Por Matheus Capovilla Romanetto*
Comentário do livro Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico, organizado por Vladimir Safatle; Nelson da Silva Junior e Christian Dunker.
Introdução
Há uma dificuldade peculiar em resenhar um livro escrito — como nos lembra um dos organizadores — por “mais de 50 alunos de mestrado, doutorado e pós-doutorado”, além dos três professores que coordenaram a pesquisa. Se a obra é tomada imediatamente em seu conjunto, à revelia dos autores e autoras, arriscamos perder de vista as eventuais contradições e diferenças internas entre os capítulos, e mesmo negligenciar a singularidade dos vários projetos intelectuais e de vida que vêm aqui ao encontro uns dos outros.
Por outro lado, se nos prendemos à preocupação em diferenciar a autoria de cada porção do texto completo, não nos vemos em melhor situação: a própria estrutura da obra induz certa desigualdade entre uns capítulos — escritos por um só pesquisador — e outros, em que a letra de cada estudante aparece ao lado de vários colegas, sem que saibamos de quem é o texto em cada parte, nem tampouco o modo exato como a pesquisa, a escrita e a revisão se deram.
Finalmente, há uma terceira dificuldade: um livro destas dimensões, que “resume e abarca quase dez anos de pesquisa”, tendo sido preparado em “trabalho coletivo” que durou “três anos”, ultrapassa certamente, pelo menos em alguns pontos, as competências de qualquer especialidade. Assim, na variedade de referências, que dá a este livro uma de suas principais qualidades, o resenhista (ou pelo menos este resenhista) vê-se diante de uma tarefa dupla: deve ponderar não apenas o conteúdo do que leu, mas também o modo de produzir conhecimento implicado na própria forma da obra, sem que possa reivindicar uma apreensão totalmente qualificada, nem de um, nem de outro aspecto.
Por conta disso tudo, o texto que segue abre mão de discutir no detalhe as várias etapas do argumento, concentrando-se em suas premissas e conclusões mais gerais, tal como pude compreendê-las. Ora: o subtítulo do livro promete desenvolver certas “arqueologias do sofrimento psíquico”, a partir da “análise minuciosa de categorias clínicas mobilizadas para dar conta de patologias sociais”, e também de “categorias sociais construídas para descrever modalidades de sofrimento social”.
O aparato conceitual
Não estamos diante de “arqueologias” ao estilo dos primeiros trabalhos de Michel Foucault — caso em que o volume já impressionante de fontes consultadas precisaria multiplicar-se ainda mais, e com um enquadramento um pouco diferente —, mas do que poderíamos denominar uma exposição de determinadas “linhagens” conceituais, a cuja escrita a preocupação com o processo social e a história está pressuposta — ou justaposta — em medida desigual ao longo do livro.
A permeabilidade efetiva da prosa à história varia conforme o caso e o capítulo: ora temos a descrição simples do sentido que foi dado a determinadas categorias em um momento, depois em outro, e ainda em outro; em outras porções, o nexo entre certas formas gerais de nosografia e os processos sociais subjacentes à sua gênese está plenamente explicitado, mas sem uma atenção específica ao sentido que se dá a tais ou quais termos.
Ainda em outras ocasiões, damos um salto ao evento singular, seja na apresentação (ou revisão) do caso clínico, seja na reflexão acerca de determinados acontecimentos históricos. Eventualmente encontramos casos mistos entre essas formas gerais do argumento, sem que se possa dizer que “o valor histórico conjuntural do objeto em sua relação com os outros objetos” (p. 236) — como promete um dos capítulos — esteja esclarecido nos mesmos termos em toda parte.
Como, de um lado, a discussão dos fundamentos teóricos da pesquisa está mais concentrada em uns capítulos do que em outros; e, de outro, o método de exposição não é sempre consequente em mesmo grau com as premissas da pesquisa, o livro é mais forte em seu conjunto do que nas parcelas de que se compõe. O leitor que tem em mente as categorias mais gerais apresentadas, sobretudo, na introdução, no primeiro capítulo e no epílogo, pode preencher a exposição dos capítulos de um sentido que a escrita, ela mesma, nem sempre garante. Isso tudo, entretanto, são prejuízos formais — e compreensíveis, quando a redação envolve um número tão grande de pessoas.
Do ponto de vista do conteúdo, as alusões repetidas às categorias centrais que organizam a argumento, bem como a orientação comum de suas conclusões, garantem-lhe uma coerência real, certamente mais do que nominal: à parte alguns casos singulares, o texto é bem-sucedido em apresentar suas “arqueologias” (ou “linhagens”) a partir de uma orientação clínica, sociológica e política consistente.
Do ponto de vista do pensamento clínico e social, Patologias do social representa a continuação de ao menos três grandes lutas teóricas: o conflito entre concepções organicistas e psicodinâmicas do sofrimento; a luta entre reivindicações totalizantes e não totalizantes do saber; e também o conflito entre duas formas distintas de referir teoria social e norma, que podemos discriminar, um tanto insatisfatoriamente, como “positiva” e “negativa”.
Naturalmente, não é verdadeiro que esses aspectos apareçam sempre estritamente apartados uns dos outros na história do pensamento: em geral, mesmo as posturas mais rigidamente organicistas têm de se defrontar com o mundo do sentido, ainda que apenas para reduzi-lo a causas incompreensíveis, e também aqueles que reivindicam a compreensibilidade do sofrimento psíquico enfrentam a tarefa de dar um lugar ao elemento orgânico em suas exposições.
Disso o próprio livro se mostra consciente, e dá-nos bons exemplos históricos — por exemplo, ao rememorar a relação inicial entre psicanálise e psiquiatria, distinta da que predomina hoje em dia (cf. p. 264). O mesmo vale para os aspectos de generalização e particularização, de “afirmação”, “negação” e “posição” na construção (lógica, psicológica, política) das obras, que podem combinar-se, subordinar-se, recalcar-se de modos variados. Veremos em que medida passagens singulares do texto contradizem ou formam compromissos entre essas denominações.
Ao nível da generalidade, entretanto, o partido do livro é explícito e unívoco: ele pretende exercitar uma “ontologia do negativo” (cf. a orelha), e dirige-se com uma firme profissão de fé psicodinâmica contra o organicismo latente às formas atualmente hegemônicas, pretensamente a-teóricas, do saber psiquiátrico.
