O ímpeto tecnofeudal dos EUA

Imagem: Adrien Olichon
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Por EDNEI DE GENARO*

Enquanto o tecnofeudalismo consolida seu poder nas sombras do capital digital, a democracia resiste — não como um fantasma do passado, mas como um projeto ainda por ser reinventado

Introdução

Benjamin Constant, um dos fundadores do liberalismo, em seu discurso no Ateneu Real de Paris, Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos, de 1819, sentenciou: “o comércio substitui a guerra” (Constant, 1819, p. 4). Aos antigos cabia a conquista pela violência; aos modernos, o “meio mais brando e mais seguro de interessar o adversário em consentir no que convém à sua causa” (Ibidem), o comércio.

Tal tese do liberalismo clássico, confiante no progresso do mercantilismo, na aurora do capitalismo, foi se tornando – da mesma forma que as deturpações radicalizantes da noção de liberdade de expressão de Stuart Mill – deploravelmente insustentável; chegando hoje às suas marcas atuais de violência política e desumanização. Ou seja, o contrário, ‘a guerra substitui o comércio’, sempre esteve entre nós, os modernos. Abissalmente verdadeiro nas experiências totalitárias do século XX. Experiências essas continuamente restauradas e orquestradas de forma radical no Ocidente, a partir do degenerado consórcio tríplice entre o Estado, as corporações e os radicais do conservadorismo cultural.

Na realidade, a própria não-dialética entre o comércio e a guerra não tem respaldo histórico. As ordens ideológicas liberais e seus estados imperiais são resultantes de contínuas ‘guerras comerciais’. Observamos apenas o ruir e nascer de novas ordens e impérios. Desta vez, ao que parece, as principais novidades históricas têm base em dois processos dialéticos: as sintomatologias generalizadas de crise dos projetos democráticos do pós-II Guerra Mundial e a promoção das corporações enquanto hegemon ideológico de estruturação e comando das sociedades, desafiando a visão republicana de Estado, cujo governo é baseado em representantes eleitos pelos cidadãos para a promoção do interesse público.

A atual fase de brutalização – de violência política e desumanização – vem como um maremoto depois de uma breve marola de esperança política, nos anos 2000, com as descentralizações e sociabilidades criadas pela Internet, uma vez que, de fato, são os caos cibernético (Cesarino, 2022) e a volição aceleracionista (Genaro, 2020) – produzidos pelas Big Techs, com seus sistemas, arquiteturas e plataformas – que decompõem e curtos-circuitam os anteriores modelos de mídia e de esfera pública. Neste inédito poder de modulação social que vemos surgir o atual e pernicioso tríplice consórcio entre o Estado, as corporações e os conservadorismos (cristofascistas, sobretudo), fomentando a degradação das estruturas democráticas e de direitos humanos, com base na “liberdade de expressão” enquanto ódio, mentiras e teorias negacionistas, conspiratórias e supremacistas.

Tendo em vista a perspectiva de decadência do imperialismo ideológico e econômico dos EUA, a dinâmica potencial de brutalização é estarrecedoramente reacionária. No vórtice do açodamento dos processos históricos, incitados pelas ordens executivas de Trump, podemos indagar, parafraseando Constant: nós chegamos à outra época? Uma hipotética resposta afirmativa levar-nos-ia a pensar nos variados porquês de o oximoro democracia capitalista não ser mais visto com bons olhos para uma expressiva parte das novas elites da Democracia na América. Com isso, uma janela da história vem sendo aberta, que nos faz sentir os ventos desconhecidos que entram por ela. Eis o que este ensaio busca captar.

Genealogia do liberalismo reacionário

Como recentemente escreveu Perry Anderson (2025), “o universo neoliberal sobre o qual o hegemon da época ainda preside cumpriu amplamente ambos os requisitos” que formam uma ideologia mobilizadora: a capacidade em gerar consentimento e coerção. Contudo, apesar das marcas de seu declínio, “[…] ainda não há uma alternativa consistente ao neoliberalismo como sistema governante de ideias de alcance planetário”. O fim do neoliberalismo, timonado agora pelo mesmo país que deu início, o belicoso EUA, representa, como muitos autores diagnosticaram, o seu próprio sucesso, a saber: o declínio do homem público e a corrosão do caráter (Sennett, 1998; 2004), que desintegraram as solidariedades, os saberes e as agremiações comunitárias, criando um original fermento sócio-histórico: a contração do humano ao tipo anarcocapitalista individualista-empreendedor.

