O melancólico fim do Estadão

Imagem: Luis Quintero
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JULIAN RODRIGUES*

Péssima notícia: o quase sesquicentenário diário paulista (e melhor jornal brasileiro) definha aceleradamente

1.

Minhas eventuais, costumeiras ou novas leitoras: assistimos, agora, em tempo real, a mais um triste indício do inexorável apocalipse. O fim do mundo parece estar cada dia mais próximo. Nosso Estadão, o melhor e mais tradicional jornal brasileiro desaparecerá em breve. Sua versão impressa, outrora parruda e exuberante, virou tímido farrapo esquálido.

Calma. Não me cancelem. Explico-me. Nós, meio intelectuais, meio progressistas, acostumamos a ler a Folha de S. Paulo. Afinal, o jornal da família Frias apoiou as “Diretas Já” e o “Fora Collor”.

Mais moderno, mais plural, mais fácil de ler, a Folha de S. Paulo teve o mérito de publicar os mais relevantes articulistas e intelectuais brasileiros das últimas décadas. Florestan Fernandes, Carlos Heitor Cony, Otto Lara Resende, Antônio Callado, Jânio de Freitas, José Serra, Luis Nassif, Marcelo Coelho, Clóvis Rossi, Paulo Francis, Contardo Calligaris, Nelson de Sá, Maria da Conceição Tavares, Delfim Netto, Fernando Henrique Cardoso, Gerald Thomas et caterva passaram pelo jornal dos Frias.

O pernóstico Otavinho fez história comandando, desde meados dos anos 1980, o ousado “projeto Folha” que mudou para sempre a cara da mídia impressa aqui. Prometo escrever sobre a Folha de S. Paulo em outra oportunidade.

Demorei muito tempo para entender por que o Estadão é, ou era, muito melhor que a Folha. A Folha de S. Paulo, afinal, aparentemente é mais legalzinha, colorida, fácil de ler, mais moderna.

O Estadão sempre foi carrancudo, pesado, ruim de ler. Orgulhoso de cheirar a mofo, cioso de seus textos gigantes e editoriais parnasianos. Ocorre que o Estadão é sincero. Transparente, nunca escondeu seus compromissos de classe. Nunca enrolou ninguém.

A Folha de S. Paulo é cínica, wannabe, oportunista, niilista, hipócrita e tem orgulho de ser má. Enganou anos a fio incautos de esquerda. Estadão é conteúdo. Folha é forma e pretensão. Estadão é coerência, Folha é oportunismo. A alguns seria contra intuitivo dizer isso. Hoje em dia é meio óbvio e evidente, acho eu.

2.

A mim, impactou-me profundamente ter em mãos a edição do Estadão de 14 de junho do ano da graça de dois mil e vinte e quatro. Sim! Ainda há algumas poucas pessoinhas exóticas que não só preferem ler qualquer coisa em papel, como também insistem em comprar jornais impressos nas (brevemente extintas) bancas de rua.

Noves fora as reclamações chorosas típicas de gente velha e ranheta (aliás, quem ainda sabe tabuada, prova real e prova dos nove), eu vos declaro. E isso é ciência pura, juro. Ler em papel e ler jornal impresso é qualitativamente superior a ler no celular. Duvidam? Perguntem ao brasileiro, petista e maior cientista do mundo, o palmeirense — ninguém é perfeito — o simpático e engajado neurocientista Miguel Nicolelis.

Sem adentrar no debate sobre as mudanças tecnológicas, modelo de negócios, taxas de lucro, modernização dos meios midiáticos, etc. e tal, só queria registrar, brevemente, um alerta. Um grito. Um gemido. Um choro. Uma lágrima.

Leiam livros e jornais impressos. Saiam das telas. Façam contas matemáticas mentalmente. Escrevam em papel. Re-aprendam ortografia, sintaxe, geografia. Memorizem datas, mapas, fórmulas. Esqueçam tudo que te contaram nos últimos 30 anos. Não se trata de “decorar” artificialmente as coisas. Trata-se de saber. Memorizem tudo de novo.

O fim do Estadão não é algo progressivo. Muito antes pelo contrário. Acreditem. Não há nada de alvissareiro nessa notícia.

Termino com uma rexitegui já velha, eu sei: #mejulguem.

*Julian Rodrigues, jornalista e professor, é ativista LGBTI e de Direitos Humanos. Coordenador de formação política da Fundação Perseu Abramo.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Como os soviéticos venceram a desertificaçãocccp 22/09/2024 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: O Grande Plano da URSS para a Transformação da Natureza nos conta que a magnitude do seu impacto só foi possível porque aliou conhecimento, planejamento sistêmico e vontade soberana da nação
  • América do Sul — uma estrela cadenteJosé Luís Fiori 23/09/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A América do Sul se apresenta hoje sem unidade e sem qualquer tipo de objetivo estratégico comum capaz de fortalecer seus pequenos países e orientar a inserção coletiva dentro da nova ordem mundial
  • Marx e a financeirização – o exuberante capital fictíciodolar olho 48 18/09/2024 Por RENILDO SOUZA: O papel crucial da ciência e da tecnologia na economia capitalista do século XXI favorece a valorização das mercadorias-conhecimento gerando as chamadas renda-conhecimento
  • O avesso de Marxcultura los soles 14/09/2024 Por TIAGO MEDEIROS ARAÚJO: Comentário sobre o livro recém-lançado de José Crisóstomo de Souza
  • O caminho do meioamazon 22/09/2024 Por JOSÉ DIRCEU: A Amazon é a nova aposta dos EUA pelo controle dos ativos digitais brasileiros
  • O livro de CatuloPaulo Martins – Foto_edited 03/09/2024 Por PAULO MARTINS: O que nos resta de Catulo é suficiente para dizer que seu ecletismo genérico (dos gêneros poéticos) é impressionante
  • Franz Kafka e seu bestiário em trânsitopexels-moldyfox-3924726 20/09/2024 Por RICARDO IANNACE: Comentários sobre o bestiário em Kafka
  • A base estrutural das novas direitasELEUTERIO2 25/09/2024 Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: A civilização aparece finalmente como barbárie e a humanidade parece caminhar para a extinção
  • Fredric Jameson (1934-2024)Frederic Jameson 24/09/2024 Por THOMAS AMORIM: Como Walter Benjamin percebeu, os mortos seguem interessados na construção de um futuro melhor e também Fredric Jameson continua e continuará conosco
  • Israel — um Estado terroristapalestina 490667 26/09/2024 Por LUIS FELIPE MIGUEL: A impotência da solidariedade ao povo palestino e libanês, a tolerância ao racismo sionista e a cumplicidade com o genocídio e com o expansionismo sionista são sintomas claros da falência moral da humanidade

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES