Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
Se a renda vai bem, o dinheiro gira de maneira despercebida ao ser empregado em produtos supérfluos e desejos logo esquecidos
Liza Minnelli, depois de cantar o refrão de Money, money, no clássico musical Cabaret, conta as vantagens de ser rico. Afirma: “o dinheiro faz o mundo girar… Disso podemos ter certeza ao ser pobre. Se você não tem aquecimento no inverno, sequer sapato e casaco, está magro e pede conselho ao gordo pastor, ele vai dizer para você rezar…”. Como o dinheiro caísse do céu… Mas quando bate a fome, você tem de se endividar para sobreviver!
O dinheiro serve a dois propósitos: um, quando apenas tem a forma de moeda, é ser uma unidade de conta e um meio de troca. Outro, quando contempla essas funções e sobra o suficiente para ter uma reserva de poder aquisitivo, ele se torna plenamente dinheiro.
Ao ter esses dois propósitos, serve a dois mestres: um quem tem o objetivo de obtê-lo apenas para atender às “necessidades da vida”, geralmente trabalhando para ele, e outro quem tem meta de o armazenar não apenas sob forma de riqueza plenamente líquida, ligada ao seu poder aquisitivo imediato. Por sobrar dinheiro, pode o acumular em reserva financeira, para não arcar com custo de oportunidade: perder os rendimentos em juros compostos, caso não o investir em renda fixa.
Ao longo da história, o primeiro grupo (de quem não o tem em reserva) foi chamado de trabalhadores (formais), proletariado (informais) ou “os pobres”. São possuidores apenas de “prole”, isto é, filhos. O segundo grupo, composto de acumuladores dele, foi chamado de capitalistas, investidores ou, simplesmente, “os ricos”.
Os trabalhadores-proletários ganham dinheiro vendendo seu tempo, empregado como força de trabalho. Os capitalistas-investidores ganham mais dinheiro “emprestando” aos outros o uso de seu dinheiro em troca de uma promessa de receber uma quantia acima do valor do empréstimo (por meio de um instrumento comprovante de dívida do devedor), ou um direito de propriedade no negócio (chamamos de “capital acionário” composto de “ações”), ou uma propriedade imobiliária.
Esses dois grupos, juntamente com o governo (Poder Executivo e Poder Legislativo), definidor das regras ou leis, são os principais atores desse drama encenado no capitalismo. Embora ambos os grupos possam se beneficiar de empréstimos e dívidas, às vezes apenas um (credor) ganha e outro (devedor) sofre como resultado da transação.
Os ativos financeiros de um agente econômico são os passivos financeiros de outro, devidos às promessas de entrega futura de mais dinheiro. Quando as reivindicações sobre ativos financeiros são muito altas em relação ao dinheiro disponível de imediato para atendê-las, uma grande desalavancagem financeira deverá ocorrer para se cumprir os deveres em relação aos haveres.
O crédito é, sob a confiança da avaliação do risco, a oferta de poder de compra. Esse é concedido em troca de uma promessa de pagamento. Esta é a dívida. O problema com a dívida surge quando há incapacidade de a pagar. A avaliação se o rápido crescimento do crédito e/ou da dívida ser bom ou ruim depende se o crédito é dirigido, direta ou indiretamente, à geração de valor adicionado e, através dele, a dívida poder ser paga.
Como o crédito cria poder de compra e dívida, ele é ou não mais desejável a depender se o dinheiro emprestado é usado produtivamente o suficiente para gerar mais renda, suficiente para pagar a dívida. O crédito e/ou o débito, ao produzir rendimentos suficientes para pagar a si mesmo e sobrar, é recompensador ao propiciar mais dinheiro.
Por exemplo, se um governo evitar investimento na infraestrutura necessária para a economia e o bem-estar da sociedade por puro conservadorismo, insistente em não pedir emprestado para construir tal coisa, comete um austericídio (austeridade + suicídio)! Se isso é bom ou ruim para a sociedade, depende do julgamento do ônus do endividamento público face ao custo de oportunidade de não ter infraestrutura.
Você, seja trabalhador, seja capitalista, cria um ciclo sempre quando pedir dinheiro emprestado. Comprar algo sem você não poder pagar de imediato significa gastar mais além do ganho por você. Você não está apenas pedindo emprestado ao seu credor. Você está tomando emprestado do seu futuro, pois o endividamento pode ser encarado como a antecipação de esperados rendimentos futuros.