Como oponentes contemporâneos recorrentes nos vários capítulos, temos o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (o DSM) — representante tanto daquele organicismo latente quanto de uma “psicopatologia total”, por oposição à “psicopatologia não-toda” (p. 317) que o livro advoga —; teorias sociais que os autores e autoras julgam vulgarizar o sentido das categorias estudadas, como Christopher Lasch e Richard Sennett; e Axel Honneth, de quem não se afirma expressamente que tome o partido do “positivo” contra o “negativo”, mas que — por prender-se a “modelos individuais de realização de ‘si’” (p. 21) indissociavelmente ligados a determinados “processos de disciplina” (p. 22), e portanto às formas de sofrimento correspondentes — acaba por chegar a uma “versão bastante desinflacionada de crítica imanente com baixo potencial de transformação estrutural de realidades sociais” (p. 24).
Com que armas, pois, pretende o livro desdobrar sua luta contra esses, e tantos outros adversários? — Tomando de empréstimo uma imagem constante no primeiro capítulo, podemos dizer que o argumento estrutura-se num “modelo bicêntrico” (p. 50), tendo por núcleos centrais as obras de Jacques Lacan (sobretudo do ponto de vista categorial) e Michel Foucault (sobretudo do ponto de vista do método reivindicado).
Não são menos importantes, de certo modo, os pensamentos de Theodor Adorno, Gilles Deleuze, Félix Guattari (sobretudo filosoficamente) — e, como uma espécie de mediador universal, o de Sigmund Freud, referência comum a todos os nomes já citados. Sem uma dialética negativa como a de Adorno, com sua atenção ao singular e ao não-idêntico; sem um conceito de esquizofrenia como o de Deleuze, dificilmente haveria o estímulo e o espírito — a “perspectiva de leitura” (cf. orelha) — que organiza a apropriação dos demais repertórios conceituais.
Caso se leve em conta apenas as categorias expressamente necessárias para produzir sentido da leitura, entretanto, são os procedimentos arqueológico e genealógico de Foucault que estruturam — pelo menos nominalmente — o processo da investigação e da exposição, e é o ensino de Lacan (acompanhado de sua interpretação de Freud) que oferece o conteúdo contra o qual outras psicanálises, psicologias e psiquiatrias são preferencialmente mensuradas.
Em Patologias do social, de todo modo, filiação e lealdade teóricas importam menos do que a disposição a pôr em diálogo perspectivas teóricas diferentes. Mais até do que o método expressamente professado, o que dá unidade ao texto é a conduta, o intuito com que se escreve. Temos aí, condensados num só aspecto, um dos méritos maiores da obra, bem como uma de suas deficiências. O esforço de confronto com uma pluralidade de tradições é notável, e faz-se num espírito genuíno de abertura e disposição à síntese — aliás, bem-sucedida, em minha opinião, sempre que de fato acontece.
Patologias do social tampouco está disposto a deixar de lado as contribuições, mesmo daquelas vertentes de pensamento mais contrárias à sua própria, sem examiná-las abertamente. Vemos análises ponderadas de Freud, Lacan, Adorno, Horkheimer, Deleuze, mas também de Heinz Kohut, Melanie Klein, Émile Durkheim, Carl Jung, Lasch, e uma variedade de nomes contemporâneos, que vão de Judith Butler a Mario Perniola, de Giorgio Agamben a Claude Lefort, e encontram recepção ao menos moderadamente amigável no miolo do texto.
Em certo número de casos, entretanto, as conclusões dos capítulos não sorvem as consequências de seu desenvolvimento. Não há sempre uma relação “crítica” plena com o movimento histórico das categorias examinadas — no sentido de uma remissão explícita de suas limitações e potencialidades a tais ou quais condições de origem, de uma apropriação ou reformulação consciente de seu conteúdo. Sobretudo quando se trata de examinar os casos e eventos singulares a que o livro remete, a tendência é a de pressupor, sem mais, o partido teórico e político dos autores e autoras, sem explicitar sua relação à variedade de posições distintas que foram apresentadas anteriormente.
Naturalmente, toda obra deverá partir de determinados pressupostos; mas, em um texto que pretende remeter as formas da conceituação clínica às suas condições sociais, o preço desse isolamento parcial entre pressuposto e objeto é duplo: primeiro, protege as teorias que embasam o argumento de uma extensão reflexiva de seu método a si própria, não obstante o reconhecimento formal, em algumas passagens mais cândidas, de que também a psicanálise faz parte da disputa mais ampla entre regimes de racionalidade diagnóstica distintas (cf. p. 329); depois, acaba por produzir um empuxo — certamente não realizado de todo, mas presente como tendência secundária — ao que poderíamos denominar um “retorno do naturalismo”, em detrimento do naturalismo realista ingênuo contra o qual a perspectiva “nominalista dinâmica” (cf. p. 12) do livro polemiza.
Os pontos em que acontece esse descolamento entre teoria e método, de um lado, e objeto e forma de exposição, de outro, têm consequências também do ponto de vista dos usos do livro, tanto para o público leigo quanto para o de especialistas e estudiosos. A leitora e o leitor habituados a temas de psicanálise, psiquiatria e teoria social encontrarão uma fonte interessante e rica em material para a história das categorias que o texto aborda: anomia, narcisismo, fetichismo, esquizofrenia, paranoia, histeria. Os capítulos sobre essas categorias vêm acompanhados de outros, sobre as formas de escrever e conceber o caso clínico, sobre o corpo como lugar de sofrimento, e sobre os condicionantes e corolários (sociais e científicos) do livro.
Duas características complementares enriquecem o livro desse ponto de vista: em primeiro lugar, o recurso a fontes psiquiátricas historicamente mais distantes, de menor circulação na formação brasileira, como as obras de Bleuler, Kretschmer, Pinel, Jaspers, Kraepelin e outros (se bem que nem sempre a partir do texto original). Em seguida, o recurso a outras pesquisas contemporâneas sobre os assuntos tratados — textos publicados, digamos, nos últimos 30 anos —, nem sempre conhecidas do grande público.
