Por ALEXANDRE DE FREITAS BARBOSA*
Considerações sobre a biografia do presidente Lula
O historiador John D. French, no seu livro Lula e a política da astúcia: de metalúrgico a presidente do Brasil –publicado em português, pela Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo, em 2022 (o original em inglês é de 2020) – sabia do risco que estava correndo, quando se pôs a escrever uma biografia sobre Lula. Fernando Morais já havia iniciado a empreitada com acesso direto a Lula e a fontes primárias preciosas, como as entrevistas de 17 horas concedidas pelo biografado a Frei Betto no final dos anos 1980.
À primeira vista, o currículo de John D. French não pareceria habilitá-lo a dar conta do desafio. Uma tese de doutorado sobre os trabalhadores do ABC na primeira metade do século XX, orientada por Emília Viotti da Costa, na Universidade de Yale. Poderia ser dito também que a formação e prática de historiador não faz de ninguém um biógrafo.
Mas John D. French exerce seu novo ofício com excelência e desenvoltura. O professor da Duke University fala português, conhece a história do ABC como poucos, tendo se dedicado a acompanhá-la antes e depois da ascensão do fenômeno Lula, durante os últimos quarenta anos. Conforme, o autor relata, referindo-se a Lula, com quem se encontrou apenas três vezes, “havia consumido mais de suas palavras, e as considerado com mais cuidado, do que qualquer outra pessoa no mundo”.[i]
O seu livro The Brazilian Workers’ ABC cobre o período anterior à carreira do Lula sindicalista. Na densa pesquisa da sua tese, ele mostra que boa parte dos estudos sobre o “populismo” – compreendido como mero estratagema para amortecer os conflitos de classe –, está impregnada da ideologia de alguns intelectuais para justificar o golpe de 1964. A culpa era dos trabalhadores manipulados e sem consciência de classe.
Na sua inteligente sacada, o “consenso populista” teve como último personagem os historiadores e cientistas sociais que o transformaram numa fórmula teórica vazia, dentre eles, Francisco Weffort, o seu alvo predileto.[ii]
Outro diferencial de John D. French é levar as origens de Lula a sério, partindo dos depoimentos de Lula e de vários de seus familiares coletados por Denise Paraná na sua tese de doutorado, depois transformada em livro.[iii]
O mérito de sua obra não se deve apenas ao profundo conhecimento do cenário (o ABC dos trabalhadores) e da bibliografia sobre as classes populares no Brasil, e tampouco ao manuseio que faz da teoria da história. Isso não é suficiente para uma boa biografia, pois o personagem precisa caminhar pelas páginas. E especialmente alguém, como Lula, que passa por várias transfigurações, de retirante a operário, dirigente sindical, líder do PT, candidato a presidente e presidente da República.
O historiador convertido em biógrafo consegue fazer isso por meio de uma pesquisa metódica com todas as fontes disponíveis, rastreando os passos de Lula e de todos aqueles que conviveram com o personagem nas suas várias esferas de sociabilidade, especialmente até 1980. Ao entrosar o biografado com um importante segmento em ascensão na sociedade brasileira, numa interação cheia de nuances e imprevista, o autor consegue captar a ruptura, quando se amplia o arco de influência da mensagem transmitida por esta personalidade central da nossa história.
John D. French se questiona por que os intelectuais e a “opinião pública” nunca se preocuparam em destacar “Lula” como “personalidade central” para compreender o movimento da sociedade brasileira dos anos 1980 em diante. No seu entender, isso se deve à recusa em aceitar o papel do indivíduo no processo histórico – geralmente tido como “subjetivo”, “mistificador” e inacessível aos esquemas interpretativos de liberais e marxistas.[iv]
Aqui o seu distanciamento como estrangeiro lhe permite avançar além do discurso dos intelectuais e da grande imprensa, que muitas vezes se escudam no “carisma” atribuído a Lula, uma forma preconceituosa de se referir ao aprendizado social e político daqueles que não completaram a escolaridade formal. Ele seria dotado de uma “mágica”, portanto, distante da erudição dos intelectuais e jornalistas, repletos de diplomas e prestígio.
O contraponto com FHC, “o príncipe da sociologia brasileira”, é utilizado por John D. French para ilustrar mais um consenso criado pelas elites. FHC é “estudado”, versado em várias línguas, e dotado de “racionalidade”, enquanto Lula é, na melhor das hipóteses, um “pragmático”, o que soa como “falta de princípios”.
Florestan e Lula
Uma importante exceção a esse consenso que silencia sobre a presença de “Lula” como personagem central da nossa história contemporânea – o que sugere, por outro lado, que o indivíduo biográfico é um “subproduto do ABC” –, encontra-se no artigo escrito em 1994, antes da segunda campanha presidencial de Lula, por Florestan Fernandes.
Florestan Fernandes enxerga Lula como parte do turbilhão por que passa a sociedade brasileira desde o final dos anos 1970. Tido pelas classes dominantes como o nordestino que teve “sorte” e ascendeu socialmente, “os interesses de Luiz Inácio incrustavam-se entre os operários e as populações pobres no vir-a-ser de classe social em si”. Para que essa fusão acontecesse, “num momento em que a ordem legal estava em contradição com a ordem social”, o personagem sofreu mutações pessoais que tiveram importância histórica.
Emergiu, assim, no horizonte a “marca perene” da sua liderança, disposta a “afirmar-se contra a ordem existente no mundo operário sem romper os limites do inconformismo aceito pelos capitalistas”. Sua “vocação política invulnerável”, pondo as questões em debate, sem quase interferir nas discussões, para entrar em cena com “uma solução inclusiva”, brotou assim que surgiram as oportunidades para a sua eclosão. Enfim, não se trata de “uma personalidade qualquer”, pois movida por “uma capacidade incomum de autoaprendizagem e de reflexão sobre si e os outros”. Mas, completa Florestan, “há lacunas sobre os altos e baixos dessa fase de desabrochar de um rebelde potencial”.[v]
Uma biografia com método
John D. French preenche várias destas lacunas na sua biografia. O seu esquema metodológico combina diferentes temporalidades. Em primeiro plano, estão os processos sociais políticos e culturais por meio dos quais o “Lula biográfico” entra em cena, transformando-se para atuar sobre os mesmos processos (segundo plano), parindo assim o “Lula imaginado” (terceiro plano), conforme a interação positiva, negativa ou indiferente que com ele guardam os vários segmentos de classe da sociedade brasileira. O autor esclarece que Lula “não é tratado nem isoladamente e nem como alguém inteiramente fundido ao seu contexto” na sua obra[vi]. A fusão é cuidadosamente trabalhada ao longo da narrativa.
Para dar cabo dessa empreitada, em que o Lula biográfico e a história do Brasil se cruzam como ondas que se superpõem umas às outras, John D. French faz uso de três instrumentos metodológicos: a sociologia política, a antropologia e uma refinada discussão das relações entre indivíduo e processo histórico.
Neste momento, alguém poderia perguntar, é necessário um esquema metodológico para se escrever uma biografia? Não basta entrevistar pessoas, ler materiais de época e perseguir as pegadas deixadas pelo personagem? Não é o caso dessa biografia singular.
A aposta no indivíduo e na sua subjetividade como dotados de capacidade histórica transformadora exigem o rompimento com o estruturalismo e as suas “invariantes estruturais”, que desembocam, para John D. French, no “anti-humanismo teórico”. Ele se apoia em Sartre – “você é o que você faz com o que foi feito com você” –, recuperado por Marshall Sahlins: a “atuação histórica individual” deve ser compreendida a partir das “estruturas históricas que a autorizam”. Se bem feito um relato biográfico pode não necessariamente levar à “ilusão” denunciada por Bourdieu, de que uma vida está desde sempre imbuída de sentido, traçado a partir do que se conhece depois.
