Se meu apartamento falasse

Cena do filme "Se meu apartamento falasse" de Billy Wilder
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Por GUILHERME COLOMBARA ROSSATTO*

O olhar de Billy Wilder sobre o tédio da América empresarial

Se meu apartamento falasse (1960) é uma das comédias mais conhecidas de Billy Wilder, escrita ao lado de I. A. L. Diamond, seu colaborador em inúmeros sucessos. Com sacadas rápidas, confusões de identidade e um Jack Lemmon no auge, o filme é muitas vezes lembrado pelas risadas que provocou no espectador, contudo, há muito mais a ser observado e discutido.

Na trama, um trabalhador de escritório (Lemmon) empresta seu apartamento para os executivos de sua empresa levarem suas amantes e namoradas. Com isso, ele espera sua tão sonhada promoção e ser notado pela diretoria, conseguindo usufruir de todos os confortos do sonho americano empresarial. O problema é que ele se apaixona pela amante (Shirley MacLaine) de seu chefe (Fred MacMurray), o que pode colocar tudo a perder.

A ironia já está na própria sinopse: no conto de Billy Wilder, avançar na vida profissional nos anos 1960 está condicionado às imoralidades dos encontros casuais, vistos como tão pecaminosos por uma das sociedades mais conservadoras do mundo. Os homens são todos solitários, ainda que cercados de poder e bens materiais, que não aguentam ficar com as mesmas mulheres e por isso, precisam de amantes, vidas duplas e mentiras sucessivas.

A vida da classe média estadunidense é tão chata que somente um pouco de segredo pode animar as coisas, se esgueirando em passeios noturnos, mentindo por meio de secretárias aterrorizadas e enganando a família que tanto amam. Uma manhã de Natal com os filhos é a coisa mais chata do mundo, presos pelas relações que eles próprios construíram. Como em toda boa sátira, as contradições, corrupções, conflitos e problemas apresentados pelo filme podem ser estendidos em uma análise de toda a sociedade norte-americana do começo dos anos 1960.[i]

Nas palavras do próprio Sheldrake, em seu cínico discurso para Fran: “Acho que mereço isso, mas pense bem. Por que um homem tem várias mulheres? Porque é infeliz no casamento. Porque se sente sozinho. Mas foi antes de você. Já parei com isso agora.” O capitalismo patriarcal só funciona às custas de pessoas como Fran e Baxter, inflando o ego de homens poderosos e acabando com qualquer chance de felicidade compartilhada.

Entre os dois protagonistas, se Lemmon traz as risadas, iluminando todas as cenas em que está, MacLaine nos dá um outro tipo de conforto, representando a melancolia que há em todos e indicando que a miséria humana não tem tempo para acabar. “São dois personagens psicologicamente feridos, condicionados pela certeza que não merecem o amor e que o mesmo é tão exclusivo quanto a chave para o banheiro executivo”.[ii]

É neste jogo que se encontra o ponto central do filme: o tédio da classe média estadunidense, condicionada por seus jargões corporativos e idealizando uma posição melhor na empresa, uma sala maior e um apartamento com ar condicionado. Uma alienação que ultrapassa as horas de trabalho. A oposição entre comédia e drama faz a trama prosseguir, criando situações perfeitas para satirizar uma mentalidade altamente consumista e individual, pautada pelas ideias de loser e winner de um país em constante estado de guerra entre tudo e todos.

Juntamente com o tédio, se encontra a violência com os sentimentos e corpo de Fran, na forma como é tratada pelos homens ao seu redor. Trata-se da união, em uma mesma cena, do corpo de Fran, torturada por suas escolhas, sendo jogado por todos os lados do apartamento e das piadas e olhares do doutor para Baxter, o “canalha sedutor” que nem mesmo consegue se abrir para a mulher que ama. A vergonha ressoa em tal cena, com takes longos e cortes alternados, à medida que o corpo de Fran recebe tapas do doutor e é obrigada a marchar para se manter acordada após uma frustrada tentativa de suicídio.[iii]

De certa forma, Billy Wilder foi sempre um jornalista, um cronista de seus próprios tempos, relatando as inseguranças e desejos das pessoas ao seu redor. O cinema era apenas um caminho, assim como a literatura ou a pintura. A especialidade de Billy Wilder, contudo, estava em transmitir as hipocrisias para a tela de cinema, fazendo com que o público não tivesse outra alternativa a não ser rir de si mesmo.

Comédias como: O pecado mora ao lado (1955), Beija-me, idiota (1964) e Uma loura por um milhão (1966) são alguns exemplos de como o cineasta representava as neuroses masculinas, construindo personagens idiotas e inseguros, ridículos nos olhos de qualquer espectador racional. Mesmo sendo um imigrante europeu, Billy Wilder interpretou a tal América para os americanos e ajudou a levá-la do puritanismo para um certo cosmopolitismo.[iv]

Fran e Baxter estão longe de serem ridículos, mas são enganados pelo sistema ao seu redor, acompanhados por auras profundamente tristes, mesmo que escondidas entre gags e acasos engraçados, a partir de uma vida sem qualquer toque humano. C.C. “Bud” Baxter não é tão feliz e completo quanto pensa, passando por uma ilusão capitalista das mais difíceis de entender, afinal, até mesmo o tempo livre transformou-se em poder de barganha para o capital e seus chefes invadiram o espaço do tão pequeno apartamento, acabando com qualquer chance de descanso. As mazelas do trabalho começam a afligir até seu corpo, após longas noites frias ao relento, vagando sem identidade por uma cidade monótona.

