O banimento de Spinoza

Clara Figueiredo, série_ registros da quarentena, casa, São Paulo, 2020
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Por ARI MARCELO SOLON*

Spinoza foi banido porque era democrata anticapitalista ou porque era ateísta?

Excomungado Bento nunca foi. Excomunhão é um ato eclesiástico. O que sofreu, no entanto, foi um banimento pela comunidade portuguesa de marranos.

Por que sofreu banimento, se na Idade Média o averroísta Narboni também não acreditava na imortalidade da alma? Se Maimônides, no “Guia dos perplexos”, preferia a eternidade aristotélica do mundo ao criacionismo bíblico? Se a própria mística judaica afirma dialeticamente que o mundo surge de contrações (dzimdzum) da própria divindade?

A tolerância calvinista holandesa é um mito. Para que pudessem construir o seu belo templo, os marranos assinaram uma espécie de contrato com as autoridades holandesas, a partir do qual firmavam o compromisso de que não deveriam permitir nenhuma heresia religiosa no seu seio. O brilhante talmudista Spinoza tinha malas opiniones: defendia uma democracia radical dos cidadãos, e não o autoritarismo monárquico da dinastia de Orange, preferida pelos puritanos ortodoxos. Economicamente, uma postura anticapitalista desdenhando as atividades comerciais de sua próspera comunidade.

Em resumo, é apenas nesse contexto político-econômico que as ideias heréticas (esposadas pelos rabinos acima citados, em épocas anteriores) concretamente geraram a expulsão de Bento da sagrada congregação portuguesa.

Por que volto a esse tema exaustivamente debatido na história da filosofia?

Recentemente, um professor, amigo meu, especialista na obra de Spinoza, sofreu chocante segundo banimento. Pediu para filmar a linda esnoga da rua dos judeus e recebeu carta ofensiva dizendo que, por divulgar obras de Spinoza, era pessoa non grata daquela comunidade.

Conheci o professor Melamed por meio de artigos sobre o impacto da dialética hegeliana no combate de Marx à pobreza. Num segundo momento, me permitiu resolver o enigma do meu Doktorvater: a chave Laskiana revolucionária da filosofia do direito neokantiana.

Lask, protegido de Weber, furou com o relativismo do seu protetor via Fichte. Demonstrou que no conhecimento existe um hiato racional e uma nudez de categorias lógicas dentro do neokantismo, mas contra Kant abre as possibilidades da fenomenologia de Hegel, de Husserl e de Heidegger.

Quando Paulson veio na Sanfran a meu convite, disse que o meu doktorvater havia escrito a melhor obra sobre o neokantismo da bidimensionalidade de Lask. Sempre aprendi com meu orientador que a sacada de Lask devia-se aos seus impulsos plotinianos-neoplatônicos: uma volta para a filosofia antiga para resolver os problemas da filosofia moderna (o que Heidegger copiou).

Semana passada, lendo Melamed, visualizei que Fichte, para superar a filosofia do conhecimento de Kant, havia recorrido a um herege judeu que adotou o nome de Maimon, como o ilustre rabino racionalista da Andaluzia. Lendo o artigo, percebi que a sacada de Lask tinha origem via Fichte, em Maimon: contra a filosofia transcendental de Kant, propugnava por um ceticismo filosófico e onde resultava o intuicionismo místico. Afinal, Maimon foi expulso de sua comunidade, mas de lá aprendeu o vazio das categorias racionais.

Em conclusão, Carl Schmitt pode até estar certo de que Spinoza merecia o seu banimento lido em português, sem o lindo ritual veneziano do toque do chifre de carneiro e das velas pretas no chão a ele ficticiamente associado. Hermann Cohen também defendeu essa excomunhão. Salomon Maimon talvez tivesse merecido idêntico banimento ao defender a ilustração alemã contra a religião dos seus pais; mas Melamed, um judeu observante que me ensinou o marxismo, o acosmismo de Spinoza e Maimon, jamais.

*Ari Marcelo Solon é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prismas).

 

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