Tomadas conjuntamente, essas duas qualidades contribuem para fazer uma imagem mais completa tanto do desenvolvimento da psiquiatria quanto da psicanálise, e também para indicar as alternativas que têm sido exploradas contemporaneamente. Abstraindo de problemas de método, a prosa é geralmente lúcida e — dentro de meus conhecimentos — adequada às noções discutidas. Nas passagens em que o estilo retrocede a uma forma mais obscura, entretanto, as dificuldades na relação entre pressuposto e objeto de análise ficam mais sensíveis. Nem sempre o texto garante uma elucidação suficiente das categorias que ele mesmo reivindica. Algum conhecimento prévio, sobretudo de Lacan, é desejável na maior parte dos casos, e em alguns deles, indispensável.
Nas piores passagens, o leitor poderá ter a impressão de que o inconsciente se estrutura como linguagem, mas nem sempre a redação científica se estrutura como linguagem. No todo, entretanto, o intuito de esclarecimento pesa mais do que os problemas de estilo, e o texto serve — ora como boa introdução, ora como boa continuação aos conhecimentos sobre os assuntos de que trata. Para além desse uso como fonte na história das categorias clínicas, o livro também dispõe de um interessante arsenal filosófico e científico para tratar, seja da conceituação geral da relação entre sofrimento e sociedade, seja de aspectos específicos seus — formas de nosografia e sintomatologia, formas de casuística, modalidades de sofrimento. Quer dizer: elementos para uma continuação das pesquisas que foram realizadas até então estão desenvolvidos ao longo do livro, que não pretende apenas expor os resultados obtidos até o momento de sua redação, mas também apontar “o caminho a ser trilhado para a consolidação de modelos de crítica social à altura dos desafios do presente” (p. 29).
Uma parte dos problemas que apontei anteriormente pode ser mitigada se lermos assim o livro, mais como um ponto de partida ou como uma estação intermediária do que como um ponto de chegada definitivo. De fato, o texto não reivindica senão “partir” dos usos já conhecidos de categorias clínicas em teoria social para “avaliá-los, compreender suas estratégias e seus impactos” (p. 26).
Se, em matéria de método e teoria, fica deslocada para o leitor, em alguns casos, a tarefa de relacionar aquilo que a exposição apenas justapõe (teoria contra teoria, categoria clínica contra processo social…), há também nisso certa forma de generosidade, tal que a exposição prefere conservar, como uma parte de um repertório lato, os instrumentos que ela porventura poderá retomar frente a outros objetos e circunstâncias, em vez de descartá-los sumariamente.
Para um livro que valoriza tanto a indeterminação da conduta humana, não será talvez demérito seu que deixe indeterminada, em certo número de casos, sua relação aos corpos de pensamento que estuda. A leitora e o leitor — sobretudo quando já previamente familiarizados com os grandes temas do livro — encontram nisso um espaço e ponto de partida para formular suas próprias impressões, e também um estímulo a continuar acompanhando, na produção individual das autoras e autores do volume, as fusões particulares entre os elementos que estão, aqui, analisados e dispostos uns aos lados dos outros, mas ainda não reunidos e sintetizados.
A substância do argumento
Considerados os aspectos formais do livro, passemos agora à substância de seu argumento. Como ponto de partida, temos a ideia de que a base real dos vínculos sociais encontra-se, nem tanto nas normas (explícitas ou implícitas) que a sociedade erige e procura inculcar em seus membros, mas nos afetos que ela reproduz e põe em circulação preferencialmente (p. 8, 26-7). Só que esses afetos remetem a determinados modos de interpretação da experiência, eles próprios “normativos”: são mobilizados a partir de discursos determinados, cuja produção encontra-se no entrecruzamento de uma série de instituições (ou campos), com seus respectivos “modos de reprodução da vida” (p. 11, 26, 236).
Resumindo as etapas desse raciocínio, temos a noção de modos de subjetivação — de inspiração foucaultiana, mas enriquecida ocasionalmente por argumentos de outras matrizes. Sãoestruturas de linguagem segundo as quais o sujeito põe-se como objeto de determinados saberes e poderes, e adquirindo assim seu caráter de “sujeito” propriamente — ou seja, as peculiaridades próprias a seu modo de pensar e desejar. A experiência do sujeito está então “organizada” e “constituída” por determinadas categorias e os respectivos jogos de verdade (cf. p. 36, 44-6, 275), com suas regras de validação e falseamento do que se pensa e faz.
O que aparece na ponta visível dos singulares, com seus modos de agir e experimentar a vida — e mesmo o que é para eles é “invisível” (isto é, inconsciente) — reconduz, portanto, a um processo mais abstrato de indução dessas práticas e experiências, tendo em certas configurações específicas da linguagem um de seus instrumentos maiores, e nas instituições (ou “campos”), o seu suporte objetivo mais visível.
Em alguns pontos do texto, a subjetivação aparece como fruto do entrecruzamento entre desejo, linguagem e trabalho (cf. p. 235-6). A tendência dominante no livro, entretanto, é a de deixar de lado o “trabalho”, dedicando-se mais minuciosamente à relação entre os outros dois termos. É claro que a revisão de algumas das categorias discutidas ao longo da obra incorpora reflexões de tais ou quais autores sobre o mundo do trabalho, e mesmo sobre a troca e o modo de produção capitalista em termos mais amplos. Sobretudo quando Marx volta a ser tematizado em alguns capítulos, o livro mostra uma permeabilidade maior ao seu estilo de raciocínio: categorias como a de “reprodução material da vida” (p. 10) não estão ausentes em absoluto.
Como, entretanto, os elos centrais que fazem a passagem dos “afetos” e da “experiência” às “instituições” e práticas continuam sendo as “estruturas de linguagem”, a inclinação mais natural do texto é apresentar as “disposições de conduta” (p. 26) como fruto da palavra, e não a palavra como fruto da conduta. Isso tem o benefício pelo menos heurístico de dar um sentido mais do que puramente descritivo às “linhagens” de categorias que o livro vai perfilando, poupando ao mesmo tempo os autores (e leitores) de uma extensão ad infinitum do trabalho de revisão histórica.
De outra parte, o maior relevo da palavra em relação ao ato, por assim dizer, abre alas para que ocasionalmente o ato fique esquecido, ou subentenda-se apenas como instância e atualização do discurso. Mas o mundo do ato é que poderia representar, por comparação à abstração da linguagem, a possibilidade de reencontrar a riqueza concreta das coisas singulares e da experiência em curso. Ele poderia ao menos servir como lembrete de que isso não se perdesse de vista. Daí a tendência a conservar a “história” como um pressuposto que não colore sempre a prosa, bem como algumas consequências para a problemática central do livro — a relação entre “determinação” e “indeterminação” subjetiva — que discutiremos mais adiante.
Pensar naqueles termos conduz autoras e autores a uma formulação bastante ampla, que permite enquadrar a literatura científica e filosófica estudada — e especialmente as categorias tematizadas no livro — em termos de sua “função social” (p. 56): se a subjetivação acontece na relação do sujeito a determinados discursos e a formas de saber respectivas, com suas regras para decidir o que é verdadeiro e o que é falso, então é possível remeter o efeito sobre o sujeito a grandes regimes de racionalidade (cf. p. 318) — e, particularmente no caso dos saberes médicos, a certas gramáticas sociais do sofrimento, tais que os afetos, expectativas, experiências em geral, sejam compreendidos de tal ou qual modo, com tais ou quais possibilidades de legitimação (p. 9, 46).
Ora: esses regimes de racionalidade produzirão uma série de categorias — dentre as quais aquelas que interessam ao livro — que estão imbuídas dos “ideais culturais” (p. 309), dos “valores” (p. 22) de uma determinada sociedade ou instituição.
Mas, em Patologias do social, “toda assunção normativa” é “necessariamente produtora de sofrimento” (p. 8-9). Assim, o “trabalho coletivo da linguagem” (p. 37) com o real está longe de ser um processo indiferente, mas aparece como parte essencial de determinados “processos disciplinares” (p. 9). Aí, o sujeito, expondo-se ao conteúdo normativo encapsulado nos discursos, a um só tempo adentra determinados regimes de sofrimento (cf. p. 308) e encontra o repertório de categorias a partir dos quais vai tecer as “narrativas de sofrimento” (p. 10) com as quais procura compreender-se a si mesmo ou autonomear-se (cf. p. 45). Dessa autonomeação podem advir inclusive “identidades sociais” orientadas pelo “sintoma” — que pode servir a processos de “identificação”, mas não de “reconhecimento”, de acordo com o livro (p. 9, 45, 328, 333).
Patologias do social demonstra com bastante clareza como as “formas […] de nomeação do sofrimento” pressupostas a essas narrativas são formas “históricas” (p. 342). Mesmo ali onde, segundo a forma, o texto não chega a explicitar a conexão de sentido entre a transformação das categorias clínicas e a experiência histórica a elas pressuposta, o conhecimento das sintomatologias e nosografias alternativas estudadas pelos autores já contribui muito para informar o leitor do quão suscetíveis a mudança são as formas de sofrimento — bem como as formas respectivas de sua compreensão.
A história do sofrimento aparece, em suma, como a história das respostas (simbólicas e vivenciais) que o humano vai dando às circunstâncias que enfrenta em cada época, cultura, local (cf. p. 323).
O texto tem também um manejo bastante sofisticado da maneira como essas mudanças conjugam-se, eventualmente, com continuidades e copertinências entre as várias épocas: admite tanto a possibilidade da transversalidade histórica (cf. p. 323) das categorias clínicas e sociais quanto a de sua derrocada ou transformação essencial (cf. p. 35, 306, 338-9).
Outro ponto forte do argumento é sua sensibilidade para a diferenciação entre o sofrimento em geral e duas de suas modalidades específicas de expressão — a “patologia”, ou o “sofrimento socialmente considerado excessivo” (p. 9), e o “mal-estar”, ou o sofrimento “que não pode ser simbolizado por um determinado modo de existência” (p. 328), com suas variedades históricas de delimitação e diferenciação mútua (cf. p. 328). Isso permite um controle mais rigoroso da literatura estudada e serve como uma garantia — pelo menos formal — de que a interpretação não se restrinja ao que essa literatura apresenta imediatamente, mas pressuponha sempre que, ali onde determinado discurso reúne certos fenômenos, é possível voltar a separá-los; ali, onde uma época aponta a normalidade, outra pode apontar a patologia. Ao fim do argumento, extraímos a figura das sociedades como “sistemas produtores e gestores de patologias” (p. 8).
“Produtores de patologias” — pois a própria existência de determinados discursos que distinguem o sofrimento aceitável do “excessivo” é um momento de sua existência e reprodução efetiva. Desse ponto de vista, nenhuma classe nosográfica pode ser entendida em termos realistas, como descoberta de uma espécie natural, mas a própria verificabilidade de tais ou quais sintomas na prática clínica tem de ser pensada — pelo menos em parte — como um efeito do saber que informa essa clínica, com sua pretensão (tácita ou explícita) de “reorientação de ações e condutas”, “modificações […] dos sujeitos” (p. 12, 43).
“Gestores de patologias” — pois a esses discursos concatenam-se certas “práticas de intenção transformativa” (p. 321), de cura, tratamento e intervenção, cujas formas hegemônicas entram naquele circuito de processos disciplinares a reforçar as dependências do sujeito para com certas instituições — certas formas de viver e de estar na vida, pois. Daí a conclusão derradeira: as “patologias” são todas necessariamente “sociais”: representam “modos de participação social” (p. 10, 12) induzidos e efetivados no sujeito a partir dos discursos respectivos.
É esta a premissa de que deriva o título da obra: as “patologias do social” entendem-se — por sugestão do próprio texto —, ora como patologias oriundas do excesso de socialização (pressupondo o processo de subjetivação segundo as regras que resumimos anteriormente), ora como patologias desde o social — quer dizer, como resultado de “contradições não reconhecidas nos laços sociais” (p. 324).
Essa segunda formulação aponta para algumas das concepções de “crítica” que o livro rechaça, como a de Honneth; mas também seria possível lê-la como um retorno, um pouquinho enfraquecido, daquela dimensão em que a prática não aparece (apenas) como efeito do discurso, mas também como constitutiva dele, e que o procedimento “arqueológico” tende a omitir.
Nem sempre o texto conserva consciência firme de suas próprias premissas. O uso mais ou menos indiferente das expressões “patologia social” e “patologia do social” (p. ex., p. 185) serve como um sintoma sutil dessa vacilação teórica.