Fran, por sua vez, é engolida pelo tédio e discursos vazios de seu amante, sem esperar muito da vida, apenas contentando-se com as piadinhas machistas dos executivos no elevador e sonhando com a vaga de secretária que não conseguiu, pois não sabe como soletrar apropriadamente. O sistema não permite a felicidade de pessoas como ela, dependendo de seu tédio para manter-se explorando outros.

Ou seja, não há amor no cotidiano dos dois, que nem mesmo podem ser descritos como seres humanos, pelo menos até o momento em que se conhecem e o elevador da empresa ganha novos contornos, assim como o apartamento, agora, uma espécie de lar. Baxter muda com o decorrer da narrativa, deixando as aspirações profissionais de lado e entendendo que certas escolhas nos definem enquanto membros de uma sociedade, ainda que grade parcela das pessoas não se preocupe com isto.

Mesmo com tudo de ruim que lhe aconteceu; o soco do cunhado de Fran ou as críticas de seus vizinhos, ele não se torna vingativo, tampouco procura formas de acabar com as carreiras de Sheldrake, Dobisch e Kirkeby. Pelo contrário, Baxter apenas busca sua própria felicidade, reorganizando suas prioridades e até mesmo largando o tão disputado apartamento. Ao final do filme, a organização de seus pertences em caixas é quase uma espécie de exorcismo, se livrando das mazelas e do peso daquele ambiente. Mudar-se é a única alternativa, já que não há mudança possível dentro do sistema.

De certa forma, podemos dizer que o filme se encontra entre os códigos e linguagem da Velha Hollywood e a quebra de paradigmas da Nova Hollywood, adiantando-se na crítica à atomização do indivíduo pelo sistema econômico e trabalhando com personagens multifacetados, cujas dores e alívios vão revelando-se ao espectador por partes, para então, nos mostrar a totalidade de pessoas perdidas em seus próprios mundos.

Billy Wilder já havia desafiado a censura hollywoodiana no ano anterior, com o seu delicioso Quanto mais quente melhor (1959), literalmente transgredindo barreiras e subvertendo a ideia de comédia com a qual a sociedade estadunidense estava acostumada. Mesmo assim, acredito que em Se meu apartamento falasse as ideias são melhores executadas, indo do humor ao drama em um piscar de olhos (especialidade de Billy Wilder), possibilitando a construção de personagens riquíssimos, longe dos clichês de outros clássicos estadunidenses.

Certos momentos são muito sombrios, como as conversas sobre suicídio e o trecho acerca do espelho quebrado. Pequenos pedaços de um mosaico muito maior, recheado de elementos e emoções para serem analisadas. Um verdadeiro deleite para quem assiste, ao mesmo tempo em que suscitará certos pensamentos e reflexões sobre sua própria vida.

O tédio pode ser o ponto principal aqui discutido, seja na vida de Baxter, na tristeza da amante de seu chefe ou na incompletude dos homens que preenchem seu apartamento, mesmo assim, a sátira ainda é o fio condutor da trama, apresentando um capitalismo que está a ponto de explodir, como uma garrafa de champanhe em plena véspera de Ano Novo.

O monólogo introdutório de Baxter já nos apresenta tais temas, afirmando que sua função e personalidade são apenas números, assim como a vida de todos os nova-iorquinos ao seu redor. “Wilder opta por posicionar seus personagens em cenários opressivos, tanto no ambiente de trabalho quanto em casa…”.[v] Muito mais do que atitudes, gostos ou amores, o que representa Baxter são o número de sua mesa, as paredes forradas de sua nova sala e seu nome na porta, pintado com todo o cuidado do mundo.

O preto e branco parece ser a escolha certa para uma história como essa, presa entre dois tons, desiludida por dois homens, oprimida por dois ambientes e localizada entre duas atmosferas criativas. O gozo e a produtividade vão se intercalando, ao ponto em que Baxter e Fran já não conseguem encontrar um sentido. “Acho que vou desistir de tudo. Afinal, por que as pessoas precisam se amar?” dispara Fran, em um dos seus vários momentos de autodescoberta.

Felizmente, eles se encontram e transformam suas vidas. O sistema, por outro lado, permanece opressor. Billy Wilder preocupa-se com as narrativas individuais, resgatando seus personagens da atomização pela metrópole. Engraçado até o fim, quando elogiado pelos soviéticos por conta das críticas que seu filme fazia ao sonho americano, ele afirmou que nunca poderia filmá-lo na Rússia, pois lá as pessoas não possuem seu próprio apartamento. Um provocador em todos os momentos.

*Guilherme Colombara Rossatto é mestrando em história na Universidade de São Paulo (USP).

Notas


[i] DELEYTO, Celestino. The Dupes strike back: comedy, melodrama and point of view in “The Apartment”. Atlantis, Vol. 14, No. 1/2 (noviembre 1992), p. 43.

[ii] TOBIAS, Scott. The Apartment at 60: is this Billy Wilder’s finest film? The Guardian, Londres, 15 de jun de 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/film/2020/jun/15/the-apartment-billy-wilder-jack-lemmon>

[iii] HOFFMAN, Alison. Shame and the single girl: Reviving Fran and falling for Baxter in The Apartment. In: MCNALLY, Karen (org). Billy Wilder, Movie-Maker: critical essays on the films. Carolina do Norte: McFarland & Company, 2011, p. 82.

[iv] WALSH, David. A conversation with film historian and critic Joseph McBride, author of Billy Wilder: Dancing on the Edge – Wilder helped “lead America out of its puritanical isolation and xenophobia”. World Socialist Web Site, Michigan, 20 de dez de 2021. Disponível em: <https://www.wsws.org/en/articles/2021/12/20/mcbr-d20.html>.

[v] SPECTOR, Bert. A crack the Cold War consensus: Billy Wilder’s The Apartment. Management & Organizational History, vol 4 (2), 2009, p. 192.


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