Compartilhar

Imagem: David Yu
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Por RENATO ORTIZ*

A internet não é um espaço comunitário, devido sua dimensão global ela opera através da segmentação dos grupos (correlata à segmentação do mercado)

O termo partilhar implica em divisão – esse é o seu sentido primeiro, o que existia é parcelado entre um número específico de pessoas. Há, portanto, um antes, algo que precedia em sua unidade, e um depois, que permanece após o fracionamento. A divisão contradiz a integridade daquilo que constituía um todo; ela se afirma através da diminuição, a cada declinação do objeto originário sua essência se fragiliza.

É o caso de seu significado no vocabulário jurídico: a partilha é um processo regulamentado no qual os bens, que antes figuravam como inteiros, são distribuídos entre os herdeiros. As partes constituem assim um fragmento específico, idiossincrático, e não mais denotam o que havia de comum entre elas. Ao se acrescentar a partícula “com” ao verbo, o estatuto da palavra muda, o movimento de fragmentação é atenuado pela ênfase naquilo que é compartilhado.

Duas forças, diversas e antagônicas, devem coabitar e exprimir um conjunto congruente de sentidos. Compartilhar é participar de um mesmo solo, de uma memória. Desta forma, o comum e o discreto fazem parte de uma intenção idêntica e o movimento de redução se anula. Um exemplo: o universo religioso, quando os fiéis, durante o momento do culto e das celebrações, cada um, separadamente, partilha com os outros sentimentos e emoções. A “igreja”, ou melhor, a “comunidade”, os integra ao espaço de uma memória coletiva que estreita os laços que os aproximam.

Compartilhar torna-se complemento de comungar, fazer parte de um universo comum (essa é a ideia do ritual da comunhão, partilhar o corpo de Cristo; todos se encontram em sua inteireza). O conceito encerra assim duas dimensões: reconhecimento e solidariedade. O reconhecimento é um mecanismo individual, ele afirma a existência de alguém, mas a situa em algo que a transcende. A solidariedade representa os laços que religam aqueles que participam de um mesmo conjunto.

Esse era o ideal que alimentava o socialismo utópico. A proposta de falanstério de Fourier pretendia justamente recuperar a solidariedade perdida no processo de industrialização e de fragmentação da modernidade. A comunitas, erigida fora dos eflúvios da miséria urbana, da modernidade perversa, seria um lugar de reconhecimento compartilhado, microcosmo no qual a divisão da partilha se atenuaria.

O mundo digital é um espaço de redefinição do sentido das palavras; nele, imperam os neologismos. Compartilhamento é uma dessas noções que se adaptaram ao seu formato. Diz-se que as mensagens podem ser compartilhadas por milhões de indivíduos (lembro que o falanstério de Fourier abrigava uma população limitada, não mais do que 1.500 pessoas); que um influenciador ou uma celebridade compartilha com os outros “sua vida pessoal”. Entretanto, é preciso distinguir entre neologismo e eufemismo.

Na esfera digital tudo é informação, isto é, texto, imagem e som podem ser reduzidos a uma mesma unidade técnica, os bits. A informação é um sinal. Neste sentido, ela é transmitida, mas não necessariamente compartilhada (a história da informática não utiliza o termo compartilhamento, a questão sempre foi a da transmissão das mensagens pelas máquinas).

Não há, ainda, uma divisão do objeto primeiro, como se supõe na noção de partilha, o conteúdo previamente existente é integralmente recuperado após sua circulação pelos canais digitais. A distribuição se faz sem fracionamento. As mensagens são, portanto, unidades discretas que circulam em um ambiente técnico ampliado (internet); elas são capazes de estabelecer a comunicação entre as partes que interagem entre si, no entanto, são incapazes de religá-las (lembro que a palavra religião deriva do latim, religare).

Comunicar é distinto de compartilhar. Trata-se de um ato que certamente estabelece uma relação entre as pessoas, elas encontram-se inter-ligadas. Entretanto, ele não se funda necessariamente em uma memória comum (posso me comunicar com meus inimigos; difamar meus adversários). A esfera digital acelera o contato entre as pessoas, independentemente de estarem próximas ou distantes, porém, o uso da partícula “com”, neste caso, é apenas um eufemismo.

A internet não é um espaço comunitário, devido sua dimensão global ela opera através da segmentação dos grupos (correlata à segmentação do mercado). Cada grupo posiciona os indivíduos dentro de fronteiras específicas, sem integrá-los a uma mesma totalidade (a metáfora da bolha é interessante neste sentido). A “comunidade dos bebedores de Campari” agrega indivíduos com algo em comum, o gosto pela bebida, mas ela não constitui por isso uma memória compartilhada. Seus participantes desfrutam apenas uma contiguidade espacial.

Há uma diferença substantiva entre a ideia de “vínculo” e a ideia de “conexão”. O vínculo nos remete a existência de laços que soldam os indivíduos dentro de uma determinada “comunidade” (amizade, família, ideologia, religião, partido político); a conexão é uma relação técnica. Aqueles que previamente compartilham uma memória coletiva podem se conectar em ocasiões diversas (conversas on line, mensagens, áudios, vídeos, etc.); neste caso a técnica é um instrumento que reforça a solidariedade. Porém, o que os unifica é a memória a que participam.

A internet não é um lugar de encontro, ela é marcada pela separação, sua amplitude favorece a comunicação, não propriamente o compartilhamento (enviar uma mensagem “para todos” é um artifício de linguagem). O termo é na verdade um esforço semântico que atenua a angústia do anonimato, a ilusão de pertencer a algo que nos transcende. Na verdade dos bits impera a divisão da partilha.

*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda). [https://amzn.to/3XopStv]

Publicado originalmente no blog da BVPS.


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