Para ilustrar esta concepção, talvez valha a analogia com a frase de Leon Trostky sobre a Revolução Russa, também mencionada pelo biógrafo estadunidense: “Lênin não foi um elemento acidental, mas um produto da história russa” [vii].
Lula tampouco é um elemento acidental, mas um produto da história brasileira. Essas considerações aparecem na introdução e no epílogo da obra e são essenciais à sua compreensão. Assim como o primeiro capítulo, “A apoteose de Lula”, que descreve as várias formas em que Lula aparece “biografado” – materiais de campanha, histórias em quadrinhos, livros infantis, teses acadêmicas, livros de biógrafos de vários países, filmes de grande tiragem, relatos depreciativos sobre “o tosco Karl Marx da Vila Carioca”, até se transformar em tema pela escola de samba Gaviões da Fiel.[viii]
O livro de John French é também uma biografia no sentido lato da palavra. Ele percorre a trajetória de Lula a partir de um duplo foco: compreende “o fenômeno da política como um conjunto de relações” que extravasam a estrutura de poder e permeiam o cotidiano; e concebe “a liderança como um trabalho corporificado por palavras”,[ix] as quais se revestem de sentido para quem nomeia o mundo e encontra respaldo social.
Dona Lindu e Lula
Desde a mais recente prisão injusta de Lula, consumando o golpe de 2016, a figura de sua mãe tem feito cada vez mais parte do seu repertório autobiográfico. Não se trata de artifício retórico. A educação que teve de sua mãe analfabeta pautou-se pelo exemplo proveniente de suas atitudes cotidianas. “Temosia” é o codinome de Dona Lindu, como descreve French, podendo ser caracterizada pela recusa à submissão esperada dos subalternos aos “fatos da vida” [x].
Mudando-se da Baixada Santista para Grande São Paulo, em 1955, depois de dar um basta nas agressões do marido, ela se estabelece na Vila Carioca, no distrito do Ipiranga. Os filhos mais velhos exercem vários tipos de profissão e as filhas trabalham como domésticas. Havia uma economia familiar em que os “investimentos” nos filhos e filhas eram realizados conforme as suas possibilidades na metrópole em ebulição.
Lula era o filho mais novo e o único com ensino primário completo (até a quarta série da época). Essa era a condição para o acesso a curso do SENAI. O sarrafo era baixo, pois aqueles de maior escolaridade tendiam a optar por empregos de colarinho branco. Também reduzia o universo de candidatos potenciais, sem o ensino primário, já que o exame de aptidão testaria habilidades de leitura, escrita e matemática.[xi]
Dona Lindu chegava a caminhar oito quilômetros ida e volta até a escola do SENAI, na avenida Ipiranga, em busca de vagas em curso de aprendizagem nas fábricas. O ingresso no curso para torneiro mecânico era para uns poucos “felizardos”, que se alçavam a uma condição de classe operária superior.[xii]
A tenacidade de Dona Lindu é melhor relatada aqui do que na biografia de Morais. A mãe de Lula, “etérea como uma sombra”, aparece, na biografia do jornalista, como a força moral a impedir que o jovem, antes de virar operário, filasse uma maçã na feira, um chiclete de bola Ping Pong ou ainda uma nota de 20 cruzeiros numa caminhonete de vidros abertos.[xiii]
Como Lula se lembra da mãe é importante, mas não revela o papel efetivo jogado por ela na sua ascensão social, e porque ele fora o “escolhido” como parte de um projeto familiar. Não se tratava de criar um “vencedor”, mas de uma aspiração compartilhada por várias donas de casa da mesma condição social,[xiv] para conseguir aquilo que era possível e de direito. Por pura teimosia.
Talvez pelo mesmo motivo ela não gostara de vê-lo na posse como presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo em 1975. “Tinha medo dessas coisas todas”, conforme relata Lula em entrevista de 1993.[xv] Imaginá-lo subindo a rampa do palácio do Planalto, isso simplesmente não figurava no seu horizonte de possibilidades, fruto do país em que se criara, mas não daquele que o seu filho estava ajudando a criar, ao enfrentar os “tubarões” da indústria e o regime militar.
SENAI E CESIT
“O SENAI era tudo o que eu sonhava na vida. Aprender uma profissão! […] Minha mãe ficava toda orgulhosa […] Eu era o cientista. […] Eu me sentia o dono do mundo” [xvi]. Assim Lula se referiria, décadas depois, à sua primeira transmutação histórica.
Além de uma série de benefícios e serviços, o ambiente de aprendizagem era bem estruturado e a ocupação na empresa estava assegurada. A concepção do SENAI, elaborada por seu fundador Roberto Mange, consistia na qualificação de uma elite de trabalhadores, pois a indústria não enfrentava escassez de “braços anatômicos”, mas “de braços pensantes”. Mesmo assim, os gargalos existiam. A instituição não dava conta da demanda, por oferecer cursos intensivos de três anos.[xvii]
O jovem aprendiz, para dominar “máquinas-ferramentas universais” como o torno, precisava de “flexibilidade e versatilidade”. Cada aprendiz contava com um operário instrutor, uma espécie de “figura paterna profissional” na sua fábrica, que no caso de Lula fora o torneiro mecânico negro, alcunhado de “velho Barbosa”. Para além das habilidades, os fatores não cognitivos mostravam-se estratégicos, tais como autodisciplina, organização e força de vontade para concluir o curso.[xviii]
Segundo John D. French, esse segmento altamente qualificado era composto pelos “intelectuais” [xix] da classe trabalhadora. O trabalho não era apenas manual: “após receberem os desenhos da peça, eles estudam e analisam cuidadosamente, e decidem praticamente todo o processo de trabalho”. O economista Paul Singer, em artigo para a revista Visão, de 1973, relata o resultado de suas pesquisas de campo com esses trabalhadores: eram mais “livres” para pensar com sua própria cabeça, assumindo uma responsabilidade cabal pelo resultado do seu trabalho.[xx]
A autorrealização, por outro lado, gerava ressentimentos, pois sabiam que a sua remuneração não acompanha a produtividade do trabalho. Estes segmentos tinham mais consciência da injustiça e, graças à sua posição de destaque na estrutura da fábrica, estavam mais propensos à organização sindical.
Uma das grandes sacadas da obra de John D. French é traçar um paralelo entre esses intelectuais da classe trabalhadora com os “jovens talentosos” do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT), fundado por Florestan Fernandes e dirigido por Fernando Henrique Cardoso.[xxi]
O processo de internacionalização da economia brasileira engendrou dois novos segmentos de intelectuais: um majoritariamente proveniente da elite, que utilizando “técnicas de consciência social”, mapearia os vários comportamentos de classe; e outro a brotar da sua própria consciência de classe, a partir do mundo concreto do trabalho, impondo-se ao mundo político, já cortejado por essa elite intelectual no final dos anos 1970. É quando Lula e FHC passam a jogar no mesmo time, partindo de posições e esquemas táticos diversos.
Contudo, há fricções entre esses dois universos, como se percebe nos estudos do CESIT sobre o mundo do trabalho antes de Lula entrar no palco do sindicalismo. O ataque agora é desferido a Leôncio Martins Rodrigues, mas sobra para todos do CESIT[xxii], reverberando os novos olhares sobre a classe trabalhadora pós-anos 1980, dentre os quais John D. French é uma das principais referências.
Em grande medida, as explicações fortemente estruturalistas estavam baseadas em “observações limitadas sobre uma coletividade emergente que era política e socialmente estranha a eles”. A distância social entre os pesquisadores e o seu objeto de estudo se dava por motivos ideológicos: os trabalhadores, de carne e osso, não se batiam contra o capitalismo. Daí as afirmações de que eram movidos exclusivamente pela “mobilidade social individual” e viam o sindicato apenas como “uma agência de serviço social”. Apareciam, portanto, como “um todo diferenciado”.[xxiii]
A política da astúcia
O substantivo “cunning” do título da biografia em inglês perde parte do seu significado original ao ser traduzido por “astúcia”. Ao passo que “cunning” remete a destreza e sagacidade, em português, astúcia rima com esperteza e malandragem. Num contexto de utilização classista e pejorativa do chamado “jeitinho” brasileiro, particularmente quando imputado às classes subalternas, é importante ter em mente as nuances semânticas entre “cunning” e “astúcia”.
Para John D. French, que neste ponto se escora em Michel de Certeau – historiador francês a meio caminho da linguística e da antropologia –, a potência da astúcia pode ser captada no “discurso lúcido” que revela “uma atividade sutil, teimosa e de resistência”, enfim, “uma ética da tenacidade”.
A astúcia de Lula surge reconfigurada no contexto urbano e industrial do ABC dos anos 1950 em diante. Os grupos subalternos utilizam estratagemas – uma ação camuflada – para contornar as regras de um espaço opressor. Mas se a astúcia é a arma dos fracos, ela pode moldar tanto atitudes horizontais contra aqueles da mesma condição, como soldar uma perspectiva vertical em que o “nós” se contrapõe a “eles”. Aliás, astúcia era o comportamento utilizado pelos entrevistados operários para driblar as pesquisas conduzidas pelos intelectuais da academia.[xxiv]
A “alta astúcia”, tal como concebida por John D. French, é aquela que Lula pratica ao combinar experiência, inteligência e capacidade de persuasão no trato com os superiores. Não era nem um bajulador (pelego) e nem um reclamão (subversivo), conforme os temos usados por French. Abre o jogo reconhecendo as diferenças entre as partes e simulando a possibilidade de acomodação de interesses, por mais que partisse da inevitabilidade do conflito. Governo, sindicato e patrões desempenhavam “papeis legítimos” [xxv] – daí a necessidade de conversar com todos para assim desnudar a farsa e soldar a união da classe trabalhadora.
Isso aparece, com maestria, no relato sobre a atuação de Lula nas greves de 1978 a 1980. John D. French destaca o uso da oralidade ancorada na experiência cotidiana dos “peões”, para soldar a unidade de classe. Por meio de uma sutil inversão, o uso deste termo pejorativo torna-se “emblema da militância confiante”. Na mesma toada, a ênfase em não ter o “rabo preso”, verbalizada pelo Lula sindicalista, corporifica o líder que representa os que varrem o chão, os que trabalham na linha de montagem e os ferramenteiros, todos eles “peões” [xxvi].
Paralelamente, nas relações com os vários integrantes da sociedade – jornalistas, políticos do MDB, o governador da ARENA, Paulo Egydio, representantes da Igreja, militares e os próprios empresários – Lula busca angariar forças ao movimento operário em ascensão, jogando uns contra os outros, de modo a elevar o espaço de poder em prol da sua classe. Sem a “peãozada” não havia “progresso industrial”. Tinham deixado de ser “os filhos do medo”, termo cunhado pelo jornalista e ex-operário do ABC, Roniwalter Jatobá, no seu relato romanceado de 1980.
Perceberam aos poucos, Lula especialmente, que encontravam eco no restante da sociedade então acordada da longa letargia.
Lula e o mundo do futebol (transposto para a esfera política)
Se a política da astúcia aparece com Lula, em plena forma, no final dos anos 1970, John D. French trata de mostrar que a sua transmutação de operário qualificado em sindicalista não tem nada de linear. Está no limite do improvável.
Lula gostava de jogar bola, chegava a fazer até 40 horas extras por mês, e não queria que o seu irmão Frei Chico “enchesse seu saco” com “essa história de sindicalismo”. No “conto de dois irmãos” traçado por John D. French, o “bom moço” e o “rebelde”, respectivamente, indicam as diferentes trajetórias possíveis na sociabilidade de classe operária, sujeitas a mudanças em face dos conflitos que davam novo sentido aos seus integrantes.[xxvii]
Como explicar a transformação do “bom moço” no líder sindicalista, seguro de si, com a sua oralidade peculiar, pinçando fatos do cotidiano e convertendo-os num exercício de pedagogia política, hoje reconhecíveis por qualquer cidadão brasileiro?
O biógrafo estadunidense sugere que existe uma combinação entre “socialização”, “disposições pessoais”, que às vezes esperam por aflorar ou nunca afloram, e os “fatos da vida” que acabam por se impor.[xxviii] O “descontentamento incipiente” de Lula – resultante do acidente de fábrica que levara à perda do seu dedo, da experiência do desemprego em 1965, da morte da sua primeira mulher e filho por erro médico, da tortura sofrida por seu irmão em 1975, dentre tantos outros “fatos” – ganha novos contornos quando ele entra para o sindicato em 1969 e, três anos depois, quando assume uma das diretorias, agora liberado do trabalho na fábrica.
Ancorado na sua densa pesquisa sobre Marcos Andreotti, militante do “partidão” e presidente do sindicato dos metalúrgicos de Santo André – sua última gestão se encerra em 1964 –, John D. French destaca a sua concepção do sindicato como uma “correia de transmissão” no desenvolvimento político dos trabalhadores. O ingresso no mundo sindical se dava de várias formas. Era necessária uma “filosofia de mobilização”, que envolvia até mesmo o conhecimento de futebol para participar das conversas.[xxix] Havia um cotidiano de resistência na fábrica para além dos “pelegos” e “subversivos”.
O acesso de Lula a esse novo mundo chega com a promessa de “aventura”, de expansão dos horizontes. Indicado para compor a chapa por seu irmão, ele conhece os líderes sindicais, com quem travara contato apenas distante. Fica encantado quando Frei Chico, numa acalorada discussão, sai “no tapa” com outros colegas sindicalistas. Como no futebol, onde ele, Lula, “gritava, brigava e xingava”.[xxx] O novo sindicalista percebe na política um espaço de afirmação pessoal e de reconstrução da sua identidade após os traumas pessoais que sofrera, e que passam a ser situados numa perspectiva mais ampla.
Lula, entre 1972 e 1975, participa ativamente da engrenagem sindical. Com dedicação e autodisciplina começa a cuidar de todos os aspectos considerados “mundanos”. Esse trabalho envolve a coordenação do Centro Educacional Tiradentes (CET), encarregado da formação técnica e dos cursos equivalentes ao ensino médio, além das atividades relacionadas ao desembolso do FGTS, empréstimos do BNH, aposentadorias, pensões e da assistência médica e dentária. Consideradas por muitos como “assistencialistas”, elas atendiam, no limite, os 10 mil membros do sindicato.
Paralelamente, o novo operador sindical se rodeia de uma equipe técnica competente com advogados (Maurício Soares e Almir Pazzianoto) e economistas (Walter Barelli do DIEESE), apenas para citar alguns exemplos. As portas dos sindicatos estão abertas a todos para o “realizador” que escutava e “falava com as pessoas e não para as pessoas”. O sindicato passa a fazer parte da vida operária, enquanto a nova sede se transforma na “esfera pública da classe trabalhadora”, articulando as questões do cotidiano ao mundo político [xxxi], então rumo à transição lenta, gradual e segura.
