Por GILBERTO LOPES*
A história de uma rebeldia ou os estertores de uma forma política
A forma política chilena caducou em 18 de outubro de 2019, quando emergiram enormes protestos por causa de um aumento nos preços dos transportes públicos, que depois se transformaram numa verdadeira irrupção social. Foi o que me disse Fernando Atria, advogado constitucionalista, então membro da Assembleia Constituinte, eleita em maio de 2021. Naquele momento, governava pela segunda vez o empresário Sebastián Piñera, homem de enorme fortuna e líder de setores de direita menos estridentes do que os de Juan Antonio Kast.
Conversei com Fernando Atria no dia seguinte ao primeiro turno das eleições, em 21 de novembro daquele ano, em que Juan Antonio Kast ficou em primeiro lugar, com quase 28% dos votos. Gabriel Boric, em segundo lugar, alcançou pouco menos de 26%. Uma grande surpresa, depois da verdadeira rebelião de 2019, que tinha levado à convocação da Assembleia Constituinte.
As expectativas eram enormes. Diante de um resultado inesperado, todas as atenções dirigiam-se para um segundo turno incerto, no qual Gabriel Boric acabou obtendo 56% dos votos. “A direita acredita que a Constituição de 1980 ainda funciona”, disse Fernando Atria. “Acredita que, se o processo constituinte fracassar, voltaremos a viver em paz, sob essas normas constitucionais”.
Vale a pena voltar ao cenário da época que – na minha opinião – Fernando Atria ajudava a iluminar: “Não é possível voltar a uma Constituição que foi esmagada por 80% dos votos do ‘aprovo’ no plebiscito que convocou a Assembleia Constituinte. Mas é um erro pensar que cabe ao momento constituinte combater (e ganhar) todas as batalhas. Depois da nova Constituição, a política prosseguirá”.
Ele pensava então na Constituição que estava sendo elaborada (e acredito que ainda na esperança de que fosse aprovada). Mas a frase continua vigente, pensando nesta nova, cuja elaboração está apenas no começo, num cenário político diferente daquele de poucos anos atrás.
O resultado do primeiro turno das eleições presidenciais, segundo Fernando Atria, mostrava que o colapso de uma forma política, antes do surgimento de uma nova, produzia “condições de extraordinária fluidez”. “Houve uma preocupação muito maior com a insegurança, com a violência, com a incapacidade do sistema político para manter a ordem, e isso foi capitalizado pela extrema direita”. “Espero que este resultado torne a Convenção mais consciente do risco que corre. E que isso conduza… (Atria para, pensa… tinha dificuldade em encontrar as palavras…) a uma discussão constituinte mais consciente dos limites que enfrenta”.
Na opinião dele, o aspecto fundamental de uma Constituição é estabelecer o esquema em que as disputas políticas do país serão resolvidas. Construir uma forma política eficaz: é essa a tarefa da Assembleia Constituinte, garantiu Fernando Atria. “Espero que o que aconteceu no domingo (o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais) faça com que os constituintes tomem consciência disso, da necessidade de que aquilo que sair da Assembleia Constituinte seja reconhecido pela cultura chilena como uma discussão sobre a forma política de que precisa o Chile. É isso que leva ao êxito do processo constituinte”.
Como sabemos, isso não aconteceu. A proposta foi rejeitada meses depois por uma esmagadora maioria de 62% dos votos. Para Juan Antonio Kast isso era “a negação da transformação de que o Chile necessita”. Ele acredita, afirmou naquele momento, tal como o presidente Sebastián Piñera, nas fórmulas neoliberais e pensa em insistir nelas.
Referia-se à possibilidade de Juan Antonio Kast na presidência da República. Isso não aconteceu. Mas agora Kast tem em suas mãos, e nas de seus partidários, a elaboração de uma nova versão dessa constituição que deverá substituir a que teve origem no golpe de 1973 (que Juan Antonio Kast admira e defende).
Na opinião de Fernando Atria, Juan Antonio Kast e seus partidários poderiam apresentar sua proposta, caso ganhasse a presidência da República. Mas que isso representaria uma solução para os problemas do Chile, não! “Vai na direção oposta. Não é disso que o Chile precisa: leva à instabilidade, à ingovernabilidade”.
De que precisa o Chile?
Visto depois de 50 anos do golpe, parece que o Chile precisa retomar o caminho das reformas interrompido pela ditadura. A natureza polêmica da questão pode ser ilustrada por uma reflexão do jornalista Patricio Bañado, falecido recentemente e lembrado pela condução do espaço televisivo do “Não” no plebiscito de 1988, que decidiu pela não continuação do regime militar. Em dezembro passado, numa última entrevista, Patricio Bañado afirmou que nunca tinha sido um apoiador de Allende. E acrescentou: “Creio que o governo de Allende foi um dos grandes erros históricos do Chile”.
Uma frase dramática, sem dúvida. Em sua opinião, o que deveria ter acontecido era a continuação das reformas iniciadas pelo democrata-cristão Eduardo Frei, o antecessor de Allende: uma reforma agrária e a nacionalização de parte do cobre. Para ele, “se a esquerda tivesse se unido à Democracia Cristã para aprofundar essas mudanças e avançar passo a passo, não se poderia parar esse processo”.
