As invisíveis – II

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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Neste ano, o Festival de Cinema de Gramado, o maior e mais prestigioso do país, recebeu uma reclamação por não ter mulheres no júri

1.

Neste ano, o Festival de Cinema de Gramado, o maior e mais prestigioso do país, recebeu uma reclamação por não ter mulheres no júri – quando são tantas as brasileiras profissionais da área. Respondendo, o presidente do júri disse que os jurados eram todos homens, mas tinham critérios objetivos, acima dessas coisas. Então, a cineasta Lúcia Murat escreveu-lhe uma carta, dizendo que escalasse mulheres e visse se a premiação não mudaria… Elementar, meu caro Watson.

Nem sequer o futebol perdoa as mulheres. É desse ângulo inesperado, famigerado pelo machismo e pelas agressões públicas, que vêm interessantes novidades. E, para não dizer que não havia nenhuma mulher mencionada no Museu do Futebol quando abriu em 2008, havia uma efígie da Marta, seis vezes eleita a melhor jogadora de futebol do mundo.

Lúcia Murat tinha razão. Foi só botar em funções de direção (Coordenadoria de Comunicação) do Museu do Futebol uma mulher, Renata Beltrão, que tudo começou a mudar. Em 2008, uma sondagem mostrou que 70 % dos visitantes eram homens. E acharam tudo normal. Mas Renata Beltrão discordou.

E foi pesquisar. O resultado é Chama as mina pro jogo: Museologia e gênero no Museu do Futebol, mestrado defendido no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Os resultados não poderiam ser mais instigantes e decorrem de todo um histórico fartamente ignorado.

Quem sabia que o futebol feminino era proibido por lei, e isso até 1979? O texto da lei insinuava que tal esporte poderia prejudicar as funções reprodutivas… E, para as reuniões de idealização do Museu do Futebol, a ser criado, nenhuma mulher foi convidada. Futebol era coisa de homem.

Depois, houve duas exposições que trataram do tema. “Visibilidade para o futebol feminino” (2015) contou para seu planejamento com o concurso de profissionais mulheres, não só atletas, mas também árbitras e jornalistas de campo. E tratou de incluir mulheres no acervo do museu, mexendo nas vitrines e na exposição permanente. Marta deixou de estar sozinha. “Contra-ataque!” (2019) dedicou-se ao histórico do esporte, mostrando as estratégias criadas pelas mulheres para poderem jogar, driblando a proibição, apresentando-se como amadoras e não profissionais, fazendo jogos beneficentes etc.

Causou celeuma o que aconteceu em 1982, quando a atriz Ruth Escobar organizou o 1º. Festival das Mulheres nas Artes, programando um jogo feminino no Morumbi, antes de um Corinthians x São Paulo habitual. Na hora, as jogadoras foram barradas, sendo que Sócrates e Casagrande saíram em sua defesa e ameaçaram não entrar em campo. Depois de muita parlamentação, o jogo seria realizado, mas apenas como beneficente.

E só em 1991 a primeira Copa de futebol feminino seria realizada, com organização da Fifa e sede na China.

Essas mostras preparadas pelo Museu do Futebol com vistas às mulheres foram aos poucos mudando o panorama. Tanto que, quando surgiu a exposição Rainhas de Copas (2023), o equilíbrio entre os visitantes atingiu meio a meio, deixando para trás a porcentagem de 70 % de homens dos primeiros tempos.

Tabus como esses não são exclusividade nossa. O filme inglês Driblando o destino (Bend it like Beckman) narra a estória de uma menina que queria jogar futebol e, para complicar as coisas, pertencia a uma família indiana de costumes tradicionais. Embora vivesse na Inglaterra, aguardava-a um casamento arranjado, quando tudo o que queria era dedicar-se ao futebol profissional, emulando os passos de seu ídolo David Beckman.

E por falar nisso, bem que uma mulher – dentre tantas e tão boas cineastas com que temos o privilégio de contar em nosso país – poderia dirigir um filme sobre um caso semelhante, historiando os percalços até jurídicos da questão entre nós. Quem se habilita?

Alvíssaras! A próxima Copa de Futebol Feminino em 2027 será sediada pelo Brasil, e será uma primeira vez, não só em nosso país como em toda a América Latina. O Brasil bateu a Europa na candidatura e, embora já tenha tentado em 2023, nada conseguiu por falta de apoio do governo federal. O que agora, ao contrário, foi um trunfo que contribuiu para a vitória.

2.

