Bandoleiros da política

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARSO GENRO*

É da separação radical entre moral e política e das novas formas anônimas de controle mental dos indivíduos para a formação de grupos de bandoleiros da política, que o barro do futuro está sendo moldado

“A imposição rígida, sob medida e pré-fabricada do curso histórico, bloqueia a assimilação de outros esquemas de compreensão histórica.” (Norberto Bobbio, defendendo que nenhuma teoria da História, nem da política, é eterna).

Os três grandes eixos do primeiro ano do governo Lula foram encaminhados e cumpridos dentro das estreitas margens da democracia republicana: a guerra contra fome recomeçou; a política externa brasileira nos retirou da vergonha mundial sob comando de um chefe de Estado respeitado e consciente do seu poder e responsabilidades mundiais; e o arcabouço fiscal foi encaminhado para ser a travessia de uma economia empobrecedora e covarde para uma dinâmica nova de integração do Brasil no sistema capitalista global, na sua melhor possibilidade. Num mundo em guerra e num período de transição energética e cobrança, pela natureza em rebelião, das devastações proferidas contra ela.

A vitória de Javier Milei na Argentina com 55,69% dos votos, no segundo turno das eleições presidenciais, foi comemorada com bandeiras nacionais ao alto e com os gritos dos infalíveis grupos de direita, que chegaram – alucinados – a rasgar a moeda nacional e usá-la como confete no seu carnaval demencial.

Era a celebração da vitória de um candidato e também um final melancólico de um longo período de crise de identidade do país argentino, da esquerda às forças políticas mais tradicionais: vitória do “anarco capitalismo libertário”, derrota de um modelo sem rumo e sem ideias e varredura definitiva – em minha opinião – não do peronismo como via “social” autoritária e popular que já se esgotara bem antes, com a morte de Perón, mas de um movimento fragmentado em múltiplas correntes desde a volta do exílio do “Grande Líder”. Perón foi um grande líder para a Argentina, porque ela, na educação pública e no confronto com a fome, deve ser comparada à Inglaterra, não com a Suiça, assim como Fidel é um grande revolucionário para Cuba, porque seu país deve ser comparado – na fome e na educação – com o Haiti e o Paraguai, não com os Estados Unidos e a França.

Os líderes latino-americanos que humanizaram suas nações em formação – pelo combate à fome e pela instituição da educação pública e gratuita para seus povos – enfrentaram estruturas coloniais carcomidas, estiveram conectados com a sua época e, ao mesmo tempo, à frente dela. Não me refiro aqui às centenas de líderes revolucionários que morreram pelas utopias da igualdade socialista, mas sim aqueles que chegaram ao poder – dentro ou fora da ordem – e deixaram exemplos que melhoraram, em alguma medida, a vida dos seus respectivos povos, criando uma memória nacional “progressista” e socialmente democrática: José Battle y Ordoñez, Presidente do Uruguai, Juan Domingo Perón, Presidente da Argentina, Getúlio Dornelles Vargas Presidente do Brasil, Jacobo Arbens, Presidente da Guatemala, General Velasco Alvarado, Presidente do Peru, são exemplos de líderes que – contra a maré colonial imperial – deixaram exemplos de dignidade política para os seus pósteros ou desenvolveram políticas de Estado que influíram nas respectivas civilidades nacionais.

Todos estes grandes líderes tiveram algum tipo de conexão com parte das classes dominantes dos seus respectivos países, cooptaram-nas por um certo período e também foram cooptados e traídos por elas, em ciclos mais agudos de crise ou de enfrentamento com os interesses do sistema colonial-imperial. As margens de manobras para a implantação dos projetos nacionais democráticos, todavia – ora mais largas, ora mais estreitas – foram paulatinamente se estreitando, com a transformação do sistema colonial-imperial em dominação complexa do capital financeiro, já disseminado como força mobilizadora do mundo integrado, a partir de estruturas internas de poder, dentro e fora dos países dependentes.

Assim foram se diluindo, nas democracias ocidentais atuais, a força constituinte da soberania popular: separando a igualdade da liberdade e desgastando rapidamente a legitimidade dos governos populares que prometiam reformas e melhorias sociais, tanto pela renda como pela proteção social.

Lula, no Brasil, é a exceção revista da memória destes grandes líderes do passado, que assentou no seu primeiro ano de governo uma saída especial para o Brasil. Aqueles líderes deixaram um rastro de esperança, hoje revivido por ele como um progressismo-democrático especialmente moderado, agora com ainda mais estreitas margens de manobra: a saída socialista generosa de Salvador Allende, com a profundidade que ele professava, não tem mais possibilidade de prosperar; as mobilizações do progressismo populista se esgotaram no fracasso econômico e na sua incapacidade de renovar-se; as reformas, por dentro da soberania popular constituinte perderam, cada vez mais, sua autenticidade, ora sufocada pelas participações horizontais em rede. Estas, que são o que fazemos delas, até agora se mostraram ineptas para constituírem relações mais democráticas e solidárias entre os cidadãos e se mostraram mais apropriadas para a dominação dos fetiches do mercado e para iludir que todos podem ser empresários de si mesmos.

Juarez Guimarães, num texto brilhante sobre o que seria um “socialismo democrático” baseado na soberania popular, mostra que a neutralização desse princípio revolucionário da democracia política foi feita, em primeiro lugar, com separação concreta entre o “princípio da liberdade” e o “princípio da igualdade”. Duas experiências frustradas no século passado mostraram as terríveis dificuldades enfrentadas pela esquerda, quando tentou integrar – dentro da democracia – “liberdade e igualdade”, em direção a uma sociedade pelo menos mais igualitária: as experiência das eleições para Assembleia Constituinte de Weimar, em janeiro de 1919, com maioria de delegados social-democratas, de cujo fracasso emergiu – não a mínima igualdade – mas a máxima desigualdade sem liberdade do regime nazifascista –; e a experiência do governo de Salvador Allende, entre 1970 e 1973, quando o Presidente foi golpeado pelas Forças Armadas que propiciaram um brutal banho de sangue, enterrando a liberdade e a igualdade no mesmo túmulo da democracia liberal.

A crise da Argentina, que elegeu Javier Milei, a crise de Weimar, que gerou o nazismo e afundou a revolução alemã, bem como a crise do governo Allende, depuseram partidos e lideranças de governos de “esquerda’, segundo a época que surgiram, que tiveram muitos enfrentamentos e características comuns: contraposição entre miséria e riqueza sem vias visíveis de superação, especulação financeira alimentando a inflação diária, capitalização das “classes altas” por fora dos padrões monetárias vigentes; aumento frequente do custo de vida sem soluções do Estado que tivessem condições de serem aplicadas sem desmantelar a economia formal; aumento real ou imaginário da corrupção, ascensão dos índices de criminalidade, tudo criando uma situação político-social propícia a facilitar uma unidade eleitoral entre conservadores, extrema direita, direita tradicional com os criminosos de todas as ordens e hierarquias.

Processos semelhantes ao processo argentino, com a vitória de líderes como Javier Milei, potencialmente podem ocorrer em muitos lugares da América Latina. O fenômeno não é mais originário de um movimento político isolado, mas já é peculiar – em escala mundial – pois se serve para crescer de um “cansaço da democracia”, que gera insatisfações sociais de peso, cujo “ethos” político é propício para demagogos e sociopatas conquistarem o poder, por forças alheias ao “jogo”liberal-democrático. Os que gostavam de golpes nas velhas formas de militares ocupando rádios e palácios também cansaram, já que foram – pelo menos por algum tempo – atraídos pelas guerrilhas golpistas nas redes dominadas pelos novos e ousados meios de cooptação das subjetividades formadas no mercado.

As velhas respostas de resistência à opressão social de classe, raça, sexo, todavia, geram uma soma de recalques e ódios individuais no interior destas novas formas de luta, originários de diferentes tipos de infelicidade, que somam indivíduos dispersos, em grupos limitados, não mais massas identificadas pelas ideologias classistas, mas conjugadas por um ódio mortal ao presente.

