação jurídica. O realismo jurídico pretende ser uma simples moldura para descrever a práxis jurídica atual. Não há nenhum lugar no realismo jurídico para afirmar o que os juízes ou intérpretes do direito devem fazer” (GUASTINI, 2014, p. 53-54).

Justamente, encantam-me em Kelsen as “derrapadas” cognitivistas do autor, porque defende, sem assim o querer, o socialismo revolucionário jurídico.

Este livro da escola genovesa não combate menos a opressão do que eu, mas a estratégia é outra: é enfatizar o não-cognitivismo dos nossos heróis, Kelsen, Ross e outros realistas.

Como defender o mundo operário com este silêncio ético? Como chegar ao fim da história revolucionária sem buscar os caminhos alternativos da criação do Direito? Se os genoveses descobriram a América, também tem um bom método para combater o jusnaturalismo católico conservador.

Sair do terreno valorativo e ficar apenas no terreno estritamente metodológico. Solapar o solo pantanoso do direito natural católico sem combatê-lo explicitamente, de fronte. Eu acho um erro.

Como Wittgenstein disse, os positivistas não veem que o direito é magia. Mas, afinal, quem não acredita na mística das coroas, da lei? Quem não acredita que existam letras brancas da lei ocultas sob as letras pretas, e apenas essas letras ocultas servem para defender os oprimidos?

Ficar mesmo no terreno universal do positivismo, esconder a ética, derrotar o inimigo reacionário e conservador no plano da metodologia.

*Ari Marcelo Solon é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prismas).

Referências


GAZZOLO, Tommaso. Il caso giuridico: una ricostruzione giufilosofica. Torino: Giappichelli, 2018.

GAZZOLO, Tommaso. Una doppia appartenenza. Tullio Ascarelli e la legge come interpretazione. Pisa: Pacini Giuridica, 2019.

GUASTINI, Riccardo. A (Short) Commentary to the Commentary. RBF, ano 62, v. 240, jan./jun. 2013.

GUASTINI, Riccardo. LA SEMANTICA DEL DISSENSO E I DIRITTI COSTITUZIONALI. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Milano: Giuffrè Editore, anno LIX, fasc. 2, 2016. p. 859-866.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Rafael R. Ioris João Sette Whitaker Ferreira Leonardo Boff Marcos Silva Liszt Vieira Vinício Carrilho Martinez Manuel Domingos Neto Heraldo Campos Valerio Arcary Fernando Nogueira da Costa Bruno Fabricio Alcebino da Silva Milton Pinheiro Gabriel Cohn Anselm Jappe Eugênio Bucci Antonino Infranca João Carlos Salles Michel Goulart da Silva José Raimundo Trindade Luiz Marques Eduardo Borges Juarez Guimarães Celso Frederico Lorenzo Vitral José Machado Moita Neto Carla Teixeira Lucas Fiaschetti Estevez Alysson Leandro Mascaro Luiz Werneck Vianna Otaviano Helene Tales Ab'Sáber Dennis Oliveira Boaventura de Sousa Santos Berenice Bento Bruno Machado Alexandre Aragão de Albuquerque Annateresa Fabris Samuel Kilsztajn Eliziário Andrade Airton Paschoa Ari Marcelo Solon Caio Bugiato Bernardo Ricupero Julian Rodrigues Carlos Tautz Ricardo Antunes Alexandre de Lima Castro Tranjan Paulo Martins Osvaldo Coggiola Ladislau Dowbor Fernão Pessoa Ramos André Singer Leda Maria Paulani Antônio Sales Rios Neto Maria Rita Kehl Francisco de Oliveira Barros Júnior Francisco Fernandes Ladeira Paulo Sérgio Pinheiro Marilena Chauí Paulo Fernandes Silveira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Elias Jabbour Gerson Almeida Andrew Korybko João Adolfo Hansen André Márcio Neves Soares Chico Alencar Celso Favaretto Érico Andrade Marjorie C. Marona Denilson Cordeiro José Costa Júnior Henri Acselrad Ricardo Musse Claudio Katz Vanderlei Tenório Jean Marc Von Der Weid Rodrigo de Faria Salem Nasser Daniel Afonso da Silva Flávio Aguiar João Lanari Bo Marcos Aurélio da Silva Mariarosaria Fabris Thomas Piketty Michael Roberts Gilberto Maringoni Francisco Pereira de Farias Bento Prado Jr. Slavoj Žižek Michael Löwy Jean Pierre Chauvin Gilberto Lopes Andrés del Río Tarso Genro Luis Felipe Miguel José Dirceu Leonardo Sacramento Marcelo Módolo Everaldo de Oliveira Andrade Luciano Nascimento Yuri Martins-Fontes Dênis de Moraes Flávio R. Kothe Igor Felippe Santos Fábio Konder Comparato Manchetômetro Priscila Figueiredo Leonardo Avritzer João Feres Júnior Marcelo Guimarães Lima Luiz Carlos Bresser-Pereira Rubens Pinto Lyra Luís Fernando Vitagliano Remy José Fontana Matheus Silveira de Souza Ronaldo Tadeu de Souza Marilia Pacheco Fiorillo Kátia Gerab Baggio Ricardo Abramovay Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Ricardo Fabbrini Jorge Branco Lincoln Secco Luiz Eduardo Soares Jorge Luiz Souto Maior Eleutério F. S. Prado Renato Dagnino Paulo Nogueira Batista Jr Vladimir Safatle Chico Whitaker Armando Boito Luiz Renato Martins Sergio Amadeu da Silveira Mário Maestri Benicio Viero Schmidt Ronald León Núñez Luiz Roberto Alves Tadeu Valadares Anderson Alves Esteves José Micaelson Lacerda Morais Eleonora Albano José Geraldo Couto Henry Burnett João Carlos Loebens Ronald Rocha Paulo Capel Narvai Afrânio Catani José Luís Fiori João Paulo Ayub Fonseca Antonio Martins Eugênio Trivinho Daniel Costa Daniel Brazil Alexandre de Freitas Barbosa Sandra Bitencourt Atilio A. Boron Marcus Ianoni Luiz Bernardo Pericás Walnice Nogueira Galvão

NOVAS PUBLICAÇÕES