O centro do conflito

Imagem: Andrés Sandoval
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Por LUIZ MARQUES*

Os meios de comunicação agem como porta-vozes da narrativa orquestrada pelo Pentágono.

“O que a história pode nos dizer sobre a sociedade contemporânea?” A pergunta é de Eric Hobsbawm. Até o século XVIII, “o passado era o modelo para o presente e o futuro. Daí o significado do velho, que representava sabedoria não apenas pela experiência, mas pela memória de como eram feitas as coisas, e de como deveriam ser feitas”, frisa o historiador em Sobre a história (Companhia das Letras). Um tradicionalismo normativo servia de bússola às gerações. Prevalecia a ideia do progresso contínuo. A Revolução Industrial (1830) provocou rupturas e, em Auguste Comte, a crença de que a Sociologia e a Biologia eram as disciplinas mais importantes para a compreensão da famosa “modernidade líquida”.

A ideia do progresso linear, cara aos filósofos iluministas do oitocentos e aos positivistas do novecentos, entra em crise no século XX. A promessa de repartição da riqueza não se materializou, os ideais de igualdade de oportunidades e resultados mostraram-se vazios de significado prático, mesmo sob o invólucro mistificador da meritocracia. O choque ambiental do crescimento econômico, a qualquer custo, levou ao aquecimento do planeta e, a humanidade, à beira do precipício. Na Holanda se discute estratégias de “decrescimento” para refrear a produção. Na Alemanha, se fala em um “pós-crescimento” para que as comunidades tenham voz ativa sobre os rumos do desenvolvimento, de modo a preservar o meio ambiente e a biodiversidade das espécies. É o desafio ecológico de nosso tempo.

“Paradoxalmente, o passado continua a ser a ferramenta analítica mais útil para lidar com a mudança constante, mas em uma nova forma. Diante da realidade avassaladora da mudança, mesmo o pensamento conservador se torna historicista. A história encarna um processo de mudança direcional. O raciocínio aplica-se à formação do império russo, para explicar a re-incorporação agora da Ucrânia (Ukraina, fronteira). Havia uma Rússia de Kiev (sécs. X ao XII), antes da Rússia de Moscou (sécs. XIII ao XIV). Com o que a ocupação protagonizada estaria recolocando a Ucrânia nos trilhos do “modo de ser russo”. Lamente-se quiçá a geografia que coleciona déspotas, passando por Stalin no “socialismo real”, mas não se ignore o “espírito das leis” e as especificidades culturais da região que virou zona de guerra.

O presidente russo Vladimir Putin recupera o passado ao justificar a ofensiva territorial. Lênin e Trótski abriram mão da Ucrânia ao final da Primeira Guerra para conseguir selar os acordos de paz com os países vitoriosos, no encerramento da diatribe bélica. Na Segunda Guerra, a Ucrânia pousou no ninho da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Com o ocaso, desta, transformou-se em nação independente. Porém, sob pressão beligerante da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) nas últimas três décadas. O assédio envolve os Estados Unidos (EUA) e a União Europeia (UE) na marcha encetada sobre o Leste. O professor de Relações Internacionais (Uerj), Maurício Santoro, resume a situação: “a causa estrutural dessa guerra é a disputa entre a Rússia, EUA e a UE pela delimitação de suas esferas de influência”. Nada a ver com a causa democrática versus o despotismo.

Criada em 1949 com o objetivo de conter os tentáculos da ex-URSS na Europa ocidental, a OTAN deveria ter desaparecido com aquela. Mas sobreviveu e se revigorou, saltando de 12 para 30 países associados em plena pacificação. Iniciou tratativas com a Ucrânia e a Geórgia para que ingressassem em suas fileiras. Ameaçada, a Rússia que não foi integrada no sistema internacional da UE com a desintegração do “comunismo / soviético” (que não era, aliás, nem um nem outro) interveio na Geórgia em 2008. O Ocidente descumpriu a promessa de não assediar os países do Leste Europeu após a Guerra Fria.

George Bush estimulou países fronteiriços do Urso a entrarem na OTAN para pertencer à UE, e impor um cerco à Rússia. Putin reiterou as inúmeras reclamações de Boris Iéltsin (1991-1999), opondo-se à expansão da OTAN e à formatação de blocos fechados, arguindo as abordagens ideologizadas remanescentes de priscas eras. Como disse Winston Churchill, “americanos só fazem a coisa certa, quando esgotaram todas as outras possibilidades”. Inclusive guerras.

O imperialismo estadunidense é dependente da indústria belicista. Harry Truman, que assumiu a presidência com a morte de Roosevelt, deu continuidade à Segunda Guerra e foi responsável pelas bombas de trágica demonstração, em Hiroshima e Nagasaki. Seis anos depois, em 1951, participou da Guerra da Coreia, tendo 35,5 mil baixas. Lyndon Johnson liderou a nação no maior fracasso, a Guerra do Vietnã (1964-75), somando 60 mil baixas.

John Kennedy invadiu a Baía dos Porcos, em Cuba. Foi rechaçado pelos revolucionários cubanos. Bush “pai” legou a Guerra do Golfo (1990-91) e, para expulsar as forças iraquianas do Kuwait, mobilizou 500 mil soldados. Bush “filho” invadiu o Afeganistão (2001) e o Iraque (2003). Em resposta ao ataque de 11 de setembro de 2001, decretou a Guerra Global contra o terrorismo. Obama herdou as guerras do Afeganistão e do Iraque e prometeu a retirada gradativa das tropas invasoras. Biden, seu vice eleito, colocou no currículo imperialista a tensão que redundou na Guerra da Ucrânia. A guerra é a regra.

A ameaça de Terceira Guerra mostra a irresponsabilidade dos dirigentes das grandes potências, que não têm empatia com os jovens (na maioria, negros) nos fronts de batalha e morte. Os estertores da unipolaridade não se expressam apenas via os mercados, mas nas sirenes das insanidades pela via da destruição. É difícil imaginar um apoio efetivo, com armas e munições, para a Ucrânia. Tal implicaria em um enfrentamento direto com a Rússia, uma nação com enorme arsenal nuclear, empoderada pelo petróleo e o gasoduto.

Polônia, Eslováquia, Hungria e Romênia fazem fronteira com a Ucrânia, mas não se espere uma reação coordenada. Até o momento, somente a Polônia concordou em enviar armamentos para a Ucrânia. Alemanha e França, a ver ainda. Volodymyr Zelenski, o presidente ucraniano, elegeu-se com um discurso antipolítica e antipolíticos (na campanha eleitoral tirou fotos, de metralhadora em punho, apontando contra a sede do Parlamento), para gáudio de grupos nazifascistas. Flertava com a entrada na OTAN e o acesso ao armamento atômico. É só um peão manietado pelos verdadeiros players, do jogo. Já vimos esse filme de quinta categoria, com um bufão e camarilha fazendo arminha com a mão.

“Não é demais lembrar que no início do mês de fevereiro, portanto antes do início da incursão russa, Putin e o presidente da China, Xi Jinping, divulgaram um comunicado em que denunciavam a expansão da OTAN, que está no centro do atual conflito na Ucrânia. Os efeitos de médio e longo prazo do bloqueio ocidental podem até agravar a vulnerabilidade econômica da Rússia, mas colocam no horizonte também um possível acordo comercial amplo entre russos e chineses que pode resultar na supremacia da economia chinesa no mundo”, escreveu Aloizio Mercadante na revista Focus Brasil. O que aparentou ser fruto do voluntarismo – tudo indica que tenha sido um movimento estratégico no xadrez geopolítico estudado com muita antecedência. O comunicado anunciava uma aproximação em diversos setores, como a cooperação na Nova Rota da Seda, diplomacia, comércio exterior, combate à pandemia de Covid e a defesa de um mundo “policêntrico”. Isto é, um mundo multipolar.

Sombras espreitam o Brasil, com o aprofundamento das dificuldades econômicas e uma irrupção inflacionária. A Petrobras, desmantelada, opera com a lógica da Política de Preço de Paridade de Importação. A cadeia produtiva de petróleo e gás foi subjugada pelos interesses das empresas importadoras e dos acionistas que impõem a dolarização dos combustíveis. Apesar da autossuficiência em petróleo, com a descoberta das fabulosas reservas do Pré-Sal (“uma dádiva”, comentou-se à época), incrivelmente o país se tornou exportador de óleo cru e importador de produtos acabados, abdicando de investimentos no refino e no sistema integrado de produção, distribuição e comercialização que geram ganho e competitividade em relação a outras economias. Com o barril de petróleo acima de US$ 100 dólares, dada a valorização das commodity, se antevê o pior, o aumento da gasolina, do diesel e do gás em função da armadilha da criminosa dupla lesa-pátria, Temer e Bolsonaro.