Existe, portanto, um hiato, acompanhado pelo biógrafo em todos os detalhes, entre o Lula que leu o discurso de posse como presidente do sindicado dos metalúrgicos de São Bernardo, em 1975, escrito por um assessor, “quando não sabia se tremia mais o joelho ou o papel na mão”; e aquele que foi reconduzido ao posto, em 1978, “quando largou o discurso em cima da mesa e soltou os cachorros” com seu palavreado forte e contundente.[xxxii]
Depois viriam os comícios no estádio da Vila Euclides, cuja “ideia louca” surgiu quando assistia, junto com alguns companheiros, a um jogo do Corinthians contra o São Paulo: “o dia em que a gente tiver metade disso aí numa assembleia, a gente vira o mundo do avesso”. Dito e feito. Vinte mil trabalhadores compareceriam no dia 13 de março de 1979, no estádio, debaixo de chuva, conforme estimativa do Dops. [xxxiii] Um novo Brasil surgia neste momento.
O que falta na biografia de French
John D. French se refere ao seu livro como a “primeira biografia abrangente e rigorosamente documentada do ex-presidente do Brasil” [xxxiv]. Nisto, estamos de pleno acordo. Entretanto, esta afirmação vale apenas até 1980, ano da criação do PT. O relato sobre as primeiras décadas de existência do PT é, para dizer o mínimo, insuficiente, assim como as transformações por que passam a economia, a sociedade e a política brasileiras. O processo histórico perde em envergadura e o Lula biográfico fica solto, como se ele avançasse e o restante do quadro ficasse estagnado.
A habilidade de Lula e a sua prática de liderança parecem poder tudo, na sua construção incessante de relações “à medida que ele ascende cada vez mais na estratosfera política”.[xxxv] Faltou o mesmo fôlego de pesquisa e o instrumental metodológico, tão bem aplicado até 1980, não foi mobilizado. O último capítulo “O presidente, o homem que cumpre a sua promessa” não acrescenta nada aos materiais de campanha produzidos pelo PT. Sequer resvala nas contradições do seu governo, apenas pedindo passagem para contrapor o Brasil de Lula com o que viria depois de 2016.
Em virtude da riqueza analítica e do material de pesquisa contido na biografia, para que o livro tenha maior alcance junto aos leitores brasileiros, é recomendável para a próxima edição, que esperamos venha logo, uma cuidadosa revisão da tradução e do texto final, além da inclusão de uma lista de siglas e de um índice onomástico. Uma biografia, obra de consulta por definição, exige um índice onomástico.
Muitas biografias ainda virão
Em maio de 2019, quando Lula ainda estava preso, escrevi um artigo intitulado “Aviso aos historiadores: Lula vai dar muito trabalho”.[xxxvi] A intenção era lançar a hipótese de que “os últimos quarenta anos” haviam sido marcados, em grande medida e de forma paulatina, pela centralidade de Lula na vida nacional. A sua prisão, ao contrário do que se dizia, revelava “que nunca essa centralidade fora tão presente”.
Então ninguém imaginava que Lula seria solto, declarado elegível e os processos contra ele encerrados. E que venceria as eleições da forma que venceu, reunindo, ao mesmo tempo e num período tão curto, as personas do líder popular e do estadista.
O artigo também afirmava que Lula iria “dar muito trabalho” aos historiadores. Pois bem, ele agora volta se conciliar com o novo ciclo histórico e ainda não sabemos que fusão ocorrerá e de que tipo com o mundo real. Mas uma coisa é certa: o seu retorno vai acender novas controvérsias e inclusive lançar nova luz sobre o passado remoto e o não tão distante. Novas biografias virão e elas têm muito a ganhar com trabalho seminal realizado por John D. French. O segundo volume de Morais deve trazer novas pistas para aprofundar a compreensão desse personagem que se confunde com as potencialidades e as fraturas da nossa sociedade.
