Editoriais como editos e éditos

Imagem: Brotin Biswas
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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

Os donos da mídia não dão qualquer atenção aos que não se submetem a seus umbigos e continuam a dominar a palavra pela força de seu economês

A história revela muitos éditos e editos, que têm servido a muitos fins. Houve éditos inquisitoriais que se apresentaram como “éditos de graça”, sinal de profunda ironia. Houve, também, editos romanos úteis para evitar Liras e Centrões da época, sempre possíveis. No entanto, os editoriais, mesmo consideradas as licenças em sua história etimológica, poderiam significar algo mais do que o pensamento do grupo econômico que domina uma organização midiática, como o jornal ou a revista; nessa direção, eles poderiam chegar a ser a totalidade reveladora do pensamento que medeia a informação, o debate e a comunicação do órgão de imprensa e similares.

Talvez, no entanto, isso seja impossível na sociedade formada por escravidão, império e que segue continuamente pouco democrática, que é o nosso caso. Ressalte-se que um dos seus maiores atrasos consiste em ser dirigida pelo saber econômico, elevado à condição de sistema.  Pensam os jornais que o fulcro do seu ser no mundo é econômico e que esse viés domina a totalidade do que pensam e do que são os indivíduos, grupos e sociedades. Em consequência, o fenômeno econômico, que é um saber social entre outros, se torna o elemento central de qualquer coisa ou de tudo. Destarte, é useiro e vezeiro encontrar tais determinações para toda a sociedade, para o futuro da vida na biosfera terrestre, para a campanha eleitoral brasileira de 2022 etc. Uma panaceia econômica. Também um engano histórico.

Desculpem os editorialistas, mas tal leitura parece revelar falta de inteligência, pois a economia só pode ser entendida como referência depois do levantamento das necessidades, direitos e valores humanos e sociais, os quais exigem da organização da sociedade respostas devidas, garantidoras da vida. O fenômeno econômico, resultado do suor humano e não do mero lucro (marca do privilégio e da seleção social) será dispensado e dividido segundo aquelas necessidades e seus valores. Fora disso, o econômico vira mito e isso não é do ser da ciência, quer em 1800, quer agora. É, pois, mítico o ato de colocar no centro da sociedade o tabu econômico e apresentá-lo como dispensador vicário de valores para este e aquele, para isso e aquilo, a granel.

No princípio havia o verbo e não a verba. O princípio faz e a verba resulta para distribuição segundo princípios. Por isso, estão errados todos os nossos governos, mal-educados pela falsidade do fazer econômico. Mais errados, então, os editorialistas que entram de cabeça no tsunami econômico, principalmente aqueles localizados em sociedades dependentes e periféricas.

Ocorre, pois, que numa campanha eleitoral, pois em breve a teremos, cabem políticas e programas nunca vulgarmente prometidos (ninguém melhor que Greta sabe pronunciar blá-blá-blá), pois organizados por princípios públicos, disposições objetivas, estratégias e processos de avaliação e ouvidoria. Tais disposições de governo/governança devem ser anunciados no calor da hora das campanhas pelos próprios candidatos/as e não pelos notáveis que metem as coisas no papel e o guardam. No interior das estratégias encontram-se operações econômicas, estatísticas, sociológicas e de outros campos de conhecimento que participam dos saberes aplicados a governos e governanças.

Oxalá habitação, cultura, transporte, saneamento, educação, ecologia/desastres extremos, reforma agrária etc. sejam enunciados e anunciados adequadamente na campanha político-eleitoral de 2022, deixando à economia seu modesto, mas justo, lugar de referência e função. E que isso seja feito por representantes da esquerda, do centro e da direita para que o povo não seja enganado mais uma vez.

Pense-se, portanto, nos editoriais e seus falsos papéis sociais.