Parece-me que a afirmação, assim formulada, se afasta da realidade política da época. Especula sobre um caminho que não estava sobre a mesa há 50 anos. Como sabemos hoje, Eduardo Frei foi uma figura importante na trama golpista, mas também foi assassinado pelos mesmos golpistas, envenenado quando começou a se distanciar de uma ditadura que já mostrava seus traços mais criminosos.
De que precisa o Chile hoje? Ou, analisando a questão de forma mais ampla, de que projeto de desenvolvimento necessita a esquerda latino-americana para avançar as reformas que desmantelem o mundo neoliberal? Um mundo que assaltou os recursos públicos e destruiu todas as redes de solidariedade social, das organizações sindicais aos fundos de pensão, passando pelos recursos naturais.
A essência do modelo neoliberal é a privatização dos recursos públicos. Allende dizia que o cobre era o salário do Chile. Ele foi além das reformas de Frei e nacionalizou-o. Com o golpe, a mineração passou para as mãos privadas (com exceção dos recursos que financiavam as forças armadas). Mas a história continua. Agora o Congresso chileno discute um aumento dos royalties da mineração e a política de exploração do lítio.
Em setembro, o golpe civil-militar fará 50 anos. Estes 50 anos de história chilena só podem ser entendidos como a luta pela recuperação desse caminho. No Chile (assim como na Argentina e em outros países), talvez nada tenha representado um melhor ataque aos recursos públicos do que a privatização do sistema de pensões. Significou a transferência de imensos recursos para pequenos grupos de interesse às custas de aposentadorias miseráveis para os contribuintes. Manuel Riesco e seu Centro de Estudios Nacionales de Desarrollo Alternativo publicaram estudos detalhados sobre o sistema (um deles, publicado em 2008, pode ser consultado aqui).
Apesar das condições favoráveis da economia chilena, que se recuperou de uma crise profunda no início dos anos 80, ao final, “a maior parte dos membros simplesmente não receberiam as aposentadorias das AFP” (como são conhecidas as entidades gestoras de pensões). “Seus fundos acumulados ao aposentar-se seriam tão magros que suas aposentadorias atingiriam valores ridículos, da ordem de 10 a 20 dólares por mês para milhões de membros, e inferiores ao mínimo de 150 dólares para dois terços da força de trabalho”, afirma Manuel Riesco.
A despeito do aspecto chave desta questão como fator de descontentamento no país, o projeto constituinte mencionava apenas generalidades quando dizia que “os idosos são titulares dos direitos estabelecidos nesta Constituição e nos tratados internacionais de direitos humanos ratificados e vigentes no Chile”. Acrescentava ainda que “têm direito a envelhecer com dignidade; a obter mensalidades do seguro social suficientes para uma vida digna”.
As várias trilhas do caminho
A luta para recuperar o caminho perdido tem muitas trilhas, rotas de rebeldia e rebeliões. A história do Chile desses anos não pode ser entendida sem acompanhar essas lutas. A luta de 2019 acabou por abalar as instituições. Mas não se caracterizou por cimentar os pilares de outras novas. Em 2007 tinha acontecido outra, a dos estudantes do ensino secundário, os “pinguins”. Repetiram-se em 2011, com os protestos contra a privatização do ensino. Foi aí que Gabriel Boric e seu grupo foram forjados.
Mas o projeto constituinte não reuniu adequadamente a força destas demandas. Como veremos, as questões centrais para retomar o rumo do país são apenas mencionadas no projeto de constituição recusado, e creio que isso foi fundamental para sua rejeição por quase dois terços dos eleitores.
Em vez de um texto com uma visão política que servisse de guarda-chuva para incorporar as diversas demandas setoriais, o texto reúne as posições de setores diversos, sem essa visão política que as articule. Coloca todos em concorrência com todos.
Duas reivindicações foram expressas com particular força neste texto: a representação paritária entre homens e mulheres nas mais diversas esferas políticas e a definição de espaços para os povos originários, especialmente os mapuches, num ambiente de renovadas tensões na Araucânia, no sul do país, onde se instalaram mais fortemente. O tratamento de ambas as questões não contribuiu para reunir votos a favor do projeto, que, como sabemos, também foi rejeitado nas zonas com maior presença de povos indígenas.
O debate constituinte
Antes de continuar, gostaria de salientar que não está em discussão aqui a validade das reivindicações, mas o cenário, e a forma, escolhidos para reivindicá-las.
Penso que o debate em torno dos direitos dos povos indígenas tem uma maior capacidade explosiva porque tem a ver com a propriedade da terra. Sem ignorar a importância da discussão sobre a natureza do Estado, a tensão entre a reafirmação de sua unidade e a definição de seu caráter plurinacional. “O Chile reconhece a coexistência de diversos povos e nações no marco da unidade do Estado”, diz o texto. “Os povos e nações indígenas são titulares de direitos coletivos fundamentais”. Em especial, “têm direito à autonomia, ao autogoverno e à sua própria cultura”.