Como se não bastasse, há o risco de impactos negativos na importação de fertilizantes da Rússia, especialmente o cloreto de potássio, produto fundamental para a fertilização do solo e indispensável à agricultura nacional. O Brasil importa 80% do que utiliza, sendo a Rússia a principal fornecedora. Isso impactará o custo de produção agrícola, pressionando o preço dos alimentos e de forma dramática a cesta básica e a inflação. O que está ruim, ficará pior.

A posição do Itamaraty sobre o conflito foi de uma platitude que não cumpre um papel de relevância no dilema de segurança que atormenta a Europa, sob o cutelo da guerra de arrasa quarteirão total. Vitória completa do irracionalismo, da louca desrazão. Em contrapartida, o posicionamento da maior liderança globalizada em atividade e com merecida credibilidade, Lula da Silva, foi reconfortante.

No entanto, cabe às correntes progressistas, a partir da sociedade civil (“o palco por excelência da luta política”, de acordo com Gramsci), o impulso que falta das ruas para que as potências que detêm armas nucleares criem juízo. Não se pode esperar que a tarefa seja cumprida pelos meios de comunicação, que agem como porta-vozes da narrativa orquestrada pelo Pentágono. Por assumir uma indecorosa vassalagem propagandista, a mídia desinforma mais do que consegue informar ao público.

Em cima dos acontecimentos, é preciso que todos e todas que participaram das edições do Fórum Social Mundial, no áureo ciclo de repercussão do movimento altermundista, retomem e insiram na ordem do dia o conceito de “imperialismo”, que não se resume ao neoliberalismo e também não se situa na nuvem abstrata de um “império”, à espera de uma “multidão” insurgente. No FSM a tônica foi o combate ao neoliberalismo. A ascensão da extrema-direita, como braço auxiliar das políticas neoliberais, trouxe à tona a luta contra o neofascismo (o bolsonarismo). Na escala local a luta é antineoliberal e antineofascista.

Não obstante, a guerra da Ucrânia desnudou a política imperialista estadunidense, jádas “guerras híbridas estampada no documentário de Oliver Stone, Ucrânia em Chamas, lançado em 2016, que segue os passos do golpe de Estado em 2014 que derrubou o presidente Viktor Yanukovych ungido pelo voto do povo em eleições limpas, em uma manobra dos EUA que deu o tapa e escondeu a mão, sem sucesso, conforme denunciou Stone. Dilma Rousseff não foi a primeira vítima das “guerras híbridas”, com a cumplicidade a soldo de ONGs, da imprensa controlada pelos banqueiros e castas institucionais de toga.

Em escala planetária, o imperialismo dos EUA se exprime através da organização militar que tem como ponta de lança a OTAN, em cotraposição à multipolaridade necessária à sociedade humana.  Na virada do milênio, vimos nascer uma mobilização de corpos e consciências, movimentos sociais e partidos políticos que elevaram o nível de entendimento sobre a dominação do capital financeiro nos hemisférios e sobre a crescente desigualdade que caracteriza o capitalismo predador na sua anticivilizacional e selvagem fase neoliberal.

Que o séc. XXI seja o marco da luta para superar o tripé baseado no neoliberalismo, no neofascismo e na beligerância da OTAN. A democratização das relações internacionais está condensada no slogan: menos OTAN, mais ONU. Pelo fortalecimento da Organização das Nações Unidas, como sublinha Lula. Trata-se de um imperativo categórico para o presente.

Atenção: sem deixar de apoiar a oposição de esquerda democrática ao Kremlin no interior da Rússia, A propósito, ver a entrevista do intelectual russo, Ilyá Budraitskis, autor de “Dissidents among Dissidents”, sobre as raízes da espiral belicista Ucrânia-Rússia e “el carácter imperial gran-ruso de la visón de Putin, que este acaba de confirmar con su extraordinario discurso del 21 de enero de 2022” (Viento Sur, traduzida da revista francesa Inprecor). Não é o que a história está nos dizendo sobre a sociedade contemporânea?

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

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