Essencialmente, você está comprometendo um tempo, durante seu futuro, quando precisará gastar menos face ao total ganhado com o uso de recursos de terceiros para poder pagá-lo de volta. Gera um padrão cíclico de empréstimo/dívida, gastando no presente mais além do acumulado antes, e depois gastando menos do aparente potencial de gastos, face à renda recebida no empreendimento empresarial ou no trabalho individual bem-sucedido.
Isso é tão verdadeiro para uma economia nacional quanto para um indivíduo. Emprestar dinheiro coloca em movimento uma série de eventos previsíveis. São capazes de se repetirem em padrões semelhantes em diferentes economias.
Em uma economia baseada no mercado, expansões e contrações nos ciclos econômicos, relacionados à carteira de crédito e endividamento, ocorrem por razões perfeitamente lógicas. Essas sequências, no entanto, não são predestinadas a repetir exatamente da mesma maneira, nem durar exatamente a mesma quantidade de tempo.
Durante as altas, os empréstimos apoiam gastos e investimentos. Por sua vez, sustentam os rendimentos e os preços dos ativos. Estes sustentam novos empréstimos para gastos, seja com bens e serviços, seja para acumulação maior de ativos financeiros. O endividamento eleva, então, os gastos e a produtividade na geração de renda.
Emprestar cria movimentos ascendentes auto reforçadores. Acabam se invertendo para movimentos descendentes em retroalimentação. E estes depois se revertem…
Tipicamente, as crises da dívida ocorrem porque os custos do serviço da dívida aumentam mais rapidamente se comparados ao ritmo de crescimento dos rendimentos necessários para os servir. Isto provoca uma desalavancagem financeira.
Ray Dalio, no livro Crise da grande dívida (Big Debt Crises. Bridgewater), mostra quatro tipos de alavancas possíveis de serem usadas pelos formuladores de políticas públicas para reduzir os níveis de dívida e serviço da dívida em relação aos níveis de renda e fluxo de caixa necessários para atendê-los: (i) austeridade ou gastar menos; (ii) inadimplência ou reestruturações de dívidas; (iii) emissão de dinheiro pelo Banco Central para adquirir títulos de dívida pública ou garantir empréstimos aos bancos; (iv) aumento da carga tributária progressiva para transferências de dinheiro de quem tem mais além do necessário para os carentes.
Cada uma dessas alavancas tem diferentes impactos na economia. Algumas são inflacionárias, embora estimulem o crescimento, por exemplo, “imprimir dinheiro”, quando se encontra em pleno emprego, enquanto outras são deflacionárias e ajudam a reduzir os encargos da dívida, por exemplo, austeridade e inadimplência.
Essas alavancas mudam em torno de quem se beneficia e quem sofre – e durante quanto tempo. Os tomadores de decisões são colocados na posição politicamente difícil de fazer essas escolhas ao lidar com a crise da dívida e raramente são apreciados.
Este desequilíbrio entre o volume dos créditos em dinheiro e a oferta de dinheiro, ou seja, o fluxo de caixa necessário para atender essa dívida, ocorreu comumente nos ciclos da história econômica. Ele sempre foi resolvido por meio de uma combinação das quatro alavancas citadas. O processo é doloroso para todos os agentes econômicos. Tanto causa um conflito entre os trabalhadores-proletários e os capitalistas-investidores, quanto pode ficar tão ruim a ponto de novos empréstimos serem prejudicados ou evitados. Daí surge a estagnação.
Grandes ciclos de dívida podem gerar grandes crises como depressões deflacionárias ou depressões inflacionárias. Nas primeiras, os formuladores de políticas respondem à contração econômica inicial, baixando as taxas de juros até quando se aproximam de zero e essa alavanca deixa de ser um meio eficaz para estimular a economia.
As depressões inflacionárias, nas quais muitas dívidas são denominadas em moeda estrangeira, são especialmente difíceis de administrar, porque as habilidades dos formuladores de políticas para “espalhar a dor”, isto é, socializar os prejuízos, são mais limitadas. A retirada de capital com repatriamento ou fuga do capital estrangeiro seca os empréstimos e a liquidez, além de, ao mesmo tempo, a consequente depreciação da moeda nacional produzir inflação.
Se a renda vai bem, o dinheiro gira de maneira despercebida ao ser empregado em produtos supérfluos e desejos logo esquecidos. Se a renda vai mal, ele e os credores são crucificados como fossem culpados pelos problemas. Dinheiro, dinheiro… gira o mundo.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Rede de apoio e enriquecimento. Disponível em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2022/09/20/rede-de-apoio-e-enriquecimento-baixe-o-livro/
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