Se, em geral, o texto luta contra a ideia de que seria possível falar de uma “sociedade patológica” (p. 327) ou adoecida, ao modo das antigas analogias funcionalistas entre corpo social e organismo, não deixa de aparecer vez por outra a ideia de que uma “forma de vida” determinada — isto é, por referência ao que viemos discutindo: um efeito, dentre outras coisas, das estruturas de linguagem — tenha, em si mesma, um “caráter patológico” (p. 282).
A individualidade moderna
Veremos que, sobretudo, a “individualidade moderna” é acusada várias vezes de ter uma “natureza patológica” (p. 26). Ora: fazer recurso a esse tipo de denominação não tem o efeito “crítico” pretendido se o vocabulário do normal e do patológico não recupera, pelo menos em parte, um bocadinho de pretensão “realista”. Como expressão mais visível disso, teremos, sobretudo em dois pontos da discussão, não a convicção de que toda “patologia” — sendo efeito e objeto de determinados saberes etc. — é, em si mesma, enquanto ente conhecível e reconhecível, “social”, mas a dúvida acerca do enquadramento que se deve dar a tais ou quais categorias clínicas.
“[S]eria o fetichismo uma patologia social?” (ou “do social”?) (p. 185, 229), pergunta-se um dos capítulos. “[S]eria o narcisismo uma categoria válida para pensar em patologias do social?” (p. 180), pergunta-se outro. Se a esquizofrenia é “uma das patologias do social” (p. 235), não haverá um “grupo das patologias sociais” (p. 142), por oposição a outros, de patologias porventura “não-sociais”?
Formulações como essas fazem enfraquecer em parte a radicalidade com que aquele “nominalismo dinâmico” queria tirar dos modos de sofrimento toda feição natural. De fato, o texto é, em geral, muito bem-sucedido em retirar da natureza (isto é, do organismo considerado isoladamente) a determinação essencial das formas de sofrimento que ele aborda. Mas ele o faz ao custo ocasional de ter de emprestar de volta o peso “normativo” da “patologia” concebida em termos naturalistas, sempre que transparece sua predileção por umas “formas de vida” dentre outras.
Independentemente de como se interpretem as questões que transcrevi acima — com ênfase sobre o problema de saber se “são ou não patologias”, se são patologias “sociais ou não-sociais” —, elas recaem, segundo a forma e o espírito, no mesmo tipo de problema que o livro acusa porventura em seus oponentes na psiquiatria: a tendência a enredar-se em problemas de classificação, de contraste entre determinados critérios formais e o caso realmente observado.
De livre confissão, um dos capítulos a que aludi termina justamente redescobrindo a noção de que, para afirmar positivamente se tal fenômeno seria ou não uma “patologia do social”, seria preciso dar conta das “dificuldades acerca dos próprios critérios que definiriam uma patologia” (p. 230) — dificuldades que, em outra passagem, a obra reconhece como inevitáveis a qualquer diagnóstica (cf. epílogo), mas que são certamente desconfortáveis (embora não insuperáveis) para um texto que tem, na desconfiança frente aos “critérios normativos” (p. 230) em geral, um de seus órgãos vitais.
Essa mesma contradição é expressa de modo um pouco diferente quando, em algumas passagens, o texto recai em topoi argumentativos que ele mesmo trata — se não com total rejeição, ao menos com hesitação e reticência. Um dos trechos mais sugestivos do livro aborda o que seriam quatro estratégias de síntese teórica entre os aspectos subjetivos e sociais — a analogia funcional, a normalização, a ancoragem e a unidade (cf. p. 160-3).
Se, da “analogia funcional” entre sociedade e indivíduo, diz-se que não é problemática per se, mas que requer cuidados muito especiais (pois a semelhança formal não significa necessariamente consubstancialidade — cf. p. 161), não demoramos a encontrar no mesmo capítulo — bem como em outros pontos — uma explicação da ideologia nos anos da ditadura militar brasileira em que “a sociedade age como se devesse excluir […] toda e qualquer forma de ameaça” (p. 176), por comparação (dificilmente diferenciável de uma “analogia” simples) com o procedimento identitarista da paranoia individual.
Se desvios pequeninos como esses não dão o tom geral do texto — e muito menos invalidam ou inutilizam a discussão que circunscrevem —, tampouco podemos deixar de nos perguntar por que é que chegam a constar na redação final. Talvez em parte isso seja devido ao número imenso de mãos que foram postas à obra para redigir o livro, o que dificulta naturalmente uma conciliação absoluta de todas as partes que se escreveram. Sinto-me inclinado, entretanto, a ver nisso mais do que uma consequência da forma de produção do texto, pensando que deve expressar-se aí também uma dificuldade própria ao enquadramento teórico que o livro privilegia.
Se, de fato, por livre admissão sua, toda categoria clínica (ou que pretende descrever um sofrimento social) — e, sobretudo, uma categoria como a do “patológico” — contém juízos de valor determinados, apontando para as formas de vida correspondentes, então também aqui a insistência em uma categoria como a de “patologia do social” — ainda que considerando todas as suas transmutações com relação às acepções anteriores do termo — precisa levantar a bandeira de ao menos um tipo de experiência, ao menos uma “forma de vida” contra outras já existentes.
E ela tem de valorar os aspectos dessa forma de vida antecipada, ainda que ela não se pretenda descrever exaustivamente, nem “prescrever-se” a ninguém, nem tampouco delinear-se senão por “negação” daquilo que, no aqui e agora, dá as condições do sofrimento já conhecido. Mas “valor” e disciplina, “ideal” e imperativo, não se distinguem com facilidade no texto.
Patologias do social tende a experimentar todas as expressões afirmativas de “normas” — ou ao menos certo conjunto delas — como um risco de recaída na submissão, no conformismo, no engodo: o texto quer expressamente escapar de um tratamento orientado por “ideais normativos” (p. 77). De fato, todos esses são riscos reais sempre que tratamos de “ideais”. Mas então não temos espaço para distinguir com clareza o “ideal” propriamente dito, com seu comportamento prescritivo, impositivo, do “ideal” enquanto expressão e antecipação do que — para falar um vocabulário próximo ao do próprio livro — estaria porventura mais próximo do desejo.