No plano global, navegando nas metamorfoses do capitalismo, capitaneadas por invenções e inovações tecnoinformáticas e movimentos de xadrez geopolítico, vislumbra-se a transposição de um certo “liberalismo social” para a China, ao passo que nos EUA as elites tecnocorporativas, adjunto aos seus líderes-representantes oligarcas e influencers, apoderam-se ascendentemente, em cotidianos assaltos reativos e bárbaros, daquilo que denominávamos esfera pública, estado de direito e república. Em face disso, tencionamos dar atenção à ideologia mobilizadora tornada saliente hoje nos EUA como a alternativa da extrema-direita ao neoliberalismo, mas ainda pouco conhecida entre nós, pela forma intelectual outsider difundida e pelas ideias extravagantes e revisionistas ostentadas, cujas aspirações tecno-libertarianistas ou tecno-anarcocapitalistas de refundação do império americano ficam subsumidas, como esclareceremos, em um iluminismo das trevas.

A correlação entre anarcocapitalismo e medievalismo é estranha e contraditória. Resulta em um tipo de vanguardismo reacionário propondo um tecnofeudalismo como estrutura antecedente e limitante da globalização e do livre mercado. Os impulsos para isso são variados, destacando-se: o domínio dos setores de serviços e financeiros por barões dos mundos algorítmicos, a estagnação econômica prolongada, a redistribuição ascendente de renda e a perda do controle dos EUA (e da Europa) da globalização econômica. Conforme argumenta Varoufakis (2025) – um dos autores que pensam os arranjos tecnofeudais que transformam o capitalismo –, “a combinação de socialismo para financistas, colapso das perspectivas para os 50% mais pobres e rendição de nossas mentes ao capital da nuvem das Big Techs deu origem a um Novo Ocidente. As suas elites arrogantes já não servem ao sistema de valores do século passado. Livre comércio, regras antitruste, emissão zero de carbono, democracia, abertura à migração, diversidade, direitos humanos e o Tribunal Penal Internacional foram tratados com o mesmo desprezo com que os EUA trataram ditadores amigos – seus ‘próprios canalhas’ – quando se tornaram desnecessários”.

No plano estritamente econômico, o mundo multipolar e o encolhimento da influência dos EUA levam a extrema-direita a identificar uma saída para enfrentar a agora problemática “mão invisível do mercado” com base em uma combinação tecnofeudal-capitalista, a saber: a (re)centralização da expropriação econômica por meios extraeconômicos de coerção e servidão, com predomínios de mercados arbitrários (protegidos, colonizadores ou mafiosos), administrados por um “normal” enquanto estado de exceção, escancarando, pois, que o oximoro democracia e liberalismo nunca fora pré-requisito ideológico nem realidade factível.

Contudo, os sentidos filosófico-políticos refundacionais que alimentam a ideologia mobilizadora liberal-reacionária nos EUA, na tentativa de absorverem e demolirem o Estado democrático e republicano para uma refundação valorizando uma estrutura de poder tecnofeudal, precisam ser mais bem esclarecidos e debatidos.

Na genealogia do liberalismo, as duas precedentes inflexões reacionárias, de rebaixamento dos processos de democratização e redistribuição de riquezas, gozaram de características bastante peculiares. Refresquemos um pouco tais: a primeira, constituída pela doutrina dos Estados totalitários nazista e fascistas, gestada entre as décadas de 1920 e 1930, na Europa, esteve em conluio com as corporações capitalistas, formalizando uma arregimentação jurídica, em regime de estado de exceção, conforme as inovações teológicas políticas de Carl Schmitt, que garantiram um estado dual (Fraenkel, 2024), ou seja, tanto preservando certos estados de direito como controlando, ignorando ou desrespeitando leis e direitos fundamentais, em um movimento de massificação e controles ideológicos e culturais das populações por uma máquina de propaganda estatal, utilizando o rádio e o jornal, sobretudo. A segunda inflexão liberal-reacionária, constituída pela doutrina dos Estados neoliberais, gestada desde o início dos anos 1970, na Inglaterra e nos EUA, baseou-se na reconfiguração do papel do Estado na economia e no rebaixamento das garantias de bem-estar social, segundo ideologias libertarianistas de direita (Ludwig von Mises, Friedrich von Hayek), arquitetadas por think tanks como a The Heritage Foundation, fundada em 1973, em Washington (EUA), com o objetivo de promover políticas públicas que limitassem ou privatizassem os espaços públicos e papéis do Estado, dando maior participação às corporações no controle de todas as esferas da vida, inclusive na educação e saúde.

As consequências, sequelas ou ruínas após meio século da doutrina dos Estados neoliberais são agora abissalmente apreciadas a partir da reeleição de Trump, o líder-mensageiro do espectro que ronda o decadente império americano, ou seja, a terceira inflexão reacionária, que desbaratou o plano de inflexão liberal-progressista de Biden, com sua espécie de revival do projeto New Deal, o Build Back Better Plan, que projetava repelir o mito do Estado mau empreendedor ou antagonista do setor privado (Mazzucato, 2014).

No desenrolar de uma escatologia tecnopolítica aceleracionista implementada pelas Big Techs, a doutrina excitada pelo Make America Great Again (MAGA) de Trump desafia e assombra intelectualmente tanto pelas injunções ideológicas iliberais e cristofascistas como pelos deliberados atos que pretendem implodir a máquina republicana de tripartição dos poderes. A magnitude e seriedade dos processos são observadas no outsider “programa de governo” de Trump, o Project 2025, idealizado (novamente) pela The Heritage Foundation, com flagrante estímulo à sobreposição do poder executivo como autoridade máxima, objetivando afrontar o checks and balances dos poderes, o estado de direito e a laicidade.

Trump 2.0

A terceira inflexão reacionária do liberalismo, em gestação populista nos EUA, marchando de forma violenta e decadentista, vem ganhando traços distópicos enquanto Estado tecnofeudal. Lá, os fatos que rumam nesta direção já são abundantes. Em uma listagem incompleta, limitada aos primeiros meses do segundo mandato de Trump, salientaríamos: a valorização anarcolibertária das criptomoedas para negociações anônimas, especulativas e fora da esfera de controles financeiros do Estado; os desacatos e as quebras de acordos e protocolos internacionais em todas as ordens (militar, econômica, direitos humanos, saúde pública etc.); os ataques e as ameaças à imprensa livre e a promoção de influencers (“a juventude trumpista”) como porta-vozes de um populismo cristofascista; a compra de conglomerados midiáticos pela elite tecnocorporativa ascendente e sectária (Washington Post, de Bezos; Twitter, de Musk, o mais tresloucado representante tecno-oligarca, agora expulso da Casa Branca); a criação de uma rede social oficial de culto trumpista (Truth Social); o exercício, apoio e incentivo pelo poder executivo ao desregramento midiático e aos abusos da liberdade de expressão, contra os inimigos; a proibição em qualquer repartição pública do uso de palavras relacionadas às políticas e aos direitos ambientais, de minorias e de lutas de classe (“energia limpa”, “marginalizado”, “justiça social”, “transgênero”, “feminismo”, “diversidade”, “herança cultural”; são quase 200 palavras); a perseguição aos imigrantes latinos e a tentativa de criação de campos de concentração em territórios fora dos EUA (Guantánamo; El Salvador); a destruição de agências e serviços estatais e suas mãos de obra de experts, a partir de liquidações e demissões sumárias; o acossamento e cortes de verbas às universidades americanas para tentar garantir alinhamento político-ideológico; e, por fim, mas não menos importante, a taxação caótica e generalizada aos países, como a etapa inicial de barganha e brutalidade geopolítica para obter acordos unilaterais e exclusivos com os países dependentes economicamente, desglobalizando a economia.

Obviamente, dado a dimensão imperial, a tentativa de refundação tecnofeudal dos EUA não se restringe a ser um reordenamento cultural e político medievalista, como vemos presente em países autocráticos populistas de direita como a Hungria. Nem se reduz a uma reincarnação da arquitetura da destruição que movimentou os Estados totalitários, como muitas vezes nos faz pensar preliminarmente a imaginação histórico-social. Também não é um mero upgrade do modelo de Estados neoliberais, como já está claro. A história não se repete. Com base em seus princípios ideólogos, a refundação pretende ser, em primeiro lugar, uma destruição não-velada dos pilares democráticos e humanistas, a favor de um “mundo hobbesiano” – monárquico, neocameralista e conservador. Para apreender isso, será oportuno apresentar brevemente algumas ideias contidas em um livro-chave, o Iluminismo das Trevas, de Nick Land (2012).

Nick Land & Cia.

O filósofo inglês Nick Land é o principal expoente da controversa interpretação deleuziana-reacionária, produtiva às volições anarcocapitalista e aceleracionista. Para ele, a desterritorialização capitalista, que destila o caos cibernético e a aceleração tecnológica, é uma abertura para novos apetites (appetites), sendo a saída (exit) para a liberação dos desejos hiperliberais, especialmente para as ambições de transmutação da estrutura do poder e do consenso iluminista, com o objetivo de suprimir a forma de governo democrática e, mais profundamente, os ideais universalistas e multiculturalistas.

Ao contrário de Mark Fisher e Sadie Plant, reconhecidos autores de esquerda que também participaram do famoso coletivo Cybernetc Culture Research Unit (Unidade de Pesquisa de Cultura Cibernética), na Universidade de Warwick (Inglaterra), nos anos 1990, Land inverte a causação problemática do oximoro democracia capitalista: a barreira é a democracia, não o capitalismo. A obra Iluminismo das Trevas, disseminada pela Internet desde 2012, é uma espécie de compêndio das ideias alt-right em tempos cibernéticos, semeadas e nutridas em solo americano, satisfazendo, sobretudo, aos anseios político-ideológicos das novas elites tecnocorporativas do Vale do Silício, na Califórnia. Nela, Land sintetiza, comenta e desdobra as ideias de autores como o acadêmico Hans-Hermann Hoppe, conhecido pelo livro Democracia – o Deus que falhou (2002), o economista anarcocapitalista Murray Newton Rotthbard, o pensador neorreacionário e negacionista Curtis Yarvin (inicialmente identificado na blogosfera pelo pseudônimo Mencius Moldbug), e de personalidades do mundo empresarial, como o bilionário Peter Andreas Thiel, fundador do PayPal e da Palantir Technologies, e Patri Friedman, fundador do Seasteading Institute, uma organização criada para facilitar o estabelecimento de comunidades autônomas e móveis, em plataformas marítimas, operando em águas internacionais.

As extravagâncias, contradições e falácias filosóficas e político-econômicas encontradas nos discursos, especialmente as ideias eugenistas e segregacionistas que os referidos autores e personalidades trazem à tona, seriam mais do que suficientes para condenar e assinalar a excrescência e irrelevância de seus pensamentos. Malgrado isso, são enormes hoje as forças de tais pensamentos enquanto escatologia tecnopolítica e ideologia mobilizadora para a fermentação de estratégias e de imaginários político-ideológicos no sentido de refundação tecnofeudal dos EUA; sendo, não à toa, cultuados como gurus pelos mentores políticos do populismo fascista MAGA.

Vejamos: o “misterioso culto do poder” (Yarvin apud Land, 2012: 6), pregado nas universidades e disseminado pela mídia, é o universalismo, com suas aplicações multiculturalistas e posturas ético-políticas (“politicamente corretas”) na vida social. Não passam de “mentiras sentimentais” e “desonestidade moralista” (sanctimonious dishonesty), objeta Land (Idem: 5; 20), pois, de fato, a emancipação massiva ou a plenitude do cidadão nunca fora cumprida. Em realidade, prevalece a dinâmica degenerativa das democracias representativas, regida tanto por vícios privados, ressentimentos, corrupções e criminalidades urbanas como por um circo político de usurpações por aqueles que estão no poder e não querem deixar que caiam nas mãos dos inimigos.

Seguem então a avaliação e o prognóstico de Land: a degeneração do “mundo rousseauniano” – da voz emitida por “massas sempre entendidas e indolentes” (Hoppe apud Land, 2012: 56) e conformativa da tirania da maioria –, encontra-se em relação parasita danosa com o capitalismo, gerando um estado social zombie, sempre anulando o progresso e rumando ao apocalipse, sendo preferível efetivar o “realismo empedernido” do capitalismo autoritário em vez seguir cultivando a “desonestidade moralista” da democracia social (Land, Idem: 20). Para tal propósito, o “mundo hobbesiano” monárquico, neocameralista e conservador é a contraposição indicada.

A forma de governo cameralista, surgida no seio das ideias despóticas esclarecidas da Alemanha, a partir do século XVIII, teve experiências marcantes na Prússia do século XIX, combinando utilitarismo e iluminismo absolutista, a fim de viabilizar que as administrações públicas das finanças do Estado, suas propriedades e finanças, fossem comandadas de maneira centralizada, com poderes decisórios dado ao monarca e aos oligarcas do país.

Obviamente que, para as novas elites tecnocorporativas, notadamente, um upgrade cameralista para o século XXI, agrada no sentido de uma governança corporativa, sob a condição do monarca se comportar como um CEO (Chief Executive Officer; Diretor-executivo) da “corporação geral”, o Estado, trabalhando em prol de uma junta diretiva composta pelos indivíduos mais “eficientes e efetivos” do país, a saber, os seus grandes proprietários ou acionistas. O CEO-monarca com “poder total”, eleito pela junta, deve, na verdade, seguir as vontades dos grandes proprietários como “sociedades anônimas soberanas”. Land assinala que Hong Kong, Singapura e Dubai são exemplos contemporâneos que se aproximam da “sociedade da lei privada” neocameralista, oferecendo alta qualidade de vida à população, a partir da rejeição da democracia representativa, considerada ineficiente e desperdiçadora.

Mas a proposição de um Gov-Corp enquanto forma de governo para a refundação tecnofeudal-capitalista e populista dos EUA não é ultrajante aos ideais fundacionais e constitucionais da Democracia na América? Para os revisionistas Nick Land & cia, a resposta é não, salientando que “a maioria das pessoas, incluindo a maioria dos americanos, ficaria surpresa ao saber que a palavra ‘democracia’ não aparece na Declaração de Independência (1776) nem na Constituição dos Estados Unidos da América (1789) […]” (Steve H. Hanke apud Land, Idem: 9), complementando ainda que em variadas passagens escritas por Founding Fathers of the United States (Pais Fundadores dos Estados Unidos) como Thomas Jefferson, Benjamin Franklin e John Adams encontram-se críticas à forma de governo democrática.

Não obstante, afora o latentes caso acima de revisionismo negacionista – pois, na verdade, a participação popular e os votos do cidadãos sempre foram defendidos pelos Pais Fundadores, a partir de uma república com representantes eleitos, propondo mecanismos para exatamente impedir que a democracia se reduza a uma tirania da maioria –, cabe enfatizar, enfim, e sobretudo, que as resoluções filosófico-políticas a-universalistas e a-democráticas embarcam em ideias eugênicas e segregacionistas, sendo aqui o momento mais funesto e desbaratado das teses iluministas das trevas, levando ainda em conta o lugar onde se disseminam, isto é, um território do Novo Mundo, os Estados Unidos da América, com sua absoluta e copiosa história de formação social a partir de incontáveis levas de imigrantes e escravos vindos de todas as partes do mundo, bem como de nativos.

O iluminista das trevas advoga a defesa da “biodiversidade humana” (Rotthbard), para não ser visto como um “maldito racista” (Land, 2012: 54; 39) e relativiza-se os crimes de ódio como, na verdade, legítima ação política de direita contra a ordem que a oprime; significando tudo isso, na ordem do dia, argumentos pseudointelectuais que servem de combustível à ideologia fascista MAGA. A crítica ao construtivismo e a exaltação de genéticas e hereditariedades, completam o discurso, de modo a oportunizar a criação de “núcleos etno-geográficos […] liberados das estruturas degeneradas de seu predecessor eurocêntrico” (Idem: 57); na ordem dia: a perseguição aos latinos e demais grupos considerados inconvenientes.

