Variações em torno do vampiro de Curitiba

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Por ALEXANDRE DE OLIVEIRA TORRES CARRASCO*

Homenagem ao escritor Dalton Trevisan, falecido recentemente

“minioração fúnebre para rené descartes. \ Bene vixit qui bene latuit. (…) \ Respousa sob a laje \ o que viveu oculto. \ Poupem-no do ultraje \ do tumulto”
(Paulo Leminski).

“Ao calor das três da tarde, dormia a cidade sob o zumbido das moscas. O rapaz de linho branco dobrou a esquina – “Eis que vejo a sarça ardente” ; o asfalto mole e pegajoso debaixo dos pés. Todas as ruas desertas, mas não aquela, apinhada de gente e de tal maneira que transbordava das calçadas. “É um enterro” , disse consigo, “ mas não há morto”
(Dalton Trevisan, “A velha querida”. In: Novelas nada exemplares).

Onde estão as neves de antanho?, O Vampiro acorda tarde, melancólico, olhos remelentos, de chinelas trocadas sai do esquife da araucária de lei. Contempla o mundo do doutorzinho de preto, do bispo, do general, do cobrador: o mundo é uma faca no coração, quanto mais mexe, mais sangra.

Balada do vampiro

Ele desce a Trajano, contorna a Catedral e chega à praça Tiradentes. No caminho, os mais variados tipos: tristes e alegres tipos, segue em préstito a exótica fauna curitibana. Um suspiro, um sorriso nervoso, eis a última paixão: cadê a mocinha de vermelho? Para esconder o medo, assovia. Descobre que não saber assoviar, não tem mais tempo para aprender. Escapa dos olhares selvagens que o perseguem – os variados tipos – pelo calçadão estreito, do lado direito a salvação, do esquerdo a perdição, e não percebe imediatamente naqueles rostos amarrotados e rotos, aquela oferta bizarra de mercadorias baratas expostas no chão, a mesma sina e destino que o dele, almofadinha de gomex no cabelo: dor de cotovelo, mil anos de paixão, amor incurável no tango de passinho floreado de Ney Traple. Ou melhor, intui vagamente essa filiação metafísica, mas não pensa nem se incomoda com suas consequências: o vampiro sabe o tanto de sangue que já jorrou, o tanto que há por jorrar. O cogito bateu asas e voou. Estamos todos perdidos, arruindos, endividados? Até a Araucária do meio da praça, mas não encontra, quem?, a mocinha de vermelho? Não sabe o que procura, só não encontra. A revoada de pombos encardidos o saúda e o persegue, o leão de circo, juba encardida, resfriado, reclama, “não aguento mais o domador”. Para, pensa em colocar o cigarrinho na boca. Bendito cigarrinho. Eu não fumo, surpreende-se. Então, o Vampiro pensa em primeira pessoa. Foram três ou quatro badaladas? Foram seis. Passa a multidão dos mortos vivos, e eu fico preso a um silêncio atroz, a essa cidade perdida, aquele amor da mocinha de vermelho, bebendo dor de cotovelo na friagem curitibana. A praça se calou? Para onde foram todas as vozes? Segue em direção à Rio Branco. Ficaram seis badaladas ressoando e todos calados: eu e você somos dois rufiões de François Villon. Quem entrou na Catedral antes de fecharem a porta? No mercado de Flores a mocinha me oferece rosas, em buquê, sortidas, vermelhas: “hoje pra você eu sou espinho, espinho não machuca a flor”. Será que já beijou? Nem todo dia é dia de beijo, e o Vampiro moço mal desconfia dessa verdade; hoje beija, amanhã não beija, e segunda-feira ninguém sabe o que será.

Calma, paramos nas badaladas. O sino. O Vampiro para, pensa, ausculta. Nada. De novo, o silêncio atravessando tudo. Lembrou de outra cidade. Com suas ruas ortogonais. Pesou ou imaginou sopesar a matéria de tudo – reencontraria o cogito no mercado de flores e o bom senso bem distribuído em um banco de sangue universal? Contou os passos. Entrou no café. Procurou a solução definitiva: hoje pra você eu espinho, espinho não machuca a flor. É no espelho que eu vejo a minha mágoa, a minha dor, e os meus olhos rasos d’água.

Foge dos espelhos e esconde a sua imagem: tire o seu sorriso do caminho.