Uma teoria crítica pode abrir mão da primeira acepção, talvez, mas não pode abrir mão da segunda, se não quiser recair em uma determinação puramente abstrata do que significa “negar” o presente — por via de “recusa” (p. 287) simples, ou pelo “impulso” de “subtrair-se” aos “modos atuais de determinação” (cf. p. 25) da subjetividade e da experiência. Que essa recusa ou esse impulso existam, pode dar-se na tentativa simples de negar o sofrimento presente; mas que elas se direcionem a algo de mais específico e constituam de fato um “desafio levantado” (p. 25) contra as condições que originam o sofrimento, revestindo-se da feição de uma negação “determinada”, exige algo mais.
Na medida em que persiste a dificuldade de diferenciar, no “ideal”, o que é fruto do desejo e o que é fruto da disciplina, Patologias do social tem de evitar discutir a forma de experiência (ou de antecipação da experiência possível) que serve de base para a sua contraposição com os modos de vida hoje dominantes.
Veremos que isso não acontece absolutamente, e temos bons indícios daquilo que o livro, por assim dizer, gostaria de poder viver. Mas é um “recalque” suficientemente extenso para que aconteçam aqueles descompassos entre os pressupostos do livro — a desconfiança dos valores, a luta contra o realismo nosográfico — e o seu procedimento concreto, que acaba reincorporando — se não os valores como tais, pelo menos um efeito de valoração, ou o seu modo de expressão teórico: os “conceitos […] classificatórios”, que em certa parte o texto quer diferenciar de seus preferidos “conceitos psicodinâmicos” (p. 294-5). Isso nos conduz aos dois grupos principais de argumentos que resta considerar: a relação entre organicismo e psicodinâmica, e a relação entre afirmação e negação na crítica.
Contra a tendência predominante na psiquiatria
Os autores e autoras extraem do aparato conceitual que expusemos uma base bastante firme para enfrentar a tendência hoje dominante da psiquiatria, de base organicista, cuja representação literária mais conhecida encontra-se no já mencionado DSM. Se há determinados “regimes de racionalidade”, com efeitos determinados sobre o sujeito; se os discursos pertinentes a esses regimes participam dos modos de narrar o sofrimento e autonomear-se — então é porque há algo como uma série de racionalidades diagnósticas (cf. p. 318), capazes de identificar, nomear, legitimar e deslegitimar, reconhecer e sancionar determinados sofrimentos e patologias — e, com elas, determinadas formas de vida (cf. p. 36, 40, 235, 320, 328).
Dois órgãos vitais de qualquer diagnóstica são o tipo clínico e o caso clínico, bem como uma semiologia que permita identificar e compreender o sintoma. Mas o texto bem nota que, em certa “indústria do bem-estar” (p. 41) consolidada nas últimas décadas, a ênfase recai cada vez menos sobre o caso clínico — isto é, sobre a narrativa de um sofrimento singular, emaranhado à vida social — e cada vez mais sobre o tipo clínico, que por sua própria natureza configura uma generalização a partir do que (por suposto) foi uma série de casos observados (cf. p. 307, 319, 335).
A supressão da casuística corresponde a uma tendência mais ampla, também corretamente avaliada pelo livro, de procurar chegar a uma forma de conhecimento nosográfico que seja totalizante, exaustiva e a-teórica — ou seja, que abre mão de compreender, ou mesmo de encontrar as causas das patologias, para remetê-las ao procedimento que, em outra passagem, o livro descreve como “normalização” estatística. Sem a referência à singularidade, desaparece também aquilo que é tão caro aos autores, e que nós quisemos valorizar mais acima: a compreensão de que o sofrimento — e particularmente o sofrimento “patológico” — é também fenômeno histórico, socialmente condicionado (cf. p. 318-9).
A crítica desse modelo é muito bem-vinda, sobretudo por conta de um fenômeno de que o texto também está bastante consciente: se o saber médico desdobra-se em uma série de discursos que acessam o sujeito e passam a participar de suas formas de agir e pensar, então é compreensível que o discurso psiquiátrico de tipo a-histórico tenha se generalizado também entre o público “leigo”, que passa a compreender-se e agir a partir da diagnose psiquiátrica.
O livro apresenta uma porção de casos clínicos que levam essa forma de narrativa aos ouvidos do psicanalista; mas o leitor e a leitora não terão dificuldade em tomar contato com ocorrências similares no dia a dia e poderão assim convencer-se de que levantar resistência e consciência crítica contra a naturalização ingênua do sofrimento é uma tarefa social importante hoje em dia.
Este é um dentre outros motivos que tornam a obra relevante também para o público não especializado: pois ela chama a atenção para o elemento de desresponsabilização (cf. p. 45) pelo sofrimento que certas diagnósticas implicam, já que suprime a conexão de sentido entre o sintoma, o sofrimento e suas causas — ou seja, suprime a relação propriamente subjetiva com o sofrer e, com ela, também a “potencialidade enunciativa” em que a psicanálise gostaria de se apoiar para tratar seus analisandos (p. 43, 45).
Igualmente bem-vinda é a proposta que dá fecho ao livro, de uma “psicopatologia não-toda” (p. 222), por oposição à “psicopatologia da totalidade”, que tem no DSM um de seus casos. Em realidade, o que está em jogo não é necessariamente a pretensão de conceber um manual como esse em termos “finais”, “totais”: o procedimento classificatório pode interpretar-se a si mesmo como infinito e suscetível à “correção” empírica.
Mas existe de fato uma diferença fundamental de forma lógica entre o que um texto como o DSM propõe e o tipo de diagnóstica que Patologias do social defende. Se o interesse está em recuperar a possibilidade de acessar o caso e o sofrimento singulares enquanto singulares, não pode haver uma estrutura categorial que reduz sem mais o caso (ou mesmo determinadas síndromes) a particularizações, especificações, de um quadro mais geral; que trata o geral como hierarquicamente superior ao particular e ao singular, pois.
