Com os olhos do “convertido”

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Por DEBORA REZENDE DE ALMEIDA*

Por que o discurso bolsonarista tem adesão? Ou, por que parcela da população parece ainda dizer: “e daí?”

22 de abril é uma data histórica, o início da empreitada portuguesa de exploração e expropriação do nosso território, riquezas e população. Como bem lembra Marilena Chauí[i], para levar a cabo tal empreitada foi preciso mais que força. A tarefa colonizadora também teve que lançar mão da construção de um mito, éramos a terra prometida, fazíamos parte da história divina, faltava apenas o agente para concretizá-la, salvá-la.  520 anos depois, no mesmo dia, ainda vemos homens se alçando à condição de salvadores, ou, pelo menos, vendendo a ideia que podem salvar o Brasil do seu destino corrompido. É o que revela o vídeo da reunião ministerial, liberado para divulgação pelo Ministro do STF, Celso de Mello. Sendo uma reunião que ocorre quando a pandemia COVID-19 já atingia fortemente o país, esperava-se encontrar, no mínimo, indícios de planejamento à crise. Mas o tema central não era a crise sanitária. Afinal, o governo deve “tratar da questão política também. Tá certo? Então é… essa é a preocupação temos que ter, porque a luta pelo poder continua”, declarou o presidente. Tratava-se na verdade de um puxão de orelhas, a oportunidade de os ministros mostrarem o quanto estão de fato comprometidos com o projeto político do governo.

Não faltam análises sobre o malfadado vídeo nas redes sociais e jornais. Enquanto alguns veem reforços à “delação premiada” de Sérgio Moro e possível queda do presidente, outros apontam para a fraqueza das provas, o que reforça um traço característico do então ministro e ex-juiz. Pior ainda, o vídeo poderia servir de reforço da base bolsonarista, afinal, não se tratava de uma reunião ministerial, mas de um comício a portas fechadas. O tom era tão enfático que parecia se saber que um dia ganharia as telas do horário nobre. Enfim, não faltam interpretações viáveis ou perguntas para o enredo: quando virá a reação das instituições políticas diretamente aviltadas durante o showmício? Esta é apenas mais uma demonstração de fraqueza e um capítulo de uma saga que está caminhando para o fim?

Gostaria de chamar atenção para o meu viés de seleção: é preocupante o tipo de apelo popular que os discursos presidencial e ministeriais emanam. E a pergunta que fica é: por que este tipo de discurso tem adesão? Ou, por que parcela da população parece ainda dizer: “e daí?”, diante do que, para alguns, é sinal de barbárie ou grave crise da democracia. Ministros e o presidente não apresentavam propostas, mas competiam pelo maior número de xingamentos; outros, preferiram se respaldar em teorias da conspiração – índios teriam sido contaminados propositalmente para derrubar o governo, segundo a Ministra Damares – do que em dados científicos. É clara a falta de estratégia, de planejamento para o enfrentamento da COVID-19 e também a perversidade de algumas declarações. Para além do escárnio contra STF, governadores e prefeitos, uma das sugestões foi aproveitar que o povo e a imprensa estão distraídos com a COVID-19 para passar a boiada, abrir a porteira e destruir de vez o meio ambiente em nome de um suposto crescimento econômico (Ministro Ricardo Salles), ou mesmo se preocupar com os hospitais privados, afinal estão perdendo clientes (Ex-ministro Nelson Teich da Saúde).

Não é de hoje que a estratégia bolsonarista se pauta pelo disse me disse e depois disse que não disse. Apesar de tudo, seu discurso ainda tem apelo para uma parte do povo. Podemos esbravejar, denunciar e discordar, mas uma estratégia de reativação da esquerda progressista precisa levar a sério as razões desse apelo. Embora a ascensão da direita e de um discurso autoritário não seja privilégio do Brasil e os fatores para tal reemergência sejam variados, chamo a atenção para duas dimensões diretamente relacionadas com o funcionamento da representação: a dimensão da educação política e da inclusividade de nossa democracia. É preciso relembrar que as imagens que os representantes oferecem ao povo são múltiplas e estão em competição, esperando adesão de uma audiência. A adesão aos discursos depende, de um lado, das distintas performances ativadas pelos representantes e suas habilidades comunicativas. De outro, da maneira que discursos têm ressonância no tecido social. A recepção pelos representados destes discursos e a avaliação que fazem sobre as performances estão mediadas pelo contexto em que estão inseridos, pelo conhecimento, informação e experiência que têm do e com o mundo[ii].

Primeiramente, no que tange ao conhecimento e informação, a representação política não é independente de um processo de alfabetização política. Para Frei Betto, ex-assessor especial de Lula, o Partido dos Trabalhadores fez muito pela política em termos de ganhos materiais, transformando o cidadão em consumista, mas deixou de lado o seu projeto de educação política[iii].  Para além de diagnosticar o problema, a desigualdade ou corrupção, por exemplo, as pessoas precisam ser capazes de pensar suas causas, dimensões estruturais. A falta de alfabetização política, somada às mudanças constantes no processo de comunicação política, podem afetar diretamente a democracia se tomamos em consideração a relação estreita entre informação e formação política. Em um mundo no qual as pautas dos candidatos e os temas tratados cada vez menos passam por filtros – papel antes exercido, mesmo que de maneira limitada, pelos meios de comunicação tradicionais – os cidadãos estão cada vez mais expostos a argumentos polarizados, ao invés de distintas visões de mundo[iv]. Ademais, sabemos que, apesar do discurso de que mídias sociais permitem estratégias diretas de comunicação, elas continuam a ser mediadas por diversos interesses e pelo poder desigual de recursos, o que afeta o tipo de conhecimento que é transmitido e acessado.

Em segundo lugar, a representação envolve não apenas o contato com discursos, mas também a experiência com seus resultados. Por mais que os governos de esquerda tenham avançado na conquista de direitos, sabemos que limites estruturais não foram ultrapassados e que a inclusão foi limitada. Com várias pessoas permanecendo à margem e com a sensação de insegurança generalizada, é cada vez mais apelativo um discurso de volta a um passado seguro, mesmo que antidemocrático. A baixa experiência com a democracia e a cidadania incompleta em termos de direitos sociais e civis tornam a defesa do Estado de direito algo muito abstrato, fazendo mover mais uma vez o pêndulo da democracia[v]. Como falar para este povo expropriado há mais de 500 anos que existe algo valioso, como a ideia de Estado de direito? Ou mesmo que o cidadão não pode se armar, quando o próprio Estado que deveria nos proteger mata um jovem de 14 anos por ser suspeito – leia-se negro e periférico? Como explicar que o Supremo a quem os ministros querem prender e que nós defendemos, é o mesmo Supremo que deu aval para o golpe parlamentar e que troca de opinião como quem troca a toga? Como explicar que a corrupção é um mal, mas que não bastam discursos inflamados ou um homem “bom” para lidar com ela?

Nesse sentido, se tentamos olhar com os olhos do “convertido”, é possível perceber como algumas falas têm apelo. Entre a enunciação do discurso e sua adesão há várias possibilidades de interpretação. Por exemplo, para o presidente “Tem que ser um governo com a… com altivez. Se expor, mostrar que nós temos o povo do nosso lado. Que nós somos submissos ao povo.” Alguém discorda disso? Para o ministro Ernesto Araújo, o projeto do presidente não é “simplesmente a eficiência, a pujança, o crescimento econômico, mas, liberdade… o combate à corrupção, o… a reinvenção de um Brasil, é… livre, de um Brasil livre dessas, é… mazelas que nós conhecemos”. Parece um estadista? E apelando ao dilema moral que alimenta as eleições de maneira intensa, pelo menos desde 2010, Damares declara “este governo é um governo pró-vida, um governo pró-família. Então, por favor. E aí quando a gente fala de valores, ministro, eu quero dizer que nós estávamos, sim, no caminho certo”. Valores e família todos defendemos. E para terminar com o puxa-saco mor da república “É [preciso] acabar com essa porcaria que é Brasília. Isso daqui é um cancro de corrupção, de privilégio” (Abraham Weintraub, Ministro da Educação). Imagem mais que difundida, infelizmente, desta bela cidade. Reforçando o argumento, o presidente retifica “O que o Weintraub tá falando […] são pessoas aqui em Brasília, dos Três Poderes, que não sabem o que é povo. Eu converso com alguns, não sabe o que é o feijão com arroz, não sabe o que é um supermercado. Esqueceu. Acha que o dinheiro cai do céu”[vi]. O apelo ao povo sem alimento e carente não é privilégio dos discursos proferidos por Lula.

Há duas opções, a gente pode torcer o nariz para as falas ou tentar compreende-las. É inegável que a direita conservadora se apropriou do discurso de direitos. Nesse contexto, há um grande desafio político que implica não negar as carências, os desafios da política e a correta raiva da corrupção, mas traduzir politicamente para o povo que existem caminhos para tratar destes problemas. Isso não se faz sem educação política e sem um projeto radicalmente inclusivo da política. Como já disse, as razões para adesão ao discurso são variadas. Não é apenas falta de conhecimento ou exclusão. Também embarcam conscientemente aqueles que querem manter o status quo e os seus privilégios. Embora isso também não deixe de ser um pouco resultado da baixa convivência com a democracia. Ademais, discursos populistas não são essencialmente espontâneos, também são utilizados estrategicamente para aprofundar crises políticas[vii]. O fato é que Bolsonaro pode cair, pois parece estar exagerando no tom quando lhe faltam aliados, mas seu discurso ainda terá ressonância. Entre os mais ou menos 50% que hoje estão insatisfeitos com o governo, muitos adeririam facilmente ao “morismo salvacionista”, mesmo que sem respeito às leis. O problema então não vai desaparecer, mas estará mais vivo que nunca ainda em 2022. É preciso então escutar melhor e imaginar outra forma de fazer política.

*Debora Rezende de Almeida é professora do Instituto de Ciência Política da UNB.

[i] CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.

[ii] SAWARD, Michael. The representative claim. Oxford: Oxford University Press, 2010.

[iii] BETTO, Frei. A mosca azul. Editora Rocco, 2006. Para o autor, o Programa Fome Zero, por exemplo, continha na sua origem esta dimensão educativa, mas foi transformado em política compensatória.

[iv] Gurza Lavalle, Adrian. Democracia, representação e redes sociais. Disponível em: https://constitucionalismo.com.br/democracia-representacao-e-redes-sociais/

[v] AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. São Paulo: Todavia, 2019.

[vi] Todas as falas foram retiradas da transcrição do áudio da reunião ministerial, em 22 de abril de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/leia-a-integra-das-falas-de-bolsonaro-e-ministros-em-reuniao-ministerial-gravada.shtml           

[vii] Moffitt, B. The global rise of populism: performance, political style, and representation. Stanford, CA: Stanford University Press, 2016.

 

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