Por PRISCILA FIGUEIREDO*
Seleta de poemas
Só um nome[i]
Pinheirinho, Pinheirinho
o que te fizeram
foi tão triste
mas tão triste
que ninguém neste mundo
devia dizer mais que existe.
Pinheirinho, então eu digo —
não existo
eu minto e não só:
quando soube que você existia
é que você não mais existia.
Pinheirinho, assim diminuto
parece que posso compreendê-lo
colocá-lo a salvo na minha mão —
quanta ilusão pode produzir um nome!
Adiantaria
se não mais te chamássemos assim?
Nos livre da ilusão, de toda ilusão
você, o sem vigia ou guarita
o cujo sono interromperam sob chuva
por um mau motivo.
Convite para compor uma banca
Aguardamos por tua valiosa contribuição,
que dissipará muitas de nossas dúvidas bem
como plantará algumas jamais imaginadas
e com estas outros labirintos,
mais arejados que os antigos.
Batemos a cabeça tantas vezes
em portas falsas e espelhos
que mais que nos perder ficamos
empacados por tempo indefinido.
Conto que venhas nos socorrer com o brilho
de tua perspicácia e erudição, o sortilégio
de tua reflexão corajosa, a qual sempre anima
a alma, já tão fatigada, dos nossos jovens.
Moïse
Você estava indo cobrar 200 contos —
certo, não eram as Tábuas da Lei,
mas você foi cobrar, e cobrar
não é para o bico dos de sua espécie.
Parece que pegou uma cerveja para afrontar
o patrão ausente que te depenou,
ou seus leões de chácara ali postados.
Um empregador que deve tem
também amigos em toda parte,
e esses amigos num piscar de olhos
viram carrasco, tropa de assalto.
Se o patrão os autorizou, muito que bem;
se não autorizou, muito que bem também.
Quem mandou ir lá mexer com fogo?
Como a mulher deve saber por que apanha,
você devia saber também, Moïse.
Racha
a da parede
a do argumento
………… a racha da conta
a racha do partido
………… do grupo
………… da igreja
………… da torcida
………… do eleitorado
a racha na tubulação
………… na calçada
a racha no tronco
a racha na cara e na pedra
a racha no compromisso
a racha moral
a racha hermenêutica
a racha do sujeito
……….. a racha do continente
……………….. a da partenogênese
………… a das meninas
…………. a do Mar Vermelho
O touro que foi morrer no mar
Deu no jornal outro dia que um touro
desceu em atropelo da carreta quando
chegava para a Feira do Agro;
parar era como morrer e decidiu
morrer no mar…
Quanta dignidade, quanta coragem!
Poderia ter levado um tiro e lhe aproveitavam
ao menos a carne, o couro
(mas como fosse valioso e confiassem
em sua própria superioridade,
o preferiam intacto, certos de capturá-lo.)
Pesava 600 quilos.
Depois de horas viajando espremido
com outros de sua estirpe
e apavorado pelo agro ruído
que lhes dera as boas-vindas,
embarafustou pela vegetação,
isso no sábado. Na quarta o boi
inconformado seria visto
nos fundos do aeroporto —
assim que em Stella Maris por pouco
não lhe cortaram as asas.
O fim — foi como se contou.
Quase se poderia dizer: no mar
tomou posse de si, no mar voou.
O nevoeiro sobre o pescoço
é o centro nervoso, às vezes pacato, dos meus gestos;
a cabeça, o que chamam cabeça,
está rebolando senão no mundo, neste bairro mesmo.
Sonhei que a arrancavam de mim, mas quando acordei
lembrei ser um sonho de repetição,
um sonho de nevoeiro, de quem
não tinha já há muito a sua cabeça.
Outro dia a bola grotesca e expressiva
veio descendo em direção a mim,
me afastei.
A maçaroca
dos cabelos carregava mais e mais detritos,
e os olhos desapareceram não por sob as pálpebras,
mas sob a poeira. É tanta para uma cabeça
deitar e rolar.
O nevoeiro tem dentro de si dezenas de pares de olhos,
mas estes estão fechados como estrelas que se
apagaram.
Não há diferença palpável entre o céu
e a ficção sobre meus ombros.
A cantiga da lei moral ressoa
ainda dentro de mim.
*Priscila Figueiredo é professora de literatura brasileira na USP. Autora, entre outros livros, de Mateus (poemas) (Bem te vi).
Nota
[i] Poema escrito em 2012 e revisado em 2020. Inédito, como os demais desta seleção.
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