É desta separação radical entre moral e política e destas novas formas anônimas de controle mental dos indivíduos para a formação de grupos de bandoleiros da política, que o barro do futuro está sendo moldado. Encaminhar soluções possíveis para regular as plataformas que os acolhem, melhorar rapidamente as condições de segurança pública para as pessoas viverem e trabalharem, preencher o arcabouço fiscal de normas regulatórias que gerem renda, trabalho e novas identidades coletivas pelo trabalho decente, vai ser o cimento da reintegração democrática entre a afirmação da liberdade e a possibilidade de mais igualdade. Parece pouco, mas é muito, num mundo que desaba. É o verdadeiro começo do terceiro governo Lula que preparou, meticulosamente, as condições políticas para que isso fosse possível.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).[https://amzn.to/3ReRb6I]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Priscila Figueiredo Eleonora Albano Eugênio Trivinho Osvaldo Coggiola Igor Felippe Santos Gilberto Lopes Marilia Pacheco Fiorillo Henri Acselrad Ricardo Musse Sandra Bitencourt Annateresa Fabris Manuel Domingos Neto Francisco Pereira de Farias Armando Boito Slavoj Žižek Lucas Fiaschetti Estevez Alexandre Aragão de Albuquerque João Carlos Salles Andrés del Río Paulo Sérgio Pinheiro Eliziário Andrade Michael Roberts Luiz Eduardo Soares Boaventura de Sousa Santos Bruno Fabricio Alcebino da Silva Antonio Martins Leda Maria Paulani João Sette Whitaker Ferreira João Paulo Ayub Fonseca Antonino Infranca Tarso Genro Bruno Machado Afrânio Catani Denilson Cordeiro Luiz Renato Martins Luiz Bernardo Pericás José Luís Fiori Heraldo Campos Jean Pierre Chauvin Fernando Nogueira da Costa Jorge Branco Renato Dagnino Milton Pinheiro Eleutério F. S. Prado Francisco de Oliveira Barros Júnior Paulo Capel Narvai Fábio Konder Comparato Carla Teixeira Salem Nasser Mariarosaria Fabris Thomas Piketty José Micaelson Lacerda Morais Paulo Martins Érico Andrade Gerson Almeida Walnice Nogueira Galvão Marcelo Guimarães Lima Luiz Werneck Vianna Airton Paschoa Caio Bugiato João Lanari Bo Bernardo Ricupero Marcos Silva Dênis de Moraes Lincoln Secco Dennis Oliveira Michael Löwy André Márcio Neves Soares José Costa Júnior Ricardo Abramovay Gabriel Cohn Vladimir Safatle João Adolfo Hansen Alexandre de Lima Castro Tranjan Yuri Martins-Fontes Berenice Bento Rubens Pinto Lyra Carlos Tautz Otaviano Helene Andrew Korybko Luciano Nascimento André Singer Daniel Brazil Alexandre de Freitas Barbosa Flávio R. Kothe Remy José Fontana Daniel Costa Ricardo Fabbrini Kátia Gerab Baggio Julian Rodrigues Liszt Vieira Eugênio Bucci Eduardo Borges Everaldo de Oliveira Andrade Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Chico Alencar João Carlos Loebens Luiz Marques Juarez Guimarães Mário Maestri Francisco Fernandes Ladeira Marcus Ianoni José Geraldo Couto José Dirceu Michel Goulart da Silva Maria Rita Kehl Anselm Jappe Luís Fernando Vitagliano Ronaldo Tadeu de Souza Manchetômetro Chico Whitaker Elias Jabbour Jorge Luiz Souto Maior Alysson Leandro Mascaro Flávio Aguiar Leonardo Avritzer Ari Marcelo Solon Ronald León Núñez Luis Felipe Miguel Sergio Amadeu da Silveira Gilberto Maringoni Alexandre Juliete Rosa Marilena Chauí Tales Ab'Sáber Marcos Aurélio da Silva Celso Favaretto Fernão Pessoa Ramos Paulo Fernandes Silveira Rodrigo de Faria Vanderlei Tenório Ronald Rocha Henry Burnett José Raimundo Trindade Tadeu Valadares José Machado Moita Neto Luiz Roberto Alves Atilio A. Boron Samuel Kilsztajn Leonardo Boff Rafael R. Ioris Celso Frederico Bento Prado Jr. Marjorie C. Marona Ricardo Antunes Benicio Viero Schmidt Paulo Nogueira Batista Jr Vinício Carrilho Martinez Matheus Silveira de Souza Daniel Afonso da Silva Lorenzo Vitral Valerio Arcary Ladislau Dowbor João Feres Júnior Jean Marc Von Der Weid Leonardo Sacramento Marcelo Módolo Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luiz Carlos Bresser-Pereira Antônio Sales Rios Neto Claudio Katz

NOVAS PUBLICAÇÕES