Quem viu Julia Roberts e Kristen Stewart descalças no tapete vermelho em Cannes, esfregou os olhos, sem acreditar na visão insólita. Era protesto contra o requisito, logo revogado, que vedava a entrada a mulheres que dispensassem o salto alto. Ou seja, apenas mais um ato impensado de misoginia, no exercício do patriarcalismo…

Entretanto, o Festival de Cannes, o maior e mais prestigioso de todos, tem sido nos últimos anos um baluarte da causa das mulheres. Em 2018, Cate Blanchet foi presidente do júri, liderando com Agnès Varda uma marcha de 82 mulheres do cinema, para mostrar concretamente o número de diretoras que já subiram a escadaria, quando comparadas aos 1.688 diretores homens que o fizeram.

Quanto ao galardão máximo, a Palma de Ouro, vejam-se as estatísticas, que confirmam esses dados: 71 diretores homens já a receberam, enquanto até hoje só 4 mulheres diretoras foram agraciadas, desde que a neozelandesa Jane Campion quebrou o tabu com O piano, O ano passado foi a vez de Justine Triet por Anatomia de uma queda (2023), apenas a terceira mulher a receber a Palma de Ouro.

O festival de Cannes deste ano de 2024 continua na trilha feminista. Os dois prêmios honorários foram para uma mulher e um homem – e, motivo de regozijo, não para dois homens. George Lucas levou um mas, felizmente, Meryl Streep, de longe a maior estrela de Hollywood e grande atriz por qualquer padrão, levou o outro. Ela sempre daquele jeitão simples, cabelo branco recolhido num coque sem artifícios, brincos pendentes, levemente maquiada, num elegante vestido liso de mangas compridas e sem decote, recolhido num ligeiro drapeado à cintura… E seu ar saudável de profissional séria, avessa a exibicionismo e badalações.

Deu-se realce a um punhado de diretoras mulheres, que concorreram à Palma de Ouro, sendo uma indiana (que acabaria levando o Grande Prêmio), uma inglesa e duas francesas.

Uma das francesas dirigiu The substance que, anunciado como de “terror satírico”, desperta curiosidade. Traz de volta Demi Moore, que não tem tido muita sorte desde que regressou às telas. Cumprindo um destino típico de mulher, ela, no auge da fama e da fase mais produtiva de sua vida, casou-se e teve três filhas em seguida, dedicando-se a criá-las e detonando sua carreira. Ficou anos desaparecida e quando reapareceu, foi em nível rebaixado. Ela merece o retorno e, ao surgir pessoalmente, o público em Cannes prorrompeu numa ovação que durou 12 minutos.

Afinal, a Palma de Ouro iria mesmo para um americano, Sean Baker, com Anora. Ao menos pôs uma stripper como protagonista, tema caro a este diretor independente, que em seu agradecimento dedicou o filme às trabalhadoras do sexo do mundo inteiro.

Este ano o júri foi presidido por Greta Gerwig, de distinta carreira no cinema nova-iorquino. Quando se decidiu a assumir a direção, logo obteve êxito, tendo-se destacado com Ladybird, adoráveis mulheres (refilmagem do livro Little women, de Louisa May Alcott) e sobretudo o aclamado Barbie. Hoje é reconhecida como autora de filmes que contestam os padrões de feminilidade impostos pelo patriarcado.

O prêmio de melhor atriz trouxe uma peculiaridade: foi partilhado pelo elenco feminino. Todas as protagonistas de Emília Pérez, musical filmado no México pelo francês Jacques Audiard, receberam conjuntamente o primeiro lugar: Adriana Paz, Zoé Saldaña, Selena Gomez e Karla Sofía Gascón. Esta última é uma mulher transgênero, a primeira a receber um prêmio em Cannes.

Em geral, na temática de vários dos 22 filmes que concorriam ao principal prêmio da mostra, sobressaemas trabalhadoras do sexo, as refugiadas e as mulheres transgênero,

Ultimamente, a L`Oréal passou a bancar um prêmio para curta-metragens feitos por mulheres, que contou com duas brasileiras no júri especial, Taís Araújo e Gabriela Carneiro da Cunha. Taís Araújo belíssima no tapete vermelho, num tomara-que-caia amarelo ouro, que contrastava com seu tom de pele, e o cabelão imenso ao natural, eriçado. Para que não se pense que é um júri menor, com juradas menores, constate-se que elas desempenharam sua tarefa ombro a ombro com ninguém menos que Viola Davis e Helen Mirren.

*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul). [amzn.to/3ZboOZj]

Para ler o primeiro artigo da série clique em https://aterraeredonda.com.br/as-invisiveis/


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