O texto é cuidadoso também em identificar a possibilidade de que essa tendência se infiltre no próprio manejo clínico da psicanálise lacaniana — na hierarquia que leva das grandes estruturas clínicas aos tipos clínicos, depois a determinados subtipos, e ainda aos sintomas (cf. p. 333). O esforço principal do texto, nesse ponto, é extrair, sobretudo da herança do último ensino de Lacan, alternativas que — sem que se proponham como excludentes da clínica propriamente “estrutural” — deem conta de aproximar-se de um modelo mais receptivo à singularidade e que enfraqueçam a tendência apontada por alguns críticos tanto ao “neurótico-centrismo” quanto ao “androcentrismo” (p. 334, 342) na diagnose. Visa-se assim atingir um modelo que inclua indiferentemente neuroses, psicoses e perversões, e meça de idêntico modo as economias de gozo distintas que deparamos na clínica e na vida cotidiana.
Esse esforço de deslocamento da forma lógica da diagnóstica — da ênfase sobre o geral para a ênfase sobre o singular — vem acompanhado de uma segunda proposta, agora ligada mais diretamente ao emprego das categorias clínicas no trabalho com teoria social. É que o texto quer evitar o que ele reconhece, segundo uma expressão muito espirituosa, como uma “crítica de juizado de pequenas causas” (p. 321), limitada a contrastar o caso empírico com uma norma (explícita ou implícita) e a tirar daí a acusação de que, afinal, as coisas não são tal como deveriam ser.
Há algo de consubstancial entre o procedimento “totalizante” ingênuo, que confronta o caso observado com uma série de critérios antepostos, para ver se uma coisa corresponde à outra, e o procedimento “normativo” ingênuo, que descobre a cada vez que as coisas não correspondem a seus critérios, para em seguida “exigir” a sua “realização” (p. 321). A diferença está apenas em que o sinal se inverte de um caso a outro: o psiquiatra mensura aquilo que, de seu ponto de vista, não deveria ser, enquanto o teórico crítico aponta para aquilo que, em seu juízo, deveria ser.
Nesse sentido, o gesto de desconfiança com um dos modelos é o mesmo que leva à crítica do outro e reúne-se num mesmo complexo de determinações, que nós já identificamos sob a figura da “negatividade”.
Patologias do social pensa que há uma “negatividade inerente a todo sujeito” (p. 95), que carrega dentro de si certa falta constitutiva, e foi ele próprio “constituído” em sua relação com o indeterminado. Está aí a base subjetiva suposta ao que a teoria deverá expressar em uma série de comportamentos particulares.
Em primeiro lugar, supondo-se que o cimento social efetivo não sejam de fato as “normas”, mas os circuitos de afetos — então é a eles que deverá dirigir-se a crítica, e não aos ideais e seu cumprimento (p. 8). O sofrimento deverá ser visto como evidência dos efeitos da ordem social sobre a economia psíquica, como ponto de partida para analisar as forças reais de laço social, e não como marca de um déficit em relação aos ideais imaginados (p. 26, 95).
Dever-se-á compreender que “utopias políticas e visões totalizantes de mundo” têm “efeitos deletérios para a vida humana” (p. 51), evitando-se com isso toda discussão propriamente prescritiva, que poderia recair em uma “moralização” (p. 226) indesejada, e assim dissuadir o movimento de negação de seu impulso mais genuíno.
Essa concepção desdobra-se no que talvez seja a contribuição mais interessante do livro: sua apresentação (e tomada de partido) com relação ao que seria um metadiagnóstico “bífido” (p. 236) da modernidade, que reconhece, como fonte do sofrimento, duas formas distintas de “perda da experiência” (p. 329): de um lado, o excesso de experiências improdutivas de determinação e, de outro, o déficit de experiências produtivas de indeterminação.
Ou seja: se algumas vertentes de interpretação e crítica da modernidade reconheceram como fonte do sofrimento o que seria uma espécie de saturação de determinações sociais, outras pensaram fazer falta a possibilidade de experimentar indeterminação, desconhecimento de si. Essas duas formulações aparecem por contraste a outra classificação, também “bífida”, mas agora “não complementar” (p. 236): a diferença mais simples entre sofrimento de determinação e sofrimento de indeterminação, sem levar em conta as determinações da “produtividade ou improdutividade”, “exagero ou deficiência”.
Patologias do social costuma dar preferência à primeira concepção: a de que o que faz sofrer não é que não possamos “determinar-nos”, caminhando em direção a certos ideais de individualidade e autorrealização (cf. p. 209), mas, ao contrário, que sofremos justamente por estarmos de saída determinados demais, sem a possibilidade de uma variação ou diferenciação que concorra com o tipo de síntese egoica característica à nossa época.
Toda tentativa de continuar nessa direção — representada por valores como os de autonomia, unidade reflexiva e autenticidade (cf. p. 96) — apenas serviria para reproduzir o que está suposto à individuação egoica e, com isso, também os sofrimentos que ela acarreta (cf. p. 19).
Com isso, aqueles ideais (gerais) estariam fadados ao fracasso (cf. p. 279), e em seu lugar seria preciso procurar uma maneira de pensar e atuar que reconhecesse “múltiplos modelos individuais de realização de si” (p. 21) — singulares, portanto — e que determinassem o normal e o patológico por referência à “experiência” de cada pessoa, que teria então valor “normativo” para o seu próprio sujeito, e apenas para ele (p. 78).
Agora, é a “a-normatividade” e a “indeterminação” que têm de vir a ser “índices do humano” (p. 95): do que o texto dá seu próprio “indício” sempre que demonstra amor e interesse pelo mimetismo do inorgânico, pela relação fetichista com as coisas, e também em outros pontos análogos, que o distanciam radicalmente do que consta em algumas passagens como “humanismo” (p. ex., p. 20).
Mas o livro não deixa de fato totalmente indeterminada a sua noção de “indeterminação”, nem tampouco essa atividade “sem norma” que inspira sua devoção. Seu interesse maior, por comparação ao “juizado de causas menores” de um Honneth, estaria em “liberar a experiência da vida em sua figura insubmissa” (p. 25). E que figura é essa, pois? — Temos uma imagem preliminar dela nas “dinâmicas pré-pessoais da vida” (p. 28) — sobretudo em categorias, como a das pulsões parciais, insubordinadas ao Eu, que apontam para outra forma de economia dos prazeres (cf. p. 95, 227).