Que fim levou o vampiro de, etc, etc, etc.

Pelo calçadão da Quinze, rápido. Um sol imenso, um calor atípico. Escondo-me atrás de imensos óculos escuros, escuríssimos, e sigo palmilhando a cidade em horário impróprio. Escaparei do exército de zumbis? E se o domador do circo me encontra? Mesmo quente, Curitiba é fria, gelada, e se vê essa fria substância no olhar da mocinha, de sapatos na mão, chinelinho estalando (salto alto só no escritório, meu bem), na jovem mamãe com a filhinha no colo, as duas sérias e compenetradas em suas seriedades. Vamos mamãe que paradas é que não ficamos. O vampiro não estranha a frieza desses olhares coloridos nem a seriedade dos bebês. Pelo contrário, acolhe todos e sente o coração aquecido pelo frio cortante dessas gentes, enquanto a rua se inflama, faz sublimar os últimos bons sentimentos. Não eram muitos, afinal.

O que temos para hoje, então ? se pergunta, entre aflito e ansioso. O mar. Meu bem, o mar. Estou em busca do mar.

Na praça Rio Branco, deixei o amor no quarto do Hotel. Duas vezes, mil noites de paixão. Era primeiro ou segundo andar, a porta da esquerda? Não me lembro, mas fazia um frio curitibano, as ruas geladas, enquanto os olhares eram quente e pegávamos o calor um do outro com as duas mãos. Tendes piedade de mim, óh Senhor. Cuidado pra não se queimar, para não quebras as unhas, para não arranhar as costas, dona mocinha? Pra você eu sou espinho. Passou meu tempo bonitinha, mas o coração continua.

Dá uivos Ohhh porta, grita Ohhh rio Belém, eu sei que você está morto. A mocinha passa de blusa solta, não sorri. Pisa duro. Passo apressado. Encontra o mocinho na esquina da Pedro Ivo: já não é ressoante de abelha? Todos batem palmas pra mocinha de vermelho. O vampiro não inveja nem mostra os caninos: sorri para o amor alheio, mas não fica alheio ao amor. Os que se amam sem amor não terão o reino dos céus.

Ninguém me vê. Não são só os óculos. Já sou sombra, sou fantasma, sou fumaça de vampiro que vaza pelo escape do ônibus lotado, às seis da tarde, no ruído abafado da multidão. Vampiro tímido e moço , esconde os caninos, manca das duas asas e foge dos espelhos, é no espelho que eu vejo as minhas mágoas, a minha dor e meus olhos rasos d’água. Se o olhar certo me descobre, congelo, apaixonado. Nem alho, nem estaca. E se me descobrem aqui, nesse horário? Sobram todas as lembranças do que perdi antes de chegar a esse meio dia que me mata de calor e sede. Os mil anos de paixão; não amiguinhos, não, nem suspiro nem assobio nem cigarrinho nem conhaque no Tic-Tac aliviam mil anos de paixão.

 – Por onde anda afinal, que fim levou o vampiro louco do calçadão? Para onde fui, amado pelas táxi-girls, dançarino de tango em passinho floreado, mão no bolso e olhar baixo, um tímido no fundo, dois goles de conhaque, uma dose para mim outra para ela, passo apertado até chegar a choperia Polar, que sem fins me levaram?

 Em busca do mar? Pinta, Niña, Santa Maria?

 – Não tem mar, Alexandre, na tua Curitiba.

(Aos cinquenta anos você pede menos que Diógenes, nem reclama da sombra de Alexandre na soleira do tonel.)

“Misturou-se com o povo que, ora diante das portas, ora de cabeça erguida para as janelas, adorava as imagens douradas nos seus nichos, dir-se-ia indiferentes à aflição dos homens, não fora o gesto de esperança com que todas balouçavam a mão direita, unindo em círculo perfeito o polegar e o indicador, no convite ao gozo da inocência perdida e recuperada, até que o rapaz de linho branco as deixou para trás, enquanto duas varejeiras lhe zumbiam em volta da cabeça e mais uma vez repetiu: “Tudo já passou. Não foi nada. Já passou. Agora estou bem.” (Dalton Trevisan, “A velha querida”. In: Novelas nada exemplares).

*Alexandre de Oliveira Torres Carrasco é professor de filosofia na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).


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