Hoje cabe analisar um deles. Do Estadão, com enfoque no pensamento econômico do IEPE/ Casa das Garças, véspera de Natal deste ano. A favor do ato de argumentar tem-se como dado de controle o pensamento de Michael Löwy[i] expresso no site A Terra é Redonda três dias antes da importante data do calendário cristão. Löwy denomina seu texto Ecossocialismo. Aqui não se alude ao livro do autor. Para evitar a abominação do Socialismo e outras estranhezas similares, fique claro que o tema ecológico interessou muito ao colunista para o confronto com o editorial, centrado em reformas do Estado.  Ademais, convém lembrar a saborosa imagem de Agnes Heller, reiterada, de que Marx não era marxista, assim como Jesus não era um cristão. Trata-se de trabalhar com pensamentos, posturas e argumentos realizados na práxis e depois caracterizados e formalizados, como também foi comum na história das artes e da literatura. Só para argumentar, vale pensar que nos campos socialista e capitalista os pensamentos se orientam por práxis dinâmicas, que exigem a boa análise e o senso de realidade, os quais, por sua vez, capacitam os agentes à construção de planos e políticas.

São decisivos, de fato, os resultados, aqueles “frutos bons das árvores boas” de que fala o Evangelho, pois pouco adianta contabilizar muitos frutos e carreá-los a poucos seletos e privilegiados; ao contrário, esse modo de distribuição consiste em perversidade e vileza da sociedade como um todo. Retrato do nosso país, que não conhece, nem conheceu (exceto por alguns esbarrões) qualquer experiência além da capitalista e seus planos seletivos e injustos de modernização e desenvolvimento sem progresso social amplamente encarnado nas maiorias do povo.

Pois bem, enquanto o editorial do prestigioso diário paulista enfatiza as diversas reformas modernizadoras do Brasil contemporâneo, que hoje levam milhões a roer ossos em porta de açougues e lixões, bem como a amargar a brutalidade do trabalho “flexível”,  em Löwy se chama a atenção para algo além de reformas fundadas em trocas políticas mantenedoras do regime de sempre, isto é, projeta-se um novo modo de viver e participar das populações no destino das suas sociedades e, por consequência, das populações da biosfera. Estranho que o editorial chame de estruturante aquela medida reformista com significativa força econômica. Nada que tenha acontecido com preponderância cultural ou educacional foi estruturante, pois o texto do infausto editorial não oferece lugar a esse tipo de pensamento, o do paralelismo e da assincronia dos fenômenos sociais, já com rica massa crítica. Ora, sob o Estado Novo e suas sombras, Mário de Andrade dirige um serviço público cultural-educativo na ex-pauliceia desvairada que Gilda e Antonio Candido consideraram modelar para a democracia e a construção do estado democrático. Deu-se tal prática do bem-comum com pleno apoio do prefeito Fábio da Silva Prado entre 1935 e 1938 e se desfez no meio das intrigas do getulismo e sua tropa.

O editorial citado pinta o reformismo econômico como substancialmente modernizador. E a modernização é tida no texto como algo intrinsecamente bom. Nessa lógica, as modernizações estruturantes conhecidas desde o século anterior teriam sido muito positivas. No entanto, o país incluiu populações no varejo de projetos socio-educacionais e excluiu no atacado dos direitos econômicos continuamente mitigados, o que se revela nos documentos comparativos amiúde exarados por instituições prestigiadas pelo Capital, da OCDE aos bancos internacionais e institutos acadêmicos de excelência. Ganha credibilidade o fato de que os rostos e as mãos das muitas modernizações brasileiras foram incapazes de trabalhar a ecologia e o ambiente, a qualidade dos serviços públicos na ponta da política, a previsão de riscos e danos aos vulneráveis e qualquer caminhada segura para a cidadania de todo um povo. Ora, para que raios serviram tais modernizações? Ou os atrasos legais, os retrocessos políticos e as desgraças populistas não estão a serviço do mesmo regime ardorosamente defendido pelo editorialista do Estadão?  Já se viu governo populista criar efetiva representação direta da população nas decisões ou deixar de governar para grupos privilegiados?

