O processo da independência

Chila Kumari Singh Burman, Revoltas vermelhas em papel indiano, 1981
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Por EVERALDO DE OLIVEIRA ANDRADE*

Desde o nascimento do Brasil como Estado se opuseram caminhos contraditórios

O processo de independência do Brasil começou antes de 7 de setembro de 1822 e se prolongou bem depois. Ao contrário do que se costuma debater e ser apresentado oficialmente e pela grande mídia, desde o nascimento do Brasil como Estado se opuseram caminhos contraditórios entre os interesses dos grandes proprietários rurais, escravocratas e comerciantes e as massas trabalhadoras compostas em sua maioria por escravos negros, mas também por indígenas e trabalhadores livres. Essas contradições se mesclaram com o próprio avanço do capitalismo desde fora e que aqui se articulou e se combinou inicialmente com o próprio trabalho escravo, ajudando a construir um novo Estado autoritário e centralizador para submeter todo o território e suas populações.

 

O capitalismo começa a pôr fim ao velho império português

Há mais de duzentos anos o capitalismo começava a se consolidar partindo da Inglaterra e se espalhando pelo mundo. O centro da vida econômica começava agora nas novas fábricas, na produção em massa de roupas e equipamentos que não existiam antes e no surgimento de um novo sujeito histórico, a classe operária que dava seus primeiros passos. Nesse caminho o capitalismo e as novas indústrias inglesas foram transformando países e continentes, mudando as sociedades, derrubando velhos impérios e abrindo novos mercados e negócios para a mais poderosa burguesia de então, a inglesa. A burguesia francesa que havia derrubado a monarquia durante a revolução de 1789 tentou se enfrentar durante anos com a Inglaterra para disputar o controle do nascente mercado mundial capitalista. Foram as guerras sob liderança de Napoleão, que terminaram em 1815. Essas guerras entre a França e a Inglaterra tiveram grande impacto internacional.

A grande capacidade de produção da indústria inglesa comparada com a produção artesanal e das pequenas oficinas precisava cada vez mais abrir novos mercados para vender seus produtos, o que pressionava os velhos impérios como o espanhol e português e suas enormes colônias americanas. Essas tinham mercados fechados e monopólios apenas para seus próprios comerciantes. Os espanhóis tentaram reformar e modernizar seu império com as “reformas bourbônicas” e os portugueses com as “reformas pombalinas” do marques de Pombal, mas nada capaz de impedir o avanço do capitalismo e dos produtos industriais melhores e mais baratos.

Essa pressão aumentou quando Napoleão fechou o mercado europeu aos ingleses decretando o bloqueio continental em 1806. Espanha e Portugal desrespeitaram o bloqueio, tinham importantes negócios com os ingleses, e foram invadidos pelas tropas napoleônicas em 1808. Com isso, o desmoronamento dos velhos impérios e suas colônias nas Américas se acelerou. O rei Felipe VII da Espanha foi preso pelos franceses e o rei de Portugal fugiu com a corte e ajuda da marinha inglesa para a colônia do Brasil.

Os regimes de Portugal e Espanha estavam sendo engolidos pela guerra entre França e Inglaterra. A revolução industrial, construindo o mercado mundial, provocou uma crise econômica e política nas colônias portuguesas e espanholas, uma desarticulação dos monopólios e privilégios dos seus comerciantes e um realinhamento político dos grupos de proprietários e latifundiários. Entre as massas populares aumentou a fome e a miséria e fermentaram novas revoltas. Portugal já ensaiava desde o começo do século XIX uma mudança econômica como o fim do monopólio do sal em 1801, que a vinda da família real em 1808 aprofunda com a política de abertura comercial dando privilégios aos ingleses, que passam de fato a comandar a vida econômica da colônia brasileira.

 

Revoltas populares nas Américas

As massas trabalhadoras das colônias americanas se mobilizaram desde antes desses acontecimentos. A revolução haitiana de independência começou no mesmo momento da revolução francesa de 1789 (o Haiti era a colônia francesa mais importante e rica naquela época) e foi vitoriosa em 1804 depois de finalmente derrotar as tropas enviadas por Napoleão; libertou quase meio milhão de escravos negros, criou a primeira república livre do continente americano e repercutiu em todos os rincões (os EUA embora independentes desde 1776, mantiveram a escravidão dos negros).

