Barbie – delírios da extrema direita

Imagem: Miguel Á. Padriñán
image_pdf

Por FRANCISCO FERNANDES LADEIRA*

Devemos compreender Barbie como um produto cultural daquele que é, hoje, o maior inimigo dos povos oprimidos do planeta: o imperialismo estadunidense

O filme Barbie, um dos principais assuntos da agenda pública nos últimos dias, certamente passará para a história como uma daquelas produções cinematográficas que é mais comentada do que propriamente assistida. Seguindo essa linha, pretendo, aqui, me concentrar na repercussão da obra e não em seu conteúdo.

Não se trata de fazer juízo de valores sobre quem foi assistir ao filme vestindo rosa, a respeito de quem não recomendou Barbie ou se é (ou não) uma produção destinada ao público infantil. A meu ver, são questões irrelevantes para um debate minimamente produtivo. Afinal de contas, ir ou não ir ao cinema é um direito individual.

Antes de tudo, devemos compreender Barbie (ou qualquer outro similar) como um produto cultural daquele que é, atualmente, o maior inimigo dos povos oprimidos do planeta: o imperialismo estadunidense. Qualquer análise que não leve isso em conta, corre o risco de ser mero preconceito ou lacração. Aliás, essas duas visões, ambas maniqueístas, pautaram quase a totalidade das críticas sobre o filme Barbie.

Historicamente, o domínio planetário estadunidense não foi construído apenas por meios militares ou econômicos; também contou com o que o cientista político Joseph Nye define como “soft power”, ou seja, a habilidade discursiva de modelar os desejos do outro, gerando tamanha atração que ele escolhe seguir seu exemplo.

Desse modo, Barbie tem como principal função ideológica difundir o identitarismo, ideologia criada nos Estados Unidos, cujo principal objetivo é dividir e confundir os setores oprimidos, substituindo a luta de classes (motor da história, segundo Marx) por movimentos de determinadas identidades (mulheres, negros, gays, lésbicas, transexuais, indígenas, veganos, obesos etc.).

No caso de Barbie, sua narrativa, centrada em torno da abstrata “luta contra o patriarcado” (que esconde as reais lutas dos povos oprimidos: contra a burguesia, em âmbito nacional, e contra o imperialismo, na escala global), passa uma imagem pseudoprogressista, de suposta “libertação das mulheres”. Isso é o suficiente para atrair pessoas politicamente ingênuas.

Esse suposto caráter progressista de Barbie (ironicamente, boneca símbolo do conservadorismo ianque dos anos 1950) levou muitos indivíduos ligados à extrema direita a rotular o filme como “antihomem”, “marxismo cultural”, “afronta aos valores cristãos”, “apologia à homossexualidade” e “contra a família”, entre outros delírios típicos desse público.

Até aqui, nenhuma novidade, pois “vergonha alheia” e “extrema direita” pertencem ao mesmo campo lexical. No entanto, tão vergonhoso quanto os delírios da extrema direita, foram os posicionamentos de (boa parte) da esquerda sobre o filme Barbie.

Ao invés de denunciar a indústria cinematográfica como braço cultural do imperialismo estadunidense, muitos esquerdistas (ou supostos esquerdistas) preferiram rasgar elogios à obra, com “opiniões prontas”, saídas diretamente de Harvard e seus mantras lacradores tipo: “símbolo do empoderamento feminino”, “contra a masculinidade tóxica”, “mulheres no poder” e (a anteriormente mencionada) “luta contra o patriarcado”.

Como nada é tão ruim que não possa piorar, ainda tivemos as análises realizadas exclusivamente a partir das críticas da extrema direita à Barbie, e não ao conteúdo do filme propriamente dito. Algo tipo “se incomodou/irritou os conservadores, é automaticamente positivo para a esquerda”.

E, assim, a extrema direita se transforma no espantalho ideal para a alteridade negativa da esquerda. O “inimigo principal” não é mais o “burguês explorador”, mas o “macho escroto”.

Em suma, se nos aspectos militar e econômico, os Estados Unidos são uma potência decadente (haja vista, por exemplo, a incapacidade em lidar com a crescente influência global de Rússia e China), na “guerra semiótica”, isto é, no plano simbólico, os estadunidenses estão mais fortes do que nunca. Barbie, o filme, não é apenas um sucesso de bilheteria, também é uma bem-sucedida ação de soft power.

*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em geografia pela Universidade estadual de Campinas (Unicamp). Autor, entre outros livros, de A ideologia dos noticiários internacionais (CRV).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES