Por DIOGO FAGUNDES*
A derrota rápida e impressionante do regime de Hafez al-Assad indica mais uma espécie de implosão interna do que derrota militar
Vivemos tempos de desorientação e caos. A ordem mundial construída após o fim da Segunda Guerra Mundial desmoronou e nada ocupou seu lugar. Os EUA, dominados pela húbris imperial, após o fim da URSS, não soube ou não quis criar um ambiente global estável e capaz de abarcar interesses de outras potências. O exclusivismo unipolar inviabilizou qualquer arranjo arquitetônico viável. Neste ínterim, entre o velho que agoniza e o novo que custa a nascer, como falava Antonio Gramsci, monstros são produzidos. Eis uma mirada panorâmica de dois locais nevrálgicos para uma possível conflagração mundial: Oriente Médio e Europa.
Síria
A derrota rápida e impressionante do regime de Hafez al-Assad indica mais uma espécie de implosão interna do que derrota militar. Os rebeldes sírios atropelaram tudo num furacão, tomando Aleppo, Hama e Homs em um curtíssimo período de tempo. É bom lembrar que essas cidades foram palco de empedernida e tenaz luta durante a guerra de 2011 a 2014, com combates bairro a bairro, palmo a palmo. A comparação entre ambos os eventos impressiona. Indica a total falência do baathismo sírio. Estados que se sustentam apenas com ajuda externa, sem apoio interno, não têm chance alguma de se viabilizarem no longo prazo.
Tudo isso tem que ser compreendido à luz do estado bastante singular do país após sua (improvável, é bom lembrar) sobreviência, com auxílio decisivo de Rússia, Hezbollah e Irã. Na prática, era um Estado não totalmente soberano, com EUA ocupando o leste do país – onde há muito petróleo –, refém do jogo geopolítico, alvo de pesadas sanções econômicas, lidando com constantes ataques aéreos israelenses e guerra “proxy“. Um modelo do imperialismo do século XXI: uma zona anárquica onde coexistem grupos jihadistas, anomia e vastos interesses econômicos e geopolíticos.
É bastante compreensível que muita gente oprimida enxergue a situação como libertação. Hafez al-Bashar não era tão carniceiro quanto seu pai, mas ainda assim deixou muita gente justamente revoltada. No plano econômico, o estilo mais “socialista” foi abandonado a partir dos anos 1990. Acontece que é muito improvável que uma situação de estabilidade e paz se consolide. Em primeiro lugar, porque quem lidera a insurgência é o HTS, um “rebranding” da Al-Nusra (a filial local da Al-Qaeda), que tanta destruição e barbaridade cometeu na região.
Por mais que a retórica atual indique menos sectarismo, é difícil confiar em Abu Mohammad al-Jolani, um líder formado ideológica e politicamente em torno do mais radical sectarismo contra cristãos e xiitas. Torço para que o esforço de relações públicas – contando com a mídia ocidental –, indicando uma mudança de postura para o “pragmatismo”, seja verdadeiro, mas é mais prudente desconfiar. Querendo ou não, Hafez al-Assad mantinha um Estado laico tolerante com a diversidade étnica e religiosa do país. Este aspecto pode piorar brutalmente, como já vimos no passado, quando os “rebeldes sírios” chocaram o mundo com seus massacres fanáticos.
Quem ganha? Turquia, certamente. A geopolítica neootomana de Recep Erdogan foi o grande ator regional a impulsionar o jihadismo local, com direito à arregimentação de povos turcos para as fileiras dos rebeldes, como os uigures. Isso indica bem que Recep Erdogan é independente da Rússia, alguém bem pouco confiável, apesar das suas manobras e compromissos: seu projeto próprio envolve desde o Cáucaso (vide apoio ao Azerbaijão) até a Ásia Central, passando pelo Oriente Médio.
Israel, também. Benjamin Netanyahu, como sempre pouco discreto, já apareceu nas Colinas de Golã comemorando a queda de Hafez al-Assad, atribuindo a si o papel principal na vitória, por ter inviabilizado o apoio de Hezbollah e Irã com suas guerras regionais. O país sionista aproveitou a brecha para rasgar o compromisso estabelecido em 1974 e expandir seu território na Síria.
No atual momento, bombardeia Damasco, desmilitarizando o seu inimigo. Pode parecer contraintuitivo, mas a presença de jihadistas extremistas não necessariamente é ruim para o país, afinal seu objetivo maior é desestabilizar Estados rivais, e para tal finalidade esses grupos são muito úteis (na guerra anterior, noticiou-se que hospitais isralenses tratavam até mesmo membros feridos do ISIS).
É bem provável que o país passe por uma “balcanização” caótica ao estilo Líbia, sem qualquer autoridade central. Isto é ótimo para os inimigos do Irã e da Rússia, que são os grandes derrotados do dia. Tanto esforço russo em manter Assad para, no fim, obter tal resultado? Dificilmente o sofrido povo sírio terá alguma redenção no desenrolar destes fatos, ainda mais se as promessas tolerantes da HTS forem apenas da boca para fora. É instrutivo ver a reação do Ocidente: tratam Hezbollah e Hamas como terroristas, mas são compreensivos com gente da Al-Qaeda, infinitamente mais sectária, violenta e “fascista”. Quando o Talibã conseguiu expulsar os EUA do Afeganistão, achavam absurdo qualquer comemoração, afinal de contas tratava-se de um grupo extremista, mas agora pode?
De qualquer forma, o horizonte é sombrio. Os triunfalistas da multipolaridade, que acreditam que a Rússia lidera de modo imbatível uma nova ordem mundial, viram suas narrativas desabarem com a fragilidade da queda. A verdade é que, se o bloco atlantista liderado pelos EUA, de fato, é decadente e sofre atualmente uma grande derrota na Ucrânia, a coalizão russo-chinesa está longe de ter a solidez que pintam, principalmente porque depende de regimes pouco amados pelos seus respectivos povos.
O mais provável é que a guerra entre os dois blocos, na forma de agentes “proxies“, termine apenas em destruição infernal e sofrimento. Atualmente, nada regula este confronto: estamos numa situação bem pior que a da Guerra Fria, com um nível de consciência sobre os perigos por parte da humanidade muito menor. O direito internacional já era. Já faz parte do discurso público considerar o uso tático de armas nucleares. Esta situação dificilmente acabará bem.
Para onde vai a Europa?
Emmanuel Macron, após ignorar o resultado das urnas e formar um governo excluindo a coalizão vencedora, presenteia a França com o primeiro-ministro de passagem mais rápida da história. O motivo da queda? O rechaço do Legislativo aos excessos da ambição austericida e autoritária, o único dogma religioso ainda vigente nas sociedades ocidentais. Enquanto isso, na frente externa, diz que se recusará a prender Benjamin Netanyahu se este pisar em território francês, mesmo após a condenação da Tribunal Penal Internacional, cuja jurisdição o Estado francês supostamente reconhece. Desmoralização completa do direito internacional, este pilar da “ordem internacional baseada em regras”! Como alguém ainda levará isto a sério?
Na Alemanha, em meio a uma crise econômica decorrente de políticas estúpidas contra a Rússia motivadas por reboquismo ao EUA, uma política de perseguição feroz a qualquer um que ouse discordar das ações do Estado de Israel põe a nu a profunda intolerância à discordância real em meio ao engodo do palavrório liberal de tolerância e respeito à diversidade.
Frente à vitória eleitoral, na Romênia, durante o primeiro turno, de um candidato (com posições reacionárias, é verdade) não alinhado às posições do establishment europeu, cancela-se o resultado via golpe judiciário a partir de uma campanha de TikTok (?!). Ninguém acha anormal, segue o jogo. Afinal de contas, as eleições são feitas para consagrar os candidatos certos, aceitáveis. Importa-se para o território europeu uma concepção que já vigia na relação das potências capitalistas com o Terceiro Mundo: golpe militar no Egito ou Argélia, contra o resultado das urnas, foram aceitos já que os vitoriosos estavam do lado errado.
A descredibilização da democracia avança a passos largos. Após a “vontade popular” supostamente consagrada pelo sufrágio ter sido esmagada por razões econômico-financeiras (caso da relação da Troika europeia frente à vitória eleitoral do Syriza na Grécia, em meados da década passada), indicando bem quem mandava de fato nas tais democracias, agora há uma etapa mais aprofundada da recusa de qualquer heterogeneidade política, em uma verdadeira ditadura do pensamento único.
*Diogo Fagundes é mestrando em Direito e graduando em Filosofia na USP.
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