O texto retorna a esses temas repetidas vezes, pretendendo resolver, com essas declarações, um conflito que está em pleno andamento, sem que uma visão sobre o assunto esteja amadurecida na sociedade. Se este tema parece-me o mais “explosivo”, há outro, cuja reiteração está presente ao longo do texto: o da paridade na representação de homens e mulheres nas instituições públicas.
O projeto afirmava que o Chile se constituía como uma “república solidária” e que sua democracia era “inclusiva e paritária”. O Estado deveria promover “uma sociedade em que mulheres, homens, diversidades e dissidências sexuais e de gênero participem em condições de igualdade substantiva”. É difícil imaginar que formulações deste tipo tenham um apoio majoritário, como se pode deduzir do resultado da consulta.
Mas há algo que me interessa ainda mais, e é o tratamento de uma questão relevante para a qual a esquerda não encontrou uma forma consensual de incorporá-la em seu projeto. Naturalmente, não é minha intenção resolver aqui esse desafio. Mas gostaria de sugerir algo.
Um dos problemas mais relevantes para essa participação não é o estabelecimento legal (ou constitucional) da paridade – que não tem relevância política, como veremos –, mas as tarefas de cuidados. O projeto fracassado de constituição centrou-se, no entanto, na paridade.
Muito pouco, ou quase nada, foi dito a respeito dos cuidados – de crianças e idosos – que recaem quase totalmente sobre as mulheres. De um modo geral, falava-se de “trabalho não remunerado” para referir-se às tarefas de cuidados. Este parece-me ser outro grande equívoco. Do meu ponto de vista, trata-se de trabalho remunerado, e o problema está exatamente na forma como esse trabalho é remunerado.
A forma de resolver o problema não é o compartilhamento de cuidados entre homens e mulheres. Isso não é possível, exceto em alguns aspectos não substantivos. A solução é que as tarefas de cuidados sejam assumidas pelo Estado, com berçários, creches e lares adequados para idosos. Não se trata de pagar às cuidadoras por seu trabalho. Os cuidados devem ser assumidos pelo Estado. É a única maneira de assegurar cuidados adequados. É uma consequência das mudanças econômicas e sociais que abriram as portas do mercado de trabalho às mulheres, que devem ser remuneradas não pelas tarefas de cuidados, mas pelo seu trabalho.
Nada disto estava contemplado no projeto de constituição construído sobre o conceito de “paridade”, que pretendiam apresentar como um grande avanço. Quase ninguém o entendeu dessa forma (e com razão, ao que me parece), exceto a direita. “Se me pusessem num Congresso cheio de mulheres e todas elas pensassem como Margaret Thatcher, sentir-me-ia bem representado, não teria qualquer problema”, disse ao jornal El Mostrador Johannes Kaiser, um deputado republicano conhecido por sua abordagem conservadora. A nova constituinte será formada paritariamente, com igual número de homens e mulheres, a maioria dos quais conservadores.
Fazer transformações no país
A de 2021 não foi minha primeira conversa com Fernando Atria. Três anos antes, em novembro de 2017, realizaram-se eleições em que Piñera ganhou seu segundo mandato presidencial. Fernando Atria não conseguiu ser eleito deputado.
Mas conversávamos: “Houve uma mudança de época na política chilena desde as manifestações de 2011. Estas manifestações, que não foram apenas de estudantes, produziram a impugnação do modelo neoliberal. “Ainda estamos sob o efeito dessas mobilizações”, disse Fernando Atria. “Mas durante este governo (ele está falando no final do segundo mandato de Michelle Bachelet), aprendemos qual é realmente o nosso problema: é uma forma política incapaz de produzir transformações significativas no país”.
Na opinião dele, a política foi “neutralizada”. Não era permitido fazer transformações. “Se olharmos para os últimos 27 anos no Chile, não houve praticamente nenhuma mudança significativa”, disse ele. “Não importa quantas pessoas marchem contra as AFPs. A possibilidade de discutir seriamente sua eliminação não existe”. “Mesmo que as transformações sejam constitucionalmente possíveis, elas não podem ser feitas porque as formas institucionais contêm uma ideia do que é apropriado ou não, do que é uma política séria ou não”. “Esta política neutralizada não é suficientemente forte para enfrentar o poder econômico. Só funciona quando responde aos interesses desse poder econômico”.
Fernando Atria também não achava que elas fossem possíveis por meio de grandes acordos. “Quando há reformas que interessam ao poder econômico, elas vêm rapidamente. Quando provêm dos cidadãos, são ignoradas”. Por isso, dizia que a única saída era uma Assembleia Constituinte. “O problema constitucional vai ser resolvido, por bem ou por mal”, disse. “Um dia, alguma coisa tem que acontecer; não amanhã, talvez, mas um dia”. Para os que estão na esquerda como nós, concluiu, “a prioridade é a unidade”. “Se não houver unidade da esquerda, teremos duas esquerdas, que verão a destruição da outra como um desafio”. Gostaria de continuar este diálogo quando regressar ao Chile para as cerimônias dos 50 anos do golpe.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros libros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves.
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