Como sempre ocorre, o editorial é um textinho também no seu tamanho. Tão pequeno e ainda perde tempo e espaço para afirmar estultices, no caso “vociferar” que o governo de Dilma Rousseff não implementou nenhuma modernização. Bem, se fora para fazê-las à medida das outras, desde a aurora da República, melhor seria deixá-las para os estruturadores das modernizações. No entanto, muitos avanços educacionais, realizados em quantidade e qualidade, para citar somente uma política, os quais deram continuidade ao governo anterior do Presidente Lula e somente entraram em declínio (por equívocos, concessões e desmandos de certos agentes) no último ano de governo da senhora Rousseff, também eles estão fora do diapasão do editorial do Estado de São Paulo, pois educação não é estruturante, exceto sob o bafo da economia. Que muitas vezes é fétido, como se viu nos sempre importantes (pela base construída) acordos Mec-Usaid e, contemporaneamente, na invasão de capital privado para os negócios educacionais do Brasil sem a mínima análise de necessidades, tempo, espaço e diversidade social.

Pobres criadores da Casa das Garças. Foram elas e eles mal-usados pelo editorial, que só queria passar por ali para dar uma cutucada em algum governo petista (o abominável fetiche do lulopetismo, que assombra jornais e sistemas empresariais!) e no inominável de plantão no Planalto, que não é invisível porque todo o mundo já avaliou o seu desgoverno). De fato, a figura é inominável porque os adjetivos do campo político da língua portuguesa começam a faltar devido ao uso intenso. Ela merece tão somente o espaço devido ao lixo histórico.

O editorial instituiu um édito à população contra governos petistas e se realizou como um edito de pé-quebrado a respeito de como deve ser a modernização. Para azar do grande jornal (que sempre se apequena com textos iguais ou similares) nada do editado se concretiza e tudo se desmancha. De um lado, porque ataca um governo como intervencionista e não discute qualquer intervenção, isto é, faz enunciação sem enunciado naquele período textual. De outro lado, porque visita uma instituição dotada de algum saber, independentemente de ideologia, e ali bica, como predador, um dado que servirá de pretexto para sua obsessão, os governos petistas e o populismo. Os primeiros estão muito longe de serem maus governos e o segundo jamais foi referência explicativa para todos os problemas brasileiros. De fato, o neoliberalismo turbo-capitalista não é uma quimera; tem várias faces e todas têm sido estudadas e entendidas como a raiz dos problemas do país, indutor até mesmo do voto no inominável e das práticas populistas. Então, o que fazer com editoriais cujos autores, a despeito de seu brilho profissional, se contentam com farrapos intelectuais da vida? Aqueles que tratam de reformas estruturantes sem mencionar ecologia, ambiente e qualidade de vida de toda a população. Absurdo.

Ao contrário do editorial, o texto de pesquisador brasileiro radicado na França toca no que estrutura a contemporaneidade:  o risco à vida no Brasil e na biosfera e a premência de que cada política crie formas saudáveis, não-poluentes ou tóxicas, altamente representativas de modos de vida além do consumismo (valor do campo exagerado do lucro) e capazes de tanto evitar a destruição da terra dos homens (do sapiens) como encaminhar a criação e a manutenção de uma sociedade cujos atos de propriedade estejam prenhes do ético e do justo socialmente e cuja experiência política abandone o domínio e as formas de desenvolvimento que levaram ao autoritarismo e à predação da vida e seus muitos atores naturais. Visto que é impossível implementar um capitalismo verde ou limpo, as batalhas do ecossocialismo, o qual já tem boa fortuna crítica, vão constituir, a despeito dos empecilhos de variada ordem, frentes contra as emissões poluentes e criminosas, novas experiências na vida do campo e da cidade, sentidos de futuro nas conquistas de cada dia, enfrentamento da tecnociência a serviço das big techs, agregação de muitas lutas específicas de setores da sociedade, respeito profundo à Mãe Natureza e ampliação de solidariedades a todo o mundo. À luz desse pensamento, as supostas reformas elencadas no editorial do Estadão são coisas dignas de esquecimento.

Importa pouco que os donos da mídia não deem qualquer atenção aos que não se submetem a seus umbigos e continuem a dominar a palavra pela força de seu economês. Afinal, esta é a “natureza” deles. Igual a eles, ou pior, são os donos de igreja, geralmente longe, muito longe do que chamam de Evangelho e muito próximos do que se entende por mercadoria e consumismo. Pelo sim, pelo não, intercambiam sentidos.

*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

Nota


[i] Pesquisador do Centro Nacional da Pesquisa Científica da França.

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