O Haiti livre demostrava claramente para os povos oprimidos que a vitória era possível, que havia uma vertente popular lutas de independência do continente que estava enraizada na resistência diária das massas trabalhadoras, em sua maioria escravizadas. A grande revolta indígena de Tupac Amaru no Peru em 1781 sinalizava as futuras guerras de independência na América Espanhola.

No Brasil a luta do povo haitiano por liberdade teve grande repercussão, a notícia vinha pelos navios e chegou a Salvador. A Conjuração Baiana de 1798 (também conhecida como conjuração dos Alfaiates), ao contrário da mais conhecida e elitista revolta de Tiradentes, foi uma insurreição popular principalmente de trabalhadores negros livres e mestiços motivada pela fome. Os panfletos da época defendiam a Proclamação da República e o fim do trabalho escravo. Três dos seus líderes presos foram decapitados e seus corpos esquartejados e expostos pelas ruas de Salvador.

O caminho que levaria à independência do Brasil foi parte das revoluções de independência que ocorriam em outros países da América Latina. Muitas dessas revoltas propunham independência da Espanha junto com direitos sociais como libertação dos escravos e reformas agrárias. No México uma grande insurreição popular de camponeses indígenas sob a liderança dos padres Hidalgo e Morelos propôs independência com reforma agrária.

Também Simon Bolívar teve o apoio do presidente do Haiti Alexandre Petion, que em 1815 forneceu armas e soldados para sua expedição. Bolívar passou a defender a libertação dos escravos e libertou Venezuela, Colômbia, Equador e finalmente Peru e Bolívia depois de vencer com o general Sucre as últimas tropas espanholas na batalha de Ayacucho em dezembro de 1824. Entre seus generais estava o brasileiro Abreu e Lima.

 

A ruptura por cima

Quando a família real portuguesa chegou ao Brasil em 1808 ela foi obrigada a criar uma nova estrutura de controle e administração e se viu forçada a comandar o império português – que tinha outras colônias na África e Ásia – desde o Rio de Janeiro. O tráfico de escravos aumentou, pois interessava aos tanto para ingleses como comerciantes portugueses e os grandes latifundiários. Com a derrota definitiva de Napoleão em 1815 a Inglaterra começa uma ofensiva comercial que aumenta a subordinação de Portugal e da colônia brasileira. Nesse mesmo ano a coroa portuguesa tenta defender a sua economia contra outros setores concorrentes, decreta a Constituição do Reino Unido de Portugal e Brasil e impõe medidas econômicas que tentam proteger o comércio português como vinho e azeite.

A revolução pernambucana de 1817, articulada pelas elites econômicas de Recife, refletiu essa crise econômica ao propor a Proclamação da República, manutenção da escravidão e liberdades de culto e imprensa. A pressão econômica aumenta e em Portugal uma revolta das classes dominantes – a revolução do Porto de 1820 – exige a volta da corte e que o Brasil volte a ser colônia. Foi nesse contexto que ocorreram os acontecimentos que provocaram a independência do Brasil a partir de 1822.

O nascimento do Brasil como estado nacional não foi pacífico e tranquilo. De um lado, quebrava os bloqueios que a colonização de Portugal criava ao desenvolvimento do capitalismo, de outro, libertava um impulso revolucionário por mudanças que contagiava até as massas de escravos e trabalhadores livres. Quem assumiu o poder em 1822 foram os proprietários de terras e os grandes comerciantes. Mas apesar dos esforços desses para impedir qualquer mudança, a independência revolucionou a vida do país, provocou uma ruptura, exigiu a formação de um estado nacional e fortaleceu cada vez mais uma dinâmica capitalista na economia, ainda que articulada com a permanência da escravidão dos negros e o controle da Inglaterra.

 

A separação de Portugal

Em uma rápida sucessão de acontecimentos entre 1821 e 1823, o processo de ruptura com Portugal iniciado em 1808 avançou rapidamente. Em 26 de fevereiro de 1821 manifestações de rua forçaram o rei d. João VI a jurar lealdade à Constituição liberal e voltar para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente. Os liberais portugueses queriam que o Brasil voltasse a ser colônia. D. Pedro tornou-se “defensor perpétuo do Brasil” em 13 de maio de 1822 e começou de fato a reorganizar as bases do novo Estado.