Indeterminar-se não é, então, aqui, de fato apenas “subtrair-se” à determinação, recair em uma incógnita ou esvaziamento, como indica uma passagem que já citamos, mas entrar em um outro modo de determinação do ato — um modo que é experimentado, do ponto de vista do Eu ainda vigente, como confronto (ou unidade transitória) com um fragmento: algo de parcelar, não-identitário, mas ainda em referência à identidade.
Não é apenas nominalmente que as pulsões “parciais” contrapõem-se a algo “total” (ou não-parcial): a vigência dessa totalidade — que a psicanálise de inspiração freudiana reconhece sobretudo no Eu — é o pressuposto efetivo de que elas sejam experimentadas como parciais.
A “força de indeterminação da pulsão” (p. 23) consta como indeterminante com relação a esse modo de organização conhecido, mas não como indeterminação (ou como indeterminada) “em si mesma”, por assim dizer. Do mesmo modo, o Eu aparece como “determinado” do ponto de vista de sua relativa estabilidade e unidade, quando comparado com a mobilidade dos arranjos de energia no inconsciente; mas ele próprio é (mesmo para Freud, e mesmo para Freud tal como representado em alguns dos capítulos do livro) passível de um processo próprio, que não o dá por acabado, “determinado”, de uma só vez.
Além disso, ele pode representar uma força de “indeterminação” para a pulsão: por exemplo, no próprio recalque, quando subtrai dela a possibilidade de desenvolver-se em um ato concreto, e tira com isso o instrumento que ela teria para enriquecer-se do contato com objetos reais, e mesmo com a linguagem. (A riqueza do humano, lembra-nos a Ideologia alemã de Marx e Engels, é a riqueza de suas relações, sobretudo daquelas que se desenvolvem de fato.)
Aquilo para o que estou tentando chamar a atenção é o seguinte: no fundo, “determinação” e “indeterminação” não aparecem no texto como simples marcadores do que têm uma qualidade definida ou indefinida, mais específica ou mais geral, mais diferenciada ou mais confusa. São verdadeiramente os termos portadores de uma experiência específica da vida — ou até de uma reação a ela, para falar como o próprio livro — e, com isso, estão para além da “determinação” puramente lógica com que a formalidade dos termos parece investi-los.
Se Patologias do social aponta, com razão, que a “crítica imanente” não pode prender-se às “formas atuais da vida” (p. 25) — e, com isso, que também as “normas” atualmente vigentes ou reconhecíveis não constituem base suficiente para a crítica: então tem de reconhecer também que as formas atuais do desejo não podem servir senão como ponto de partida, antecipação preliminar do que seria o seu desdobramento efetivo em condições sociais modificadas.
Não se trata, no fundo, senão de levar radicalmente a sério uma expressão encontradiça na própria a obra: se é “possível” uma “experiência” outra de “organização libidinal” (p. 227); quer dizer: se a “organização libidinal” está, não só como categoria conjectural, propriamente subjacente ao Eu, mas também como algo que se pode experimentar (seja em si mesma ou em seus reflexos) — então não podemos restringir essa experiência ao que seria porventura a sua primeira figura, a perfuração ocasional do Eu pelo que estava antes recalcado, ou mesmo a suspensão parcial da resistência.
Se nos apegamos demasiado a essa figura, escapamos certamente de um juizado de causas menores, mas corremos o risco de ingressar em uma legislação de resistências menores, à qual está sempre pressuposta a força e a vigência daquilo que se gostaria de transformar. Enquanto sentimos o cansaço de ser como somos, e enquanto apreendemos o que somos por referência àquilo de que precisamos abrir mão em favor da “norma” — então a aspiração de chegar a atingir uma nova forma de subjetividade tem de aparecer realmente como um processo imediato (ainda que árduo) de “dissolução das normas” (p. 287).
Não seria despropositado lembrar, a esse respeito, o juízo que o próprio Lacan faz, no livro sétimo do Seminário, acerca da experiência da libertinagem: por mor de sua profanação apaixonada, ela acaba reencontrando Deus ao final. Negar o Eu como forma de síntese subjetiva sem preocupar-se em desenvolver (no conceito, sim, mas sobretudo na experiência) que tipo outro de determinação imaginamos encontrar no processo subsequente não enfraquece mais a crítica do que o contraste abstrato entre ideal e realidade. Não é preciso querer prever ou prescrever nada para que essa seja uma tarefa viva para nós: ela não se encarna na figura de um cérebro despótico, mas na figura de um corpo experimentador com os pontos em que — a despeito de tudo — ainda existem flexibilidade e alteridade possíveis na rotina de cada um.
Para que isso fosse acompanhado de uma reflexão teórica correspondente, entretanto, seria recomendável levar mais adiante a dialética implícita aos termos que o livro já reconhece com brilhantismo: naquilo que, aberta ou tacitamente, a obra identifica o elemento de “determinação”, há também indeterminação; naquilo que representa a “indeterminação”, há também determinação, ou pelo menos o intuito de determinar-se. Se — para fazer jus a uma formulação do próprio texto — a experiência tem sua dialética interna (cf. p. 226), também a experiência do desdobramento do desejo em direção ao real tem de informar o horizonte de nossas possibilidades. Fixá-lo no tipo de fragmentação e alteridade parcial subentendido às passagens mais apaixonadas do texto é fixá-lo, não propriamente enquanto “negativo”, mas enquanto negado pelo “positivo”. Recuperar sua força enquanto propriamente “negativa” exigiria que déssemos conta também de reconhecer nele o que tem de afirmativo em si mesmo.
A própria obra não deixa de reconhecê-lo em uma de suas passagens mais cândidas: “impõe-se como tarefa fundamental definir com maior precisão quais tipos de experiência de indeterminação é essa que designamos como saudável ou positiva” (p. 287).
Esclarecer essa questão ajudaria, não apenas a evitar os lapsos lógicos menores que discutimos anteriormente, mas, sobretudo, orientaria pesquisadores, pesquisadoras, leitoras e leitores a uma conduta propriamente experimental com as “formas de vida” que assumimos — certamente, uma tarefa das mais relevantes para o momento político em que vivemos.
*Matheus Capovilla Romanetto é mestrando em sociologia na USP
Referência
SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian (orgs.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. São Paulo: Autêntica Editora, 2019 (https://amzn.to/45bQ6kc).