Enfim, historiadores e biógrafos terão muito trabalho pela frente e é bom que o tenham, pois além do desafio da refundação nacional que apenas se inicia, o Brasil possui o maior líder popular e o maior estadista do primeiro quarto do século XXI. Não se trata de ufanismo, mas de um fato histórico a ser escrutinado nos seus vários matizes.[xxxvii]
*Alexandre de Freitas Barbosa é professor de economia no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Autor, entre outros livros, de O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida (Alameda).
Publicado originalmente na revista Rosa [https://revistarosa.com/7/uma-biografia-singular], no. 7.
Referência
John D. French. Lula e a política da astúcia: de metalúrgico a presidente do Brasil. Tradução: Lia Machado Fortes. São Paulo, Expressão Popular & Fundação Perseu Abramo, 2022, 688 págs (https://amzn.to/3sdy3M3).
Pdf disponível aqui.
Notas
[i] FRENCH, 2022, p. 15.
[ii] FRENCH, John. The Brazilian Workers’ ABC: class conflict and alliances in modern São Paulo. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1992, p. 8-10.
[iii] FRENCH, 2022, p. 56. O livro de Denise Paraná teve uma primeira edição em 1996, uma segunda em 2002, tendo sido a autora depois roteirista do filme dirigido por Fábio Barreto, “Lula, o filho do Brasil”.
[iv] Idem, p. 40-41.
[v] FERNANDES, Florestan. A Contestação Necessária: retratos intelectuais de inconformistas e revolucionários. São Paulo: Ática, 1995. p. 39-41, 44-45> nesta coletânea, Lula aparece junto com José Martí, José Carlos Mariátegui, Luís Carlos Prestes e Carlos Marighella, dentre outros.
[vi] FRENCH, 2022, p. 31.
[vii] Idem, p. 635-643
[viii] Idem, p. 54-68.
[ix] Idem, p. 44
[x] Idem, p. 104-105.
[xi] Idem, p. 118-120
[xii] Idem, p. 115, 117, 122, 125.
[xiii] MORAIS, Fernando. Lula: biografia, vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, p. 214. Na apresentação da “economia familiar” da Dona Lindu, Morais procura demonstrar, num exagero retórico, como Lula racionaliza o método da mãe para supostamente administrar o orçamento da República.
[xiv] FRENCH, 2022, p. 116, 121
[xv] Idem, p. 621
[xvi] Idem, p. 109.
[xvii] Idem, p. 111-114, 130-131.
[xviii] Idem, p. 126, 128-129, 317
[xix] Essa denominação percorre o texto inteiro e nos parece uma importante contribuição teórica e histórica.
[xx] Idem, p. 133-134, 276-277.
[xxi] Idem, p. 108.
[xxii] O tom crítico é um pouco atenuado, quando French se refere a Luiz Pereira, professor e pesquisador do CESIT, e fonte importante para a sua pesquisa, especialmente o seu clássico infelizmente esquecido “Trabalho e Desenvolvimento no Brasil”, publicado em 1965 pela DIFEL.
[xxiii] Idem, p. 110, 165-169.
[xxiv] Idem, p. 280-285.
[xxv] Idem, p. 433-434.
[xxvi] Idem, p. 439-447, 492-494.
[xxvii] Idem, p, 175-176.
[xxviii] Idem, p. 215.
[xxix] Idem, p. 148-149, 212.
[xxx] Idem, p. 213-217.
[xxxi] Idem, p. 303-305, 310, 315-321.
[xxxii] Idem, p. 288, 456.
[xxxiii] Idem, p. 460.
[xxxiv] Idem, p. 24.
[xxxv] Idem, p. 531.
[xxxvi] BARBOSA, Alexandre de Freitas. “Aviso aos historiadores: Lula vai dar muito trabalho”. In: Um nacionalista reformista na periferia do sistema: reflexões de economia política. BARBOSA, Alexandre de Freitas. Belo Horizonte: Fino Traço, 2021, p. 132-137. Também disponível em versão ebook.
[xxxvii] O autor agradece aos comentários do Professor Tâmis Parron à primeira versão dessa resenha.
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