Em 2 de setembro o governo no Rio de Janeiro recebe a informação de que o parlamento português enviaria tropas ao Brasil por considerar o regente e seus conselheiros traidores e inimigos. O ultraconservador conselheiro de D. Pedro, José Bonifácio escrevia: “de Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores” e recomenda a ruptura com a metrópole. Em viagem à São Paulo d. Pedro proclama a Independência em 7 de setembro de 1822.

A luta pela independência não termina aí, uma data que demorou para ganhar importância. As classes dominantes tentaram uma transição através de arranjos palacianos, mas a resistência das tropas portuguesas de um lado e as mobilizações populares de outro, levantam outros projetos alternativos que tornam o processo tenso e violento. Isso se refletiu também nas tentativas de uma Assembleia Constituinte em 1823, que refletiam as divisões entre as classes dominantes que queriam assumir o controle do novo país por diferentes caminhos.

 

O novo Estado e a Constituinte

Para fazer nascer o novo Estado nacional foi costurada uma conciliação precária entre os que defendiam uma monarquia absoluta e os revolucionários liberais que defendiam algum tipo de monarquia constitucional que desse algum controle aos proprietários. Havia também a pressão das províncias, para não falar das esperanças populares por terra e liberdade, completamente ignoradas e que logo vão aparecer.

Uma tentativa de submeter o imperador ao juramento de uma futura Constituição é esmagado por José Bonifácio em outubro de 1822. Uma onda de prisões e censuras da imprensa prepara a abertura da Assembleia Constituinte em maio de 1823.

Na abertura da assembleia D. Pedro I defende o sistema monárquico e José Bonifácio que o maior perigo a ser evitado seria a “demagogia e a anarquia”, a democracia e a participação das massas populares. Depois de meio ano de trabalhos o mesmo d. Pedro manda prender os deputados e dissolver a constituinte em 12 de novembro de 1823, apenas uma expressão de todo um projeto autoritário de estado nacional que está sendo construído.

A primeira Constituição do país foi imposta em 1824 e estabelecia um governo “monárquico, hereditário e constitucional representativo”. O imperador é “inviolável e sagrado”; podendo exercer o inédito “poder moderador”, outro nome para um poder absoluto: podia intervir sobre câmaras legislativas, Senado e judiciário; escolher os senadores em listas tríplices de eleitos, convocar assembleia geral das províncias quando julgasse conveniente, aprovar ou suspender as decisões dos conselhos provinciais, suspender juízes etc.

O imperador era também o chefe do executivo podendo nomear ministros, bispos, juízes, criar empregos, dirigir a política externa e as forças armadas. A Câmara dos deputados seria temporária e o Senado vitalício. Era uma democracia para as elites de proprietários: para poder votar era preciso NÃO ser trabalhador, com algumas exceções. Para ser eleito deputado era preciso ter uma renda líquida de 200.000 réis e para senador de 800.000 réis, as eleições eram indiretas. A religião católica foi imposta como religião oficial do Império. O Brasil seria uma “nação livre independente”, garantindo o” direito de propriedade em toda a sua plenitude”.

As ideias liberais das burguesias revolucionárias europeias ficaram apenas na mente e nos debates de pequenas minorias. O liberalismo aqui foi adaptado aos interesses dos escravocratas e dos grandes comerciantes: quando lutavam por liberdade igualdade, nossos patriotas queriam acabar com os privilégios que beneficiavam a metrópole e prejudicavam os seus negócios. Esses líderes eram em sua maioria membros da elite e racistas, temiam a rebelião da massa dos escravos e qualquer ideia próxima de democracia. Mas os negros escravizados e brancos pobres mestiços livres viram na Independência uma possibilidade de eliminação da discriminação racial.

 

Independência e o medo da revolução

Na Bahia as lutas se ampliam e dão um caráter revolucionário ao processo de independência. A derrota das tropas portuguesas só termina em 2 de julho de 1823, depois de grande mobilização popular em que participam negros e indígenas, tropas regulares e voluntários. Esse bloco popular despertou grande medo nos proprietários escravocratas, que temiam que as lutas por terra e liberdade se incorporassem ao objetivo da independência e transbordassem fora do seu controle.

