Uma mensagem do imperador

Imagem: Michael Erhardsson
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Por MARIO TRONTI*

O comunismo foi frustrado e se transformou em um sonho. Mas o ímpeto revolucionário russo e o espírito prático americano continuam sendo duas escolhas opostas na vida

“Faça fortes os sonhos antigos para que este nosso mundo não desanime” (Ezra Pound, A lume spento, 1908).

“O Imperador, assim é dito, enviou a você, ao sujeito humilde, a sombra insignificante perdida no canto mais remoto em frente ao sol imperial. Em seu leito de morte, ele enviou uma mensagem somente para você. Ordenou ao mensageiro que se ajoelhasse ao lado da cama e lhe sussurrou a mensagem; tanta importância lhe dava que ordenou ao mensageiro que a sussurrasse de volta, novamente, em seu ouvido. Então, com um aceno de cabeça, confirmou o seu acerto.

Diante de todos, que vieram testemunhar a morte – todas as paredes foram retiradas e, nas espaçosas e elevadas escadarias abertas, os grandes príncipes do Império perfilavam-se em anel. Diante de tudo isso, entregou a sua mensagem. O mensageiro partiu imediatamente em sua jornada; um homem poderoso, incansável; ora empurrando com o braço direito, ora com o esquerdo, abriu caminho para si mesmo em meio à multidão; se encontrava resistência, apontava para o peito, onde brilhava o símbolo do sol; o caminho se tornava assim mais fácil para ele do que o seria para qualquer outro homem.

Mas a multidão é vasta; as suas casas nunca acabam. Como ele voaria se pudesse alcançar os campos abertos, quão rápido voaria e logo ouviria o maravilho bater de seus punhos em sua porta. Mas, em vez disso, ele cansa quase sem rumo; ainda assim, só faz o seu caminho através das câmaras internas do palácio; nunca chegará ao seu fim; e se conseguisse nada ganharia; em sequência, ele deve lutar para descer a escada; mas se o conseguisse nada ganharia.

Eis que os tribunais ainda teriam de ser ultrapassados; e depois as cortes, o segundo palácio que encerra o primeiro; e mais uma vez as câmaras e as escadas; e mais uma vez outro palácio; e assim por diante por milhares de anos; e se, finalmente, ele rompesse o portão mais externo – mas nunca, nunca isso poderia acontecer – a capital, o centro do mundo, abarrotado de seus próprios lixos. Ninguém poderia sair dessa situação, mesmo com uma mensagem de uma pessoa morta. O súdito, no entanto, senta-se em sua janela e sonha com isso, quando a noite cai” (Franz Kafka, Uma Mensagem Imperial, 1919).

1883: Marx morre, nasce Kafka. A metáfora criada por este último, explica, insinua e a seu modo compreende, expressa indiretamente o seguinte fato: é somente com a arma da ironia política que hoje se pode combater a gravidade trágica da história. O mensageiro, com a sua missiva, não deixou o palácio imperial; partiu, mas ficou enredado na longa sequência de salas, na disposição de sucessivos pátios, nas infinitas mansões, nas escadarias interiores e depois nos outros palácios, apinhados de coisas, eventos, missas, instituições, guardas, multidões e brigas. O emaranhado se afigura impenetrável. Vem a ser um espaço-tempo que está em fluxo contínuo e em mudança. Ora, tudo isso é aquilo que chamamos de capitalismo moderno.

O mensageiro não escapou do palácio, mas, ao passar por ele, criou uma perturbação interna. Contudo, partes da mensagem foram recebidas, inspirando medo nos príncipes e certa esperança no povo. Já é algo, uma ocorrência que está longe de ser insignificante. Tudo isso demonstra que o mensageiro procurou sair do palácio, pois a mensagem que levava era necessária. Mas ele não completou a missão.

No entanto, o fato de ter tentado fazê-lo, produziu uma consciência de como as coisas realmente são: algo terá passado para aqueles que o seguiram. Este evento é irreversível: pode-se argumentar que foi errado, pode-se esquecer o que aconteceu, mas nenhuma dessas atitudes pode ser sustentada por muito tempo. A mensagem não foi entregue; contudo, ela não foi perdida. É o que restou para dizer. E se essa fosse a única coisa que restava fazer, bastaria simplesmente saber – e dar a conhecer – que ela vive bem.

A primeira carta de João Evangelista: aquele que se ouviu, aquele que se contemplou, aquele a quem as mãos tocaram, aqui se declara. E estas coisas falam a todos, para que a alegria seja completa. O início do primeiro século e o início do XX em certa medida se assemelham. O início fulgurante, a mensagem messiânica, a perspectiva escatológica que “mostra a vida eterna”; contra essa perspectiva, uma reação dura e trágica – guerra, crise, massacre – vem devolver à paz de cem anos: uma operação de inovação restaurativa (um novo nome para a revolução conservadora).

O que o movimento operário perdeu? Havia oradores falando no deserto. Eles não foram ouvidos. Mas essa não era o seu destino, ser ouvida no seu próprio tempo. Não, ela é antes a semente lançada no campo do futuro. Mas para que a planta saia, cresça, dê frutos e que o fruto não se perca, é preciso algo mais. Qual é a mensagem que está faltando?

Sei que é escandaloso pensar nisso: o que falta é a forma da Igreja. Isso, diga-se, foi tentado, mas não teve sucesso. A revolução exige uma instituição que dure não décadas, mas séculos. Tal como a própria Igreja. Para ser conservado no tempo, para os que virão, o evento libertador, sempre um ato momentâneo – a tomada do Palácio de Inverno – deve receber uma forma permanente. A transmutação da força em forma é a política que persiste, e só então – ela se torna história, abrangente, completa e inabalável. E é preciso saber, ai de quem não a conhece, que a história, diante das instituições que a contém, é uma mistura do bem e do mal.

Foi Giorgio Agamben quem pensou em voltar ao jovem Ratzinger, leitor da Liber regularum, obra do herege donatista do século IV, Ticônio. Ratzinger se demora na segunda regra da Liber, De Domini corpore bipartitio, “do corpo duplo do Senhor”. Essa doutrina do corpus bipartitum é bem interessante para pensar o político. O corpo da Igreja, na medida em que é o corpo do Senhor, tem dois lados, um “esquerdo” e um “direito”, um culpado e o outro abençoado. As suas duas faces são encontradas nas Escrituras: fusca sum et decora, diz a noiva do Cântico dos Cânticos, “sou negra e atraente”. A noiva de Cristo, a Igreja, tem em si tanto o pecado quanto a graça.

Eis o que Agamben escreveu: ““Ratzinger enfatiza a diferença entre essa tese e a prédica de Agostinho; no entanto, claramente se inspirou nela para sua ideia de uma Igreja formada do bem e do mal. “[Em Ticônio] não há aquela antítese clara de Jerusalém e Babilônia, que é tão característica de Agostinho. Jerusalém é ao mesmo tempo Babilônia, ela inclui a outra em si mesma. Ambos constituem uma única cidade, que tem um lado “direito” e um lado “esquerdo”. Ticônio não desenvolveu, como Agostinho, uma doutrina das duas cidades, mas a de uma cidade dupla, com dois lados”.

Ninguém deve pensar em relacionar esses dois lados, à esquerda e à direita, algo que hoje se discute no bar, uma opção que se decide nas urnas. Trata-se de um assunto muito sério. Se até no momento do Juízo Final há uma Igreja de Cristo e uma Igreja do Anticristo, se na história há um Estado dos justos e um Estado dos maus, então o bem e o mal devem existir não apenas no mesmo corpo político, mas no próprio corpo do “político”. Como dizia Hegel antes de Marx, quem quer die Weltändern (as mudanças do mundo) para transformar a vida, deve, antes de tudo, aceitar esse ineliminável e irresolúvel mysterium iniquitatis (mistério da iniquidade) da condição humana e, com paz no coração, lutar sem esperança de uma revelação definitiva no fim dos dias.

Kafka questiona: “Grande, alto comandante-em-chefe, líder de multidões, que conduz o desespero através das passagens da montanha, as quais ninguém mais pode encontrar sob a neve. Ora, quem é que lhe dá força? É aquele que tem a visão clara”.

Março-Abril de 1917: enquanto Kafka enviava a sua mensagem, Lênin escrevia as Teses de abril. O fevereiro havia trazido a revolução democrática burguesa. O “poder duplo” estava em vigor: o Governo Provisório, que havia derrubado a dinastia Romanov, coexistiu com o Soviete dos deputados operários, o qual remontava ao Soviete de Petrogrado, formado na revolução de 1905.

Lênin acabara de concluir e despachar de Zurique dadaísta as suas “cartas de longe”. Para Estocolmo, depois pela Finlândia, posto em um vagão ferroviário selado, por acordo das autoridades alemãs – um uso tático engenhoso do inimigo – ele havia chegado à Rússia.

No Palácio Tauride, onde os soviéticos de Petrogrado realizaram suas reuniões, ele fala a uma reunião formada por social-democratas, bolcheviques, mencheviques e independentes. Lê-lhes as Teses de abril: “A característica específica da situação atual na Rússia é que o país está passando da primeira fase da revolução – que, devido à insuficiente consciência de classe e organização do proletariado, colocou o poder nas mãos da burguesia – na sua segunda etapa, ela deve colocar o poder nas mãos do proletariado e dos setores mais pobres dos camponeses. […]

As massas devem ser levadas a ver que os sovietes de deputados operários são a única forma possível de governo revolucionário e que, portanto, a tarefa agora é, enquanto este governo cede à influência da burguesia, apresentar uma explicação paciente, sistemática e persistente dos erros de suas táticas, uma explicação especialmente adaptada às necessidades práticas das massas. […]

Não uma república parlamentar – voltar a uma república parlamentar de deputados operários seria um retrocesso – mas uma república de sovietes de deputados operários, agrícolas e camponeses em todo o país, de cima à baixo. Abolição da polícia, do exército e da burocracia. Para a publicação no Pravda, Lenin observa que “o exército permanente deve ser substituído pelo armamento de todo o povo”.

“Os salários de todos os funcionários, todos eletivos e insubstituíveis a qualquer momento, não devem exceder o salário médio de um trabalhador competente. […] Confisco de todas as propriedades fundiárias. Nacionalização de todas as terras do país, as terras serão utilizadas de acordo com os sovietes de deputados operários e camponeses locais. É preciso organizar os sovietes de deputados de camponeses pobres. A criação de uma fazenda modelo em cada uma das grandes propriedades (variando em tamanho de 100 a 300 deciatines [800 acres], de acordo com as condições locais e com as decisões dos órgãos locais, sob o controle dos Sovietes de Deputados Trabalhadores Agrícolas, mas sob supervisão pública”.

“A união imediata de todos os bancos do país em um único banco nacional; instituir um controle sobre ele por parte do Soviete dos Deputados Operários. Não é nossa tarefa imediata “introduzir” o socialismo, mas apenas colocar a produção social e a distribuição de produtos de uma só vez sob o controle dos sovietes de deputados operários. […]”

Demandamos um “Estado comunal”; em uma nota, Lênin acrescenta: “ou seja, um estado do qual a Comuna de Paris foi o protótipo”]. […]

Mudança do nome do Partido – uma nota de Lênin diz: “em vez de “social-democracia”, cujos líderes oficiais em todo o mundo traíram o socialismo e desertaram para a burguesia (os “defencistas” e os vacilantes “kautskyitas”), ele deve se chamar Partido Comunista].

Eis a mensagem: “As tarefas do proletariado na revolução atual”. E aqui está o mensageiro, que parte em sua missão, com o sussurro de Marx em seus ouvidos, repetido com exatidão. Carr reconta a história daquele encontro em que Lênin leu as Teses de abril pela primeira vez: “Bogdanov interrompeu a apresentação com gritos: “delírio, trata-se do delírio de um louco”; Goldenberg, outro ex-bolchevique, declarou que “Lênin havia se proposto como candidato a um trono europeu vago por trinta anos, o trono de Bakunin”; e Steklov, editor do Izvestia, que logo se juntaria aos bolcheviques, acrescentou que o discurso de Lênin consistia em “construções abstratas”.

O discurso de Lênin foi atacado por todos os lados, apenas Kollontai falou em seu apoio; entretanto, deixou o salão sem exercer seu direito de resposta. Na mesma noite, ele releu as teses para uma reunião de líderes bolcheviques e, mais uma vez, se viu completamente isolado.

O Pravda publicou as teses em 7 de abril de 1917, mas no dia seguinte uma declaração da direção assinada por Kamenev enfatizou que as teses constituíam apenas uma “opinião pessoal de Lênin”. E, no mesmo dia, o comitê do partido de Petrogrado as rejeitou com 13 votos contrários, dois a favor e uma abstenção.

Estes são os primeiros sinais das dificuldades que a mensagem política encontrará ao navegar pelos palácios da história. Mas desta vez – “o seis de novembro é cedo, mas o oito de novembro é tarde demais” – a mensagem acabou por chegar ao seu destino. Eis que milagres também existem na política. Ademais, felizmente, o mito continua a transmiti-las. A partir desse dia, a humanidade futura o conservará em sua memória. Portanto, é possível! É possível inverter o poder entre o baixo e o alto: os que estão acima, abaixo; os que estão abaixo, acima.

É certo que mensageiro é “um homem vigoroso, incansável”, como diz Giulio Schiavoni em sua tradução; ou seja, “um homem robusto e incansável”, segundo Rodolfo Paoli. “Se encontrar resistência, aponta para o símbolo do sol impresso no peito. Ele atua mais rápido do que qualquer outra pessoa”, lê-se em uma versão. E “se o caminho está obstruído, ele aponta para o peito sobre o qual se encontra um símbolo do sol; desse modo atua mais facilmente do que qualquer outra pessoa” – lê-se no outro.

É só isso? Não, só por isso não foi uma vitória. Para a burguesia, a revolução sempre leva a guerras, tal como as de Napoleão. No entanto, a guerra do proletariado leva à revolução, tal como a de Lênin. A dialética da revolução e da restauração funcionava de forma diferente nas histórias da burguesia e do proletariado. Na primeira, a restauração vem rapidamente, mas a revolução vence a longo prazo. O contrário ocorre no segundo: a revolução durou, mesmo que não o suficiente para suas necessidades; a restauração se impôs como resultado definitivo; talvez mesmo, nunca poderia ter acontecido de outra forma. Assim ficou escrito.

“As tarefas do proletariado na revolução atual”, eis uma mensagem escatológica. Pois, ela se encaixa na história eterna da salvação, sagrada – não secular. São os oprimidos que se levantam. Não o “homme”, mas a “humanité” em revolta. Com esta mensagem – e este mensageiro –, traduziu-se em ação política. Pela primeira vez. Por isso, sua vitória foi irresistível.

Se a mensagem sussurrada no ouvido não encontra o mensageiro para suportá-la com poder, abrindo caminho à força através da multidão, então ela não chega, não escapa do emaranhado dos palácios. O grande, e por isso trágico, acontecimento do século XX, ensinou isso.

Em vez disso, é apenas o mensageiro que não traz nenhuma mensagem que chega, porque este deixam-no passar. Ensina essa lição o evento menor, cômico, rotulado de século XXI. Aqui, a profecia se cumpriu: o meio é a mensagem. O mensageiro é uma proclamação. Só que se permite ir e vir, democraticamente; nunca um algo novo.

A catástrofe é que tudo permaneça como está. O niilismo equivale a aceitar tudo como está. Talvez a Rússia tenha sido o único solo capaz de acolher essa semente, o único espaço-tempo em que a ideia poderia ter se tornado história. A espiritualidade russa é o que explica, no fundo, aquela loucura divina que foi o “outubro proletário”.

Alexis Tocqueville teve um vislumbre da figura tênue do futuro. O comunismo na Rússia e a democracia na América se constituem como as duas vastas ilhas sobre as quais o “moderno”, em sua longa jornada, se afundou. Provisoriamente talvez, porque outras ilhas em outros continentes ainda estão surgindo. E hoje, um desses dois grandes navios chegou ao porto, enquanto o outro naufragou. A democracia foi realizada; ela construiu um mundo para si mesma.

O comunismo foi frustrado e se transformou em um sonho. Mas o ímpeto revolucionário russo e o espírito prático americano continuam sendo duas escolhas opostas na vida, duas formas alternativas de existência. E apetece-me dizer algo que hoje é escandaloso: que a liberdade esteja na primeira, não na segunda. Acrescento, repetindo uma afirmação polêmica: naturalmente pode-se ficar livre passando por muitas rotas, mas no século XX considero ter sido a rota comunista a estrada real. Falando por mim, sei que jamais teria a liberdade que sinto, dentro de mim, sem ter passado, no meu pensamento e na minha vida, pela experiência histórica do comunismo.

Mario Tronti (1931-2023) foi filósofo e político. Autor, entre outros livros, de Operai e capitale (DeriveApprodi) (https://amzn.to/3P3VjoM).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente no blog Sidecar da New Left Review.


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