Contraventos

Chega-se a uma era de usurpação premeditada e cínica do iluminismo? Ou, em termos estritamente políticos: chega-se a uma era de sistemáticos e extremos golpes à democracia? A saída iluminista das trevas, de liberação dos desejos hiperliberais, de transmutação da estrutura do poder e do consenso iluminista, quer ser tanto tecnofuturista e libertária como monárquica e reacionária. Não busca o consenso, mas consentimento; se possível, empreendido em velocidade de tiro (em muzzle velocity, como enunciou o estrategista trompista Steven Bannon), empregando falácias e pseudocientificidades e protagonizando o burlesco (como nas publicações de Trump figurando-o como rei e papa e insinuando que seu mandato continuará depois 2028, mesmo com a impossibilidade constitucional).

Com vaticinaram Adorno e Horkheimer (1985: 46), “a maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 46). A chegada é, na verdade, um regresso. O aceleracionismo de extrema-direita é um renascimento decadentista. Seu ímpeto tecnofeudal quer arrojar uma terceira inflexão reacionária do liberalismo, adiantando o paradoxal e o contraditório como apetites ao pernicioso, ao violento e desumano. Infelizmente, tal orde vanguardista reacionária vem mobilizando populações em modos crescentes de consentimento e coerção, aumentando o seu poder de adesão por meio de ideais salvacionistas e supremacistas de cunho cristofascistas. Miseravelmente, esse é um dos ventos que uivam no Ocidente, em sua indigência incontornável de refundação.

Apesar de ainda limitados e com as oposições amordaçadas no legislativo e judiciário, os contraventos progressistas apareceram nos EUA, nas ruas, pelos recentes protestos desencadeados em Los Angeles contra a caça aos imigrantes ilegais, mas também por meio de boicotes, organização de greves e manifestações, notadamente pelo Fighting Oligarchy Tour, liderados Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, que vem obtendo grandes mobilizações em diferentes capitais dos EUA.

As democracias vencerão, repactuando novos contratos socioeconômicos para suplantar o neoliberalismo. Contra as trevas cibernéticas, que desejam a democracia em vertigem para condecorar os bárbaros, três sentidos refundacionais dos EUA parecem básicos e urgentes: a compreensão aprofundada e repactuada da liberdade de expressão, da democracia e do comércio, subtraído do ímpeto imperial-oligárquico belicoso. São os próprios autores do panteão liberal – Mill, Tocqueville e Constant – que estão sob intensa depredação.

*Ednei de Genaro é professor do curso de educação na Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), Campus Tangará da Serra.

Referências


Adorno, Theodor; Horkheimer, Max.1985. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

Anderson, Perry. 2025. Ideologias mobilizadora. A Terra é Redonda, 20 mar. 2025. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/ideologias-mobilizadoras/.

Cesarino, Letícia. 2022. O mundo do avesso: verdade e política na era digital. São Paulo: Ubu Editora.

Constant, Benjamin.1819. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Tradução Loura Silveira. Disponível em: https://www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/Constant_liberdade.pdf.

Fraenkel, Ernst. 2024. O Estado Dual: uma contribuição à teoria da ditadura. São Paulo: Editora Contracorrente.

Genaro, Ednei de. 2020. Escatologias tecnopolíticas contemporâneas. Cadernos IHU Ideias, vol. 18, nº 297. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/297cadernosihuideias.pdf.

Land, Nick. 2012. The Dark Enlightenment. Uma versão on-line está disponível em: https://keithanyan.github.io/TheDarkEnlightenment.epub/TheDarkEnlightenment.pdf. Tradução para o espanhol de Giancarlo M. Sandoval, disponível em: https://archive.org/details/land-nick-la-ilustracion-oscura-2019

Mazzucato, Mariana. 2014. O Estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público x setor privado. São Paulo: Portfolio-Penguin.

Sennett, Richard. 1998. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Cia. das Letras.

Sennett, Richard. 2004. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record.

Varoufakis, Yanis. 2025. Assim o Ocidente constrói sua ruína. Outras Palavras, 03 fev. 2025. Disponível em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/varoufakis-assim-o-ocidente-constroi-sua-ruina/.


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