Na província do Grão-Pará (hoje toda região norte do país) a luta pela independência foi em parte capturada pelas exigências próprias das massas populares. Ali havia uma forte elite de proprietários portugueses e uma ligação comercial direta com Lisboa, mais próxima que o Rio de Janeiro. Na cidade de Belém a Proclamação da Independência ocorre apenas em 15 de agosto de 1823, depois que o Lord almirante Grenfell a serviço de d. Pedro I derrubou a junta de governo. Mas uma mobilização de massas exige a formação de um governo popular chefiado pelo Cônego João Batista Campos. Grenfell, que recebera ordens para entregar o governo a homens da confiança do imperador, desencadeou violenta repressão, fuzilamentos, centenas de prisões que desembocaram no massacre por sufocamento de 256 prisioneiros no porão de um navio conhecido como “Chacina do Brigue Palhaço”.

Em Pernambuco as raízes da revolução de 1817 estavam vivas. Dez dias depois da proclamação de 7 de setembro de 1822 forma-se um governo alinhado com d. Pedro I. Em dezembro de 1823, como reação ao fechamento da Assembleia Constituinte, ocorre uma rebelião e o governo da província é derrubado. D. Pedro I envia um governador nomeado e uma esquadra para bloquear Recife em junho de 1824 e impor seu controle. Mas a resistência prossegue e em 2 de julho de 1824 é proclamada a Confederação do Equador como uma república independente unindo Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba ao Pernambuco, chefiada por Manuel Paes de Andrade e frei Caneca. As tropas imperiais conseguem derrotar a confederação com apoio dos senhores de engenho. A guerra termina em 29 de novembro e os seus principais líderes são fuzilados.

 

O salto ao capitalismo

A Independência provocou uma revolução social e econômica no Brasil. Obrigou a camada de proprietários a construir um novo e complexo aparato de estado para a defesa do território, para a sua administração e para favorecer diretamente seus interesses. Esse processo nos primeiros anos foi caótico e contraditório, mas criou uma dinâmica de modernização econômica nova e diretamente capitalista. Havia um bloqueio à industrialização. A abertura comercial desde 1808 destruía as pequenas manufaturas têxteis e a pequena metalurgia que existia em Minas Gerais e São Paulo. As deficiências do comércio português tinham ajudado como barreira protetora para uma pequena indústria local de caráter quase artesanal, mas que estava satisfazendo uma boa parte do consumo interno e que sobrevivia com pouca concorrência estrangeira.

Ao mesmo tempo que o país se desfazia do peso parasita da decadente economia de Portugal e se abria completamente para a concorrência do capitalismo inglês (as tarifas de importação de 15% eram baixas), internamente era mantido o trabalho e o tráfico de escravos negros. Um processo de acumulação de capital passou a ocorrer entre os proprietários rurais, mas esmagava a possibilidade de um desenvolvimento autônomo do capitalismo no país com o fortalecimento de uma burguesia nacional ao manter a escravidão e voltar sua produção para fora se favorecendo da abertura comercial. A escravidão era o coração econômico do país e a direção política do novo estado estava com a classe diretamente interessada na conservação da escravidão. Só com o fim do tráfico de escravos em 1856 esse edifício começou a ser destruído.

O modelo de independência tramado desde antes de 1822 pelas classes dos ricos proprietários, dos fazendeiros, dos grandes comerciantes e dos donos de escravos era de um Brasil que nascia de joelhos, dominado pela Inglaterra e pela monarquia para seguir escravizando e explorando o seu povo. Mas para as camadas populares, trabalhadores livres pobres, mulheres, indígenas, negros escravizados a independência trazia esperanças e um caráter revolucionário. Esse sentimento popular transbordou nas inúmeras revoltas de escravos e nas províncias como a dos Cabanos no Pará e Amazônia, na revolta Praieira em Pernambuco e nas insurreições populares dos Balaios em grandes regiões do Maranhão e Piauí. Essas explosões de revolta se somavam com as permanentes e inúmeras rebeliões e lutas de resistência cotidianas dos escravos e dos vários quilombos negros pelo país afora. A nação brasileira se construiu nessas lutas.

 

As lutas contra a escravidão

Os quilombos e mocambos são constantes na paisagem local desde o século XVI. Nasceram como refúgios e seguiram se formando mesmo após a independência. Desse período temos o famoso Mocambo do Pará criado em 1820 perto de Manaus na Floresta do rio Trombetas. Reunia em 1823 mais de 2000 pessoas entre negros e indígenas, que resistiram ferozmente aos vários ataques armados para destruí-lo. Mas algumas lideranças conseguiram fugir e conseguem fundar um novo Quilombo só desmantelado em 1835.

Na Bahia houve grandes lutas de resistência e uma das mais conhecidas era o Quilombo do Cabula, nas grotas e matas das colinas que cercam Salvador a nordeste, sendo destruído por uma expedição militar no começo do século 19. A onda de rebeliões prosseguiu tanto na cidade quanto nos engenhos do Recôncavo baiano entre 1816 e 1835, quando ocorreram cinco grandes insurreições. A Rebelião dos Malês de 1835, foi a maior revolta de escravos que se tem notícia. Salvador tinha na época 65.000 habitantes, apenas 20% eram brancos e maioria dos escravos negros eram africanos, muitos deles alfabetizados e de religião muçulmana. A revolta ocorreu entre os dias 24 e 25 de janeiro e provocou uma brutal repressão, fuzilamentos e condenações aos principais líderes. Entre as dificuldades da luta havia divisões internas entre os explorados e a repressão brutal e eficiente. Cada movimento de revolta era respondido com leis mais severas. Os donos de escravos sempre exigiam mais repressão para proteger suas propriedades, as cadeias lotavam.

No período da independência a escravidão no Brasil estava passando por uma mudança importante. O trabalho escravo estava crescendo em São Paulo e Rio de Janeiro (no vale do Paraíba) atraído pelas novas plantações de café; escravos do Nordeste eram vendidos agora no sul do país. Em uma das grandes levas de escravos do nordeste estava um menino chamado Luiz Gama, depois um dos maiores líderes abolicionistas. A economia cafeeira fortaleceu a escravidão em São Paulo. Em 1872 os negros e mulatos eram 62% da população em território paulista.

Os capitalistas que antes investiam no tráfico negreiro, agora proibido (desde 1850), levaram seus capitais para fazendas de café. Mas o próprio negócio capitalista exigia o desenvolvimento de um mercado de trabalho livre. Passaram a existir cada vez mais duas formas de trabalho nos cafezais paulistas: a escravidão e o trabalho livre. Isso ajudou a criar novas formas de luta, resistência e unidade entre os trabalhadores. Os escravos não só fugiam para formar quilombos, mas participam do próprio processo abolicionista, têm contato com os colonos estrangeiros e criam ligação com grupos abolicionistas radicais, organizam fugas das fazendas e apoios nas cidades.

Na fase final da escravidão os trabalhadores livres participaram ativamente do movimento abolicionista ajudando nas fugas em massa dos escravos. Eram mascates, pequenos agricultores e comerciantes, além de diversas categorias como os cocheiros, operários de pequenas oficinas e tipógrafos. Pelos noticiários dos jornais da época sabe-se que depois de 1870 os escravos estavam em verdadeira debandada. O Brasil não se tornaria de fato uma nação sem a libertação dos escravos. Mesmo o conservador José Bonifácio teve que reconhecer que: “sem a emancipação dos atuais cativos nunca o Brasil firmará sua Independência nacional…”.

 

A revolução da Cabanagem no Pará

A revolta dos Cabanos do Pará começou em 1833 e foi até 1839, teve grande alcance e chegou a proclamar a república e governar a região por alguns anos. O Pará contava com um longo passado de agitações das massas trabalhadoras e um isolamento do restante do futuro país. Em 1832 ocorreu uma sublevação da comarca do rio Negro, futura província do Amazonas. Uma agitação popular obrigou o governo imperial a enviar interventores em 1833, o que provoca uma explosão de revolta que se alimentava da pobreza, trabalho escravo, autoritarismo dos grandes comerciantes e proprietários.

O novo governo tenta controlar os ânimos aplicando uma feroz repressão com perseguições, prisões arbitrárias e o recrutamento obrigatório para o exército e marinha. Explode um levante armado e na noite de 6 para 7 de janeiro de 1834 os revoltosos Cabanos tomam a cidade de Belém: o presidente, o governador e o comandante de armas são fuzilados. Toma posse o líder Félix Malcher, que ao jurar fidelidade ao imperador trai o movimento revolucionário e é também fuzilado.

Novas tropas imperiais são enviadas e desembarcam em Belém para um contra-ataque. Os Cabanos se refugiam no interior e mais uma vez atacam a capital e a tomam em agosto de 1834, proclamam a República declarando a região desligada do Império. Eles conseguem manter o poder por vários meses. Em abril de 1836 chega ao Pará uma poderosa esquadra e depois de dura resistência dos Cabanos a capital é ocupada em 13 de maio. Muitos Cabanos se refugiam no interior do Amazonas e prosseguem na luta.

A revolução da Cabanagem foi o mais importante movimento popular de resistência ocorrido no Brasil no século 19 e o único em que as camadas trabalhadoras conseguiram ocupar o poder de toda uma província. O Regente Feijó que controlava o Império na época esbravejou em 1836: “O vulcão da anarquia ameaça devorar o Império: é preciso aplicar a tempo o remédio…”. Mas o vulcão popular seguia fervilhando tentando construir um outro Brasil.

 

Balaios e Praieiros contra o Império

Entre 1833 e 1841 o Maranhão foi teatro de outro grande levante popular que se estendeu pela vizinha província do Piauí. O Maranhão contava com pouco mais de 200.000 habitantes, sendo deles 90.000 escravos e uma enorme massa de trabalhadores rurais sertanejos empregados na pecuária. Não foi o único movimento, mas sucessivos levantes populares. Foram mais de três anos de revoltas das massas sertanejas e escravos contra a política de exploração dos grandes senhores engenheiros e fazendeiros. Em alguns locais a Rebelião dos Balaios se organizou em grupos permanentes, mas não conseguiram se articular aos movimentos dos escravos que lutavam por liberdade e que chegam a formar um Quilombo próximo ao litoral entre os rios Tutóia e Pria.

As forças imperiais buscaram impedir a união destes dois setores oprimidos de sertanejos e escravos. Os Balaios chegaram a tomar a cidade de Caxias e constituir um conselho militar e uma assembleia dos seus chefes, mas de curta duração. No começo de 1840 assumiu a província e o comando das tropas de repressão o coronel Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, o maior carrasco do Império, e que esmagou a insurreição dos Balaios.

Na província do Pernambuco a concentração de terras exploradas e a riqueza estava nas mãos de um punhado de ricos proprietários donos de legiões de escravos e agregados submissos. Ao lado deles havia uma burguesia comercial de portugueses rica e poderosa. Uma agitação popular com uma clara conotação de luta de classes ocorria desde 1842 contra esses ricaços. Em 7 de novembro de 1848 explodiu um levante armado de mais de 2.000 pessoas contra o governo.

O programa dos chamados “Praieiros” defendia o voto livre e universal para o povo brasileiro, Liberdade de imprensa, trabalho como garantia de vida para o cidadão brasileiro, Independência dos poderes com extinção do poder Moderador, reforma Judiciário para assegurar as garantias individuais do cidadão. Era um avançado programa democrático para a época. A revolta teve dificuldades para ganhar as amplas massas trabalhadoras e foi sufocada depois de 2 meses de luta em 3 de fevereiro de 1849. Os Praieiros foram um dos últimos impulsos dados pela revolução de Independência.

A revolta dos Praieiros ocorreu no mesmo ano em que na Europa explodiu a primeira revolução de caráter internacionalista da classe operária, no mesmo ano da publicação do manifesto do partido comunista. A classe trabalhadora brasileira estava aos poucos se forjando desde 1822 nas diferentes revoltas contra a escravidão, nas lutas populares contra as classes dominantes e seu modelo de Brasil imperial, autoritário, escravocrata, sempre ajoelhado à Inglaterra e outras potências externas. A luta por um Brasil com verdadeira independência e soberania nacional, com democracia, direitos e liberdade para seu povo segue sendo o eixo das lutas da classe trabalhadora ao longo de todo o século XX de nossa História.

*Everaldo de Oliveira Andrade é professor do Departamento de História da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Bolívia: democracia e revolução. A Comuna de La Paz